Quem olhava do alto da Ladeira do Carmo em direção ao Largo do Pelourinho, em Salvador, se surpreendia com a longa fila. Centenas de pessoas se abrigavam sob capas e guarda-chuvas ou suportavam a garoa persistente. Queriam ver, dali a algumas horas, uma das principais atrações daquela edição de 2017 da Flipelô. Uma estrela subiria ao palco.
Conceição Evaristo se estabelecia como um grande nome de nossa literatura. Na Pallas, uma das editoras pelas quais publica, já vendeu mais de um milhão de exemplares. Dois de seus livros ficaram entre os 10 mais importantes deste primeiro quarto de século segundo apuração feita pelo jornal Folha de S.Paulo. E bem colocados. “Olhos D'Água”, reunião de contos de 2014, está em 6º lugar, enquanto a 9ª posição é de “Ponciá Vicêncio”, de 2003, romance dos mais representativos da literatura de Conceição. “A nossa escrevivência não é para ninar os da casa grande, e sim para acordá-los de seus sonhos injustos”, ela diz.
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Há mais. Títulos como “Canção para Ninar Menino Grande” estão ou estiveram dentre as leituras obrigatórias de importantes vestibulares pelo país, como a Fuvest. Extrapolando as letras, Conceição passou a ser referência para outras artes. Foi em um poema da autora que a Bienal de São Paulo deste ano buscou seu título: “Nem todo viandante anda estradas — da humanidade como prática”.
A escritora tem uma agenda disputadíssima. Não é raro vê-la acompanhada por um séquito de admiradores e presenciar plateias ansiosas para ouvi-la, vê-la e reverenciála. Enxergam na figura da autora não só uma intelectual de respeito, mas um símbolo. Tanto frases cunhadas pela artista quanto o seu rosto de olhar sereno e determinado estampam camisetas e sacolas. Aos 78 anos, Conceição Evaristo é uma rara figura pop de nossa literatura.
Quero que leiam, sim. Leiam o meu texto, não leiam só esse meu rosto negro de cabelos grisalhos e aparência calma
Viver e escrever
Nem sempre foi assim. Conceição é exemplo de artista que precisou ter paciência e persistência até ver seu trabalho chegar a um público vasto. Na primeira metade da década passada, não era incomum encontrá-la em eventos menores. Nessas ocasiões, já mostrava um pensamento consistente e coeso. Um projeto literário em diálogo com as preocupações acadêmicas de uma mestre em Literatura pela PUC-Rio e doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense.
Ela nasceu em 1946, em uma favela de Belo Horizonte. De família grande, cresceu entre a casa da mãe, Joana Josefina Evaristo, e a de uma tia. Pequena, seguia os passos de outras mulheres de sua família fazendo trabalhos domésticos em residências alheias. Na escola, tinha problemas com matemática, o que a fez repetir de ano algumas vezes. Longe dos números, começou a estreitar os laços com a escrita e a literatura, boa companhia desde os tempos em que não tinha sequer rádio por perto.
Aos 25 anos, se mudou para o Rio de Janeiro. “Uma coisa eu posso dizer: apesar de anos e anos no Rio de Janeiro, às vezes as pessoas até brincam que sou cariomeira. Minha infância e minha juventude foram numa profunda ambiência mineira. Isso marca. O trânsito de ir e vir, tanto circular em Minas quanto sair de Minas, impregna com prazer minha literatura”, declara.
O primeiro emprego como professora em uma escola do Méier inaugurou uma longa carreira na educação, área em que Conceição tem atuado ao longo de toda sua vida.
Casou-se com Oswaldo e, aos 34, virou mãe de Ainá, garota nascida com uma síndrome genética que interferiu no seu desenvolvimento. Alguns médicos alertaram: seria difícil que o bebê passasse dos primeiros meses de vida. Erraram feio. Ainá, hoje com 44 anos, segue presente na vida de Conceição.
Ela disse recentemente para o jornal O Globo que a maternidade a deixou um pouco prepotente, porque deu conta de tudo: “Minha vida não parou e consegui fazer dela uma pessoa feliz. Não tenho paciência com quem faz estardalhaço porque espetou o dedo num alfinete”.
Quem se foi cedo demais, por outro lado, foi o marido. Desde os 43 anos a escritora é viúva e recusa a ideia de um novo casamento, mas não a de namorar.
