Tudo começou quando Jorge Bodanzky soube, através de um amigo, que sua mãe - Rosa - havia sido citada por Eleonore Koch como tendo sido decisiva num momento significativo da vida da escultora e pintora. Curioso, Jorge ligou para Lore, como era chamada. Apresentou-se, disse que gostaria de conversar com ela sobre sua ligação com a mãe dele. "Não é coisa que se possa resumir num telefonema. Venha tomar um café comigo. Será uma longa conversa."
Foram algumas conversas, muitas horas de gravação - com celular - e agora, cerca de dez anos depois, o extenso material, reduzido a um documentário de pouco mais de 80 minutos - As Cores e Amores de Lore -, chegará aos cinemas na quinta-feira, 13.
Coincidentemente, neste mesmo dia estará começando o Festival de Berlim de 2025, no qual, na segunda, 17, ocorrerá o lançamento internacional da versão restaurada do filme que colocou Bodanzky no mapa do cinema brasileiro, e mundial - Iracema, Uma Transa Amazônica.
São os 50 anos de Iracema e lá atrás o jovem Jorge, na flor de seus 32 anos, assinava com Orlando Senna um marco do cinema brasileiro e da resistência à ditadura militar. Introduzia temas - Floresta Amazônica, prostituição infantil, devastação do meio-ambiente - que não interessava ao regime que viessem a público. Iracema entrou no índex da Censura, foi impedido por longos anos de estrear nos cinemas. "O trágico é que continua atual como se tivesse sido feito agora."
E As Cores e Amores de Lore? "Esse terminou sendo um filme de volta às origens para mim."
Eleonore Koch foi uma artista brasileira de ascendência alemã. Nasceu em Berlim, chegou ao Brasil com a família, fugindo do nazismo, em 1936. Márcia Bodanzky, que acompanha o marido na entrevista e é autora dos Drops da Márcia na FlipZona, acrescenta - "Lore era filha de psicanalista e a mãe dela foi fundamental para que a psicanálise brasileira tivesse reconhecimento no foro internacional. Seu nome era Adelaide e, como a filha, ela também virou tema de filme."
E que filme! A história é muito bem contada em Adelaide e Virgínia, belo filme de Jorge Furtado que teve lançamento no ano passado, no Festival de Gramado.
Por meio das conversas com Eleonore, Jorge fez o que não esperava. Ele sempre se projetou nos materiais que filmava, até pela maneira como operava câmeras pequenas, flexíveis, interagindo com os personagens de Iracema, de Gitirana, de todos os documentários que foram estabelecendo sua reputação. Houve também a ficção de Os Mucker, de 1978.
O caso de As Cores e Amores de Lore terminou tornando-se especial. "Já havia sido personagem, com a Márcia, em UnB - Utopia/Distopia, de 2020. Mas, nesse caso, à medida que perguntava, e Lore me contava, descobri que a história dela era um pouco a da minha família, também formada por imigrantes europeus de uma classe média intelectual."
A ligação com Rosa Bodanzky veio quando a jovem Lore foi estagiária de Rosa na Livraria Kosmos, que foi um ponto de encontro de intelectuais paulistanos nos anos 1940 e 50. Com Rosa, Lore aprendeu o ofício de encadernadora. O interesse pela arte já era coisa de família. Levou-a a tomar aulas com, entre outros, Bruno Brogi. Após um período em Paris, regressou ao Brasil e tornou-se discípula de Alfredo Volpi.
Lore contou a Bodanzky essas histórias, e outras. Como era mulher bonita, e gravitava em torno de nomes consagrados - foi assistente dos cientistas Mário Schenberg e César Lattes -, teve dificuldades para se impor no machista círculo artístico da época. A voracidade sexual, que encara nas conversas com Bodanzky, foi uma reação natural para ela.
