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Thaís Nunes, a roteirista e diretora de quebrada por trás das séries true crime no Brasil

Da Vila Ede, Thaís participa de produções como “Elize Matsunaga: Era uma Vez um Crime”, e da série documental sobre o “Maníaco do Parque”

2 out 2023 - 07h28
(atualizado em 3/10/2023 às 19h05)
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Thaís Nunes foi a primeira mulher da família a ter um diploma do ensino superior
Thaís Nunes foi a primeira mulher da família a ter um diploma do ensino superior
Foto: Arquivo pessoal

Foi na zona norte de São Paulo, território de tradição do samba e das culturas nordestinas, que nasceu a indomável Thaís Nunes, 35, jornalista investigativa, documentarista, roteirista e diretora especializada em segurança pública, justiça e direitos humanos. E o mais importante desse currículo todo: ela é cria da Vila Ede – a mesma quebrada de MC Kevin.  

Idealizadora de projetos audiovisuais no streaming, Thaís está por trás de grandes produções como “Elize Matsunaga: Era uma Vez um Crime” (2021), a primeira série documental da Netflix no Brasil. Também atuou como jornalista investigativa em “PCC - Poder Secreto” (2022), da HBO. 

Além disso, vem fazendo sua estreia na direção, juntamente com Maurício Eça, com a série documental "O Maníaco do Parque: A História Não Contada", do Prime Video e prevista para ser lançada em 2024. Em paralelo, assina a pesquisa do filme ficcional sobre o mesmo caso, produzido pela Santa Rita Filmes.

Vivência periférica 

Os avós paternos de Thaís foram imigrantes vindos de uma região pobre e rural da Ilha da Madeira, em Portugal. Do lado materno, os avós foram retirantes nordestinos do agreste de Pernambuco, que se fixaram na Vila Medeiros, na zona norte, após uma migração precária em transporte clandestino. 

Filha de Rose Nunes, uma vendedora da 25 de Março, e de Carlos Nunes, que começou a trabalhar no Metrô como segurança, a jornalista cresceu inserida numa realidade periférica que define como engrandecedora, mas também muito cruel, que a levou a se aproximar de temas que envolvem justiça (ou injustiça). 

“Meus pais achavam que eu ia ser advogada, seguir na carreira jurídica, porque desde sempre eu queria trabalhar com justiça. Quem é da periferia já ouviu que alguém morreu, foi assaltado, que tal pessoa foi morta, rodou na prisão, teve overdose. São vivências que te levam a esse caminho”, conta, em entrevista ao Visão do Corre

Thaís estreia como diretora na série documental "O Maníaco do Parque: A História Não Contada"
Thaís estreia como diretora na série documental "O Maníaco do Parque: A História Não Contada"
Foto: Arquivo pessoal

O conceito de justiça e de verdade, alinhado à humanização, é algo que toca Thaís de maneira pessoal. “Discutir tráfico de drogas, por exemplo, é uma temática que me comove. Vi meu melhor amigo da época usar cocaína, quase ter overdose. A gente tinha 15 anos. Se eu não tivesse sido uma garota de periferia não teria tido essas reflexões tão jovem.”

Transitar entre as diferentes realidades de uma quebrada e atravessar as pontes de São Paulo foi moldando Thaís desde a infância. Uma lembrança que ela cita é o Carandiru, quanto tinha quatro ou cinco anos de idade.

“O caminho para ir à ‘cidade’ – só quem é da periferia conhece esse termo – passava inevitavelmente pelo Carandiru [Casa de Detenção de São Paulo, onde, em 1992, ocorreu uma das maiores chacinas do país]. A casa da minha avó estava ali do lado. É uma memória muito forte pra mim.”

“Aqueles homens com os braços e pernas nas celas, era algo chocante. E minha mãe ensinava, olhando de uma forma humana, falando que eles cometeram crimes mas não está certo alguém viver daquela forma. E pra complementar essa lembrança veio o Massacre do Carandiru”, acrescenta. 

“Esse lugar [o Carandiru] era muito presente nos meus dias, nos meus passeios, no final de semana, indo ao Metrô visitar o meu pai no trabalho. Vi as imagens, as fotos [dos presos assassinados], minha mãe não me escondeu. Era absolutamente chocante, certamente foi um início pra que eu quisesse trabalhar com isso.”

Para ela, o Metrô não era apenas um meio de ir e vir, mas também uma ferramenta de acesso pra enxergar o mundo. Pelo pai ser metroviário, o sustento também partia dali. Dos 10 aos 25 anos, ela passou a morar com a família no Jardim Tremembé, ainda na região norte – local bastante citados nas músicas do Emicida, pontua.

Novas narrativas true crime

Thaís foi a primeira mulher da família a ter um diploma e ingressar no ensino superior. Conciliou o trabalho e a faculdade de jornalismo, em uma dupla jornada comum do jovem periférico que precisa contribuir com a renda da casa e bancar os próprios estudos. Chegou a ser vendedora no shopping e operadora de telemarketing, enquanto estudava na UNIP (Universidade Paulista). 

Depois, se firmou na carreira de jornalista, trabalhando em jornais populares e como repórter de TV. Um dos últimos veículos de comunicação em que atuou foi o SBT. Hoje, tem trabalhado em projetos audiovisuais mais autorais, pautados nos direitos humanos, na investigação e pesquisa de séries sobre crimes reais. 

