Criado pelo Banco Central para dar mais segurança aos usuários do Pix, o Mecanismo Especial de Devolução (MED) tem sido usado para aplicação de golpes a comerciantes na Rua 25 de Março. A venda é realizada normalmente e, na sequência, os fraudadores utilizam a ferramenta para contestar o pagamento, ficando com a mercadoria.
"Eles mandam o recibo, mas depois fazem contestação do Pix e a gente sai no prejuízo", conta a vendedora Raíssa de Jesus, de 20 anos, que já presenciou a loja de perucas onde trabalha passar três vezes pelo golpe. Os produtos feitos de cabelo humano, mais caros, estão entre os alvos preferidos.
Segundo ela, o prejuízo chegou a R$ 6 mil, valor que não foi totalmente recuperado, mesmo após o estabelecimento fazer um boletim de ocorrência. A loja oferece entrega para todo o Brasil e, em razão dos golpes, deixou de aceitar pagamentos através de links ou chaves Pix.
O MED surgiu em 2021 e vem passando por atualizações para evitar que clientes sejam vítimas de golpes no Pix. No caso das fraudes relatadas na 25 de Março, essa função, que deveria ser usada para proteção, é subvertida para aplicar as fraudes. Desde outubro, o processo de contestação, que antes precisava ser realizado por meio da central de atendimento dos bancos, passou a poder ser feito mais facilmente através de um botão nos aplicativos das instituições financeiras.
Outra atualização de segurança, que entrou em vigor em novembro, permite que o sistema rastreie o dinheiro, mesmo quando transferido para contas subsequentes. Assim, os valores poderão ser devolvidos em até 11 dias após a contestação. A partir de 2 de fevereiro, a função passa a ser obrigatória.
Em outro caso ocorrido na 25 de Março, o lojista Bruno Monteiro, de 34, conta que realizou reparos no celular de um cliente, no valor de R$ 650. Pouco depois do pagamento, a quantia foi bloqueada pelo banco, sob a justificativa de que o pagador contestou a operação financeira. Monteiro conta que o cliente questionou a qualidade do serviço, razão pela qual pediu o bloqueio da transação.
O MED, porém, não pode ser usado em caso de desacordo comercial ou arrependimento, conforme norma do BC. O lojista entrou em contato com o cliente, que desistiu da contestação. Agora, Monteiro aguarda pela liberação dos valores, estimada pelo banco em até 15 dias, segundo ele.
No caso do golpe da contestação, o comerciante pode entrar em contato com o banco para informar a fraude, ressalta Leonardo Werlang, especialista em Direito Digital do escritório PG Advogados. Porém, ele alerta que é preciso ter evidências de que o negócio é legítimo, como nota fiscal ou outros documentos que confirmem a transação.
Caso isso não funcione, outras opções são realizar um boletim de ocorrência ou pedir reparação judicial. Atuando na defesa de bancos no Brasil, principalmente em São Paulo, o especialista observa um número maior de reclamações relacionadas às fraudes no Pix. Relata ainda que a maioria tem origem na falta de informação.
MED já passou por revisão
O uso irregular do mecanismo de devolução está se popularizando em todo o País, segundo Luis Braga Rezende, sócio do escritório Braga Dutra Advocacia e especializado em direito digital.
Ele avalia que o MED é uma ideia excelente para proteger vítimas de fraudes, mas falha na execução por não analisar as particularidades dos casos. Isso resulta em bloqueios integrais de contas por até três meses, segundo relatos de clientes. Rezende ainda afirma mover dezenas de ações relacionadas ao mecanismo de devolução.
Após acionadas, as análises bancárias por meio do MED são automatizadas e não possuem canais claros para apresentar defesa da contestação, segundo o advogado. As vítimas, portanto, ficariam incapacitadas de apresentar provas de transações legítimas.
O especialista em direito digital também ressalta que o prazo de 80 dias facilita o uso irregular em vendas online, permitindo que compradores recebam produtos e contestem depois, alegando a não entrega.
Em entrevista ao Estadão/ Broadcast, Walter Faria, diretor adjunto de Serviços e Segurança da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), afirmou que o uso do MED para aplicar golpes não está entre as fraudes mais comuns.
Também destaca que somente a operação contestada fica retida pela instituição financeira e que as vítimas podem se defender de acusações falsas usando os canais de comunicação dos próprios bancos. "A principal motivação para a revisão do sistema foi melhorar a prevenção às fraudes", conta Faria.
O diretor ainda explica que a avaliação dos bancos usa mecanismos automatizados, mas destaca o papel da intervenção humana no processo. Os critérios de análise sobre a validade de uma transação, no entanto, não podem ser divulgados para evitar que criminosos aprendam a driblar o mecanismo.
Pix por agendamento
Outra modalidade de golpe aplicado na 25 de Março, relatada pelos entrevistados, é feita por meio do agendamento de pagamentos via Pix. Vendedor de frutas no Mercado Municipal, Adilson Mendes conta que foi vítima desse golpe recentemente.
O comprador agendou o pagamento em vez de efetuar a transação instantânea, mostrou o comprovante ao vendedor e saiu às pressas. Ao deixar o estabelecimento, cancelou a operação. "Se aproveitou de que eu estava atendendo um monte de gente", lembra Mendes.
Ele conta que o prejuízo, de R$ 70, não foi alto. O vendedor diz que seu irmão, também comerciante, foi vítima do mesmo golpe há cerca de dois anos. Nesse caso, a perda foi maior, de R$ 5 mil.
Atentos às fraudes, os comerciantes da 25 de Março dizem se proteger por meio de pagamento por Pix com QR Code Dinâmico, direto das maquininhas. Essa medida impede que os clientes agendem as transações.
Outra opção é pedir que o cliente espere até que o pagamento via Pix seja identificado pelo estabelecimento. "Eu ligo para o meu financeiro e ele 'puxa' se a operação caiu para a gente", explica Edson Lima, gerente geral da loja M. Camicado.
Segundo o presidente da Câmara de Dirigentes Lojistas de São Paulo (CDL-SP), Mauricio Stainoff, a orientação é justamente garantir que o dinheiro caia na conta no momento da venda.
Em nota, o Banco Central afirma que aprimora continuamente as regras do Pix. Segundo o órgão regulador, o MED 2.0 permitirá bloquear e recuperar valores de contas usadas em fraudes, restringindo triangulações, sendo obrigatório a partir de fevereiro de 2026 para todos que usam esse meio de pagamento. O acionamento rápido aumenta as chances de recuperação, e as instituições definem métricas e decisões, cabendo ao BC apenas fornecer a infraestrutura via APIs.
Ainda de acordo com o BC, o MED não quebra sigilo nem expõe dados, sendo acionado apenas pela vítima para combater golpistas e recuperar valores. Em outubro de 2025, R$ 70,3 milhões foram devolvidos, e o uso tende a crescer. O lançamento do botão de contestação do Pix em 1º de outubro deste ano facilitou o processo de contestação de transações. "Quem usar o MED para golpes pode ser marcado como fraudador pelas instituições financeiras e, consequentemente, não conseguirá mais fazer nem receber Pix", informou o BC. (Com reportagem de Bárbara Ferreira, Carla Nigro, Fabio S. Borges, Gabriel Cillo, Gabriel Serpa, Guilherme Matos, Guilherme Siqueira, João Pedro Bitencourt, Karolina Monte, Mariana Felicio e Rafael Sotero)
15º Curso Estadão/Broadcast de Jornalismo Econômico Coordenação e edição: Carla Miranda e Simone Cavalcanti; Equipe: Victor Hugo Mendes, Marisa Oliveira e Eliane Damaceno