"Se eu não podia ser artista, nada me impedia de ser mulher." Todas essas histórias surgem por meio das lembranças da artista, sua consagração, as técnicas e formas que utilizava. E, por meio dela, Bodanzky encara suas origens. Celebra a própria mãe, que também foi uma mulher forte, desafiadora das convenções de seu tempo.
Enquanto conversava com Lore, e filmava as conversas, Bodanzky ia entregando o material à montadora Bruna Callegari, "para que ela pusesse uma ordem naquilo." Veio a pandemia. O assunto do filme não estava em pauta, mas era implícito. Quando Lore morreu, em 2018, deixou para ele o arquivo pessoal. Dispondo de tudo - entrevistas, iconografia -, Bodanzky concluiu a montagem e iniciou o sempre difícil processo de finalização.
Como produtor e diretor independente, ele fez as coisas com calma, sem muitos recursos, mas aproveitando a oportunidade de questionar-se, em primeira pessoa, sobre quem é, de onde veio, o que é seu cinema. O momento está sendo rico para ele. "Como independente, digo que tenho de ter sempre dez projetos em andamento para que pelo menos um se concretize. Agora tenho 11, e um parece mais encaminhado, mas não posso adiantar."
Olhar progressista
Nos últimos anos, Bodanzky tem voltado à grande floresta do seu começo. Com Amazônia - Uma Nova Minamata, lançou luz sobre o garimpo ilegal que avança sobre terras indígenas e contamina os rios, com resultados desastrosos.
"É triste dizer, mas a situação consegue ser pior do que no tempo de Iracema, de 1975?. Bodanzky não questiona as boas intenções do Governo Federal, mas questiona o jogo de interesses no Congresso, que paralisa as pautas progressistas. Mas vê um avanço - "Em qualquer lugar que você vá na Amazônia, por menor que seja a comunidade, há sempre uma base atuante. Essas populações já perceberam que precisam se mobilizar. Se dependerem das políticas de Estado, não apenas elas, mas toda a região estará ameaçada."
Bodanzky está duplamente, triplamente feliz. Além da estreia do novo filme e do resgate de seu clássico, vai aproveitar a viagem para uma reunião familiar. As filhas, que moram na Alemanha e na Holanda, e a neta, filha da também cineasta Laís Bodanzky, que estuda em Paris, irão se juntar para uns dias de convívio familiar.
A apresentação de Iracema na Berlinale será a primeira fora do Brasil. O filme integrou a grande mostra dedicada a Bodanzky pelo Instituto Moreira Salles. O instituto adquiriu os negativos - cerca de 50 mil - do acervo fotográfico analógico que ele construiu ao longo de décadas, desde que se iniciou como fotógrafo no Jornal da Tarde e no Estadão. Fotografou para Manchete, Realidade, para o Donauzeitung Ulm. Os filmes e o acervo fotográfico digital continuam de posse dele. O acervo de Eleonore Koch foi entregue ao MAM, do Rio.
Bodanzky está encantado com o restauro do filme. "A imagem está linda e o som, impecável. Compramos os direitos das músicas."
O restauro foi feito a partir de fontes sonoras originais." Ele lembra as condições épicas da rodagem. "Eu filmava sem tripé, operando a câmera. Orlando (Senna) dirigia o elenco. Nós dois planejávamos as cenas e estabelecíamos com os atores profissionais - especialmente o Paulo César Pereio - a base para a cena. O filme nasceu dessa dinâmica entre atores e não atores. O enquadramento, a dramaturgia iam nascendo na hora, sem nenhuma iluminação especial."
O formato híbrido - documentário + ficção - ganhava ali um de seus marcos definidores. Bodanzky aproveita para dar uma informação surpreendente. Embora proibido prela Censura, Iracema circulou muito pelo Brasil, durante os anos de interdição. "Havia uma rede de cineclubes que fazia os filmes circularem num circuito alternativo, de sindicatos e universidades. Foi um filme muito visto, debatido." Voltará a ser com essa nova vida.