Documentarista da Vila Ede trabalha na investigação para produções sobre crimes reais
Documentarista da Vila Ede trabalha na investigação para produções sobre crimes reais
Foto: Arquivo pessoal

Um de seus trabalhos em andamento é a série documental "O Maníaco do Parque: A História Não Contada". A produção vai contar com depoimentos exclusivos de quatro vítimas do serial killer Francisco de Assis Pereira. Codirigida por Thaís, ela destaca a responsabilidade em trazer a perspectiva dessas vítimas, que são mulheres negras.

“São mulheres de periferia como eu e muitas delas mãe solo. Elas tiveram vivências muito pesadas. É a responsabilidade de poder retratá-las de uma maneira que não entrasse nessa caixa de feminismo branco”, argumenta. O projeto vai abordar como a imprensa trata não só as mulheres vítimas de violência, mas também as mulheres que estão dentro da redação de jornalismo. 

“Saber que eu estou envolvida em uma produção nesse nível, nesse tamanho que vai estrear em 200 países, falando sobre machismo no jornalismo, questionando o sensacionalismo a revitimização de mulheres periféricas, é uma grande honra.”

“De longe é o maior trabalho que fiz na minha vida, de mais tempo, entrega, que reacendeu em mim algo que só acontece quando a gente consegue concretizar algo que tenha tanto o nosso DNA, que faz a gente se olhar no fundo da alma. O senso de responsabilidade de contar uma história de verdade, de mulheres com vivências verdadeiras e profundas”, diz, satisfeita.  

Thaís justifica a importância de séries true crime com propósito. No caso do “Maníaco do Parque”, é trazer a reflexão sobre a cultura de estupro no Brasil

“Recontar uma história de violência sem propósito é só exploração, ‘pornografia da violência’ – uma terminologia que inclusive está sendo usada. Então, repensar ética é um trabalho diário que eu faço e hoje, pelo menos por enquanto, tenho conseguido me envolver em projetos com temáticas que acredito.”

Lideranças machistas

Outra realização da documentarista é chefiar mulheres e estar numa equipe feminina. “Meu time é formado por mulheres, jovens, que nasceram no ano em que os crimes [do Maníaco do Parque] foram descobertos, em 1998. Queria que essas mulheres tivessem uma experiência de liderança diferente das que eu já tive”, lembra Thaís. 

Ela, que já foi obrigada a se maquiar para trabalhar, julgada pela “aparência sensual” como medidor de competência, entre outras situações quando trabalhava em redações de jornalismo, percebe a importância da diversidade em funções de liderança. 

Em 2016, Thaís criou o coletivo “Jornalistas Contra o Assédio”
Em 2016, Thaís criou o coletivo “Jornalistas Contra o Assédio”
Foto: Arquivo pessoal

“Uma vez, após fazer uma reportagem com muita repercussão, um chefe homem da época se sentiu no direito de me ligar às 23h pra dizer que ele não gostava de mim com aquela roupa. Sei que eu não passaria mais por isso hoje”, desabafa.

Inclusive, em 2016, a diretora criou, ao lado da jornalista Janaína Garcia, o coletivo Jornalistas Contra o Assédio, expondo o machismo que mulheres sofrem no exercício da profissão. O movimento nasceu após a demissão de uma jornalista do portal iG que denunciou assédio sexual do cantor Biel. 

Projetos futuros

Entre os próximos projetos com a colaboração de Thaís Nunes está "Bandida: a Número um da Rocinha". O longa-metragem, protagonizado pela atriz e cantora Maria, vai contar a história de uma mulher que chefiou uma quadrilha, retratando a violência urbana no Rio de Janeiro nos anos 1980. Ela assina como roteirista. 

“Tenho também duas séries do gênero true crime em plataformas de streaming, com acessos inéditos e com protagonismo feminino em que eu fui story producer. São duas histórias bombásticas”, avisa. E não acabou: há outros dois projetos em negociação. 

E a saúde mental?

Desde o início de sua trajetória na comunicação, Thaís se debruça em temas que envolvem segurança pública, violência policial e direitos humanos. São histórias dolorosas, por vezes revoltantes. Perguntada sobre como cuida da saúde mental e emocional, ela conta que se agarra na religiosidade, tem o acolhimento da família e segue uma rotina saudável de exercícios físicos. 

“Sou muito religiosa. Manter a minha espiritualidade, a minha fé, é o pilar básico pra não surtar, pra viver uma vida mais leve. Também procuro estar com a minha família, me exercitar todos os dias.”

Com rotinas intensas de trabalho em sets de filmagem, Thaís reflete sobre uma característica, sobretudo de mulheres periféricas, que é a sensação de ter de trabalhar o tempo todo. “Às vezes a gente se sente culpado por não estar trabalhando.”

“A gente que vem de uma origem de escassez, sente uma culpa e um medo de que se não trabalhar ou disser ‘não’ pra uma situação mais abusiva, tudo vai se ruir. O meu grande desafio, e acredito que seja de parte dos moradores da periferia, é não se auto sabotar, entender o nosso valor.”

Thaís vai lançar outras duas séries do gênero true crime em plataformas de streaming
Thaís vai lançar outras duas séries do gênero true crime em plataformas de streaming
Foto: Arquivo pessoal

Segundo ela, outro caminho pra manter a saúde mental também é não ter vergonha das origens. “Pelo contrário, tenho muito orgulho”. E deixa o recado pra quem não entende nada sobre como é crescer numa periferia ou favela:

“Respeita a minha pomba gira, meu jeito de ser. Respeita os nossos churrascos batucando o balde ouvindo pagode, ouvindo Nativa FM, assistindo o programa de televisão aberta. Vocês não têm a cultura que a gente tem. Vocês não sabem desenrolar numa 25 de Março. Respeita.”

Fonte: Visão do Corre
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