Sou de uma geração que as mulheres não falavam sobre suas experiências sexuais. Gosto da sensualidade sem cair no grosseiro, no vulgar. Busco escrever essas cenas de maneira mais poética. A palavra diz, afirma, nega. Gosto desse trabalho com linguagem para que a cena fique insinuada.
Sua primeira publicação chegou aos leitores em 1990, numa edição do mítico “Cadernos Negros”. Antes do sucesso no século seguinte — com direito a um Jabuti em 2015 com “Olhos D'Água” —, burilou o conceito que passaria a andar colado ao seu nome: escrevivência. Trata-se da mistura entre escrever e viver, uma ideia de levar para a literatura tramas profundamente marcadas pelas experiências pessoais, coletivas e históricas protagonizadas sobretudo por mulheres negras.
Irmãs e irmãos
Um momento marcou a guinada na trajetória da escritora: a Festa Literária Internacional de Paraty em 2017. Conceição foi uma das principais atrações da Flip, então sob curadoria da jornalista Joselia Aguiar. A mesa que dividiu com Ana Maria Gonçalves se tornou símbolo não só do evento, mas de uma literatura brasileira que enfim se mostrava mais diversa, mais plural nas questões abordadas, no perfil dos autores, nas referências estéticas, no diálogo com mitologias e sabedorias que estão presentes há séculos em nossa sociedade, especialmente as originárias de diferentes lugares da África.
É comum que Conceição transmita uma ideia em suas manifestações públicas. Ela não se contenta em ter o palco ou os holofotes para si, mas deseja provocar movimentos que possibilitem que suas irmãs — outras autoras negras, especialmente — também tenham o espaço que historicamente lhes foi negado. É uma luta que vem sendo bem-sucedida, ao que parece.
“Me interessa muito o que está sendo produzido hoje. Vemos textos muito potentes, muito bonitos mesmo. Meu trabalho passa muito por isso: afirmar a presença desses escritores além de Conceição Evaristo. Para que as pessoas, quando me lerem, sintam curiosidade de ler outras intelectuais negras”. A já mencionada lista da Folha, por exemplo, é encabeçada por “Um Defeito de Cor”, volume de quase mil páginas de Ana Maria Gonçalves. Outras irmãs e também irmãos de Conceição são, hoje, alguns dos nomes mais aplaudidos de nossas letras e vêm ganhando novas leituras, passando por uma fase de reconhecimento de um público cada vez mais interessado.
E a diversidade defendida pela escritora não para por aí. “A literatura produzida por homens e mulheres indígenas está aí explodindo, por exemplo. Ou de pessoas que têm outras vivências sexuais, produzida por uma autoria homoafetiva. É importante termos essa percepção de formas possíveis de vivência do amor, do sentimento”.
Leiam minha literatura, não só meu rosto
O sucesso de Conceição Evaristo vem de sua arte e de seu trabalho, mas não pode ser dissociado desse momento cultural que o país atravessa. “Eu não estou aqui sozinha, eu não cheguei sozinha, eu cheguei por força coletiva de homens e mulheres negras, notadamente de mulheres negras”, comentou naquela mesma mesa na Flip de 2017.
É uma mulher que parece jamais descansar. Ao mesmo tempo que vive entre escolas e eventos pomposos, idealizou e criou a Casa Escrevivência, espaço no Rio que abriga a sua biblioteca e promove atividades literárias. E segue elaborando a sua obra. “Gosto muito de escrever a partir da vida. Posso escrever sobre uma árvore, por exemplo, mas essa árvore só ganha significado para minha escrita se estiver relacionada a alguma movimentação humana. O corpo está muito presente no meu texto, principalmente esse corpo negro, das mulheres negras”.
Há algum tempo que diz trabalhar num livro de poemas amorosos. Também se debruça sobre o diário da mãe, morta em 2021, registros que pretende transformar num romance.
Em 2023, seis anos após o evento em Salvador, centenas de pessoas na Flip pararam para aplaudi-la caminhando pelas ruas de pedras da cidade de Paraty. Algumas choravam, emocionadas. “Meu rosto está espalhado por aí”, diz, entretanto, com prudência. E prossegue: “Mas o que tenho dito é que não olhem só para o meu rosto. Leiam o que eu escrevo. E leiam pensando que estão lendo literatura, não é só um texto sobre a condição das mulheres negras”.
Um milhão de pessoas parecem estar obedecendo.