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'Sou Silva duas vezes', diz tenor homenageado hoje em SP

Câmara Municipal concede título de Cidadão Paulistano ao tenor Jean William Silva, que cantou até para o papa Francisco

7 ago 2023 - 13h06
(atualizado às 14h10)
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O tenor Jean William Silva, homenageado como Cidadão Paulistano pela Câmara Municipal
O tenor Jean William Silva, homenageado como Cidadão Paulistano pela Câmara Municipal
Foto: Divulgação

O predinho estilo vagão se perde espremido entre outros mais imponentes em Pinheiros, bairro de classe média e, em algumas partes, média alta em São Paulo. O interfone está quebrado e o morador pede para mandar mensagem quando chegar, ele descerá para abrir o portão.

O mecanismo de fechamento automático do portão não está aquelas coisas, precisa segurar um pouquinho para trancar. Irrita. Consigo na segunda vez enquanto rolam os primeiros cumprimentos, a uma certa distância, eu no portão, ele no hall de entrada que, quando atinjo, percebo ser simples, sem os costumeiros sofás.

O sujeito que me atende sorridente é baixinho, negro, camisa e calça comuns, barba rala, cabelo acho que raspado em maquininha número dois, estilo que não destaca ninguém na multidão. Vai pedindo desculpas pelo interfone quebrado enquanto abre a porta do elevador pequeno. Parece haver só um no prédio.

Durante a subida, ele conta que mora ali provisoriamente, explica rápido que tentou comprar o apartamento onde morava, no mesmo bairro, mas não deu certo. Decidiu permanecer em Pinheiros porque é perto do metrô – em São Paulo, estar perto do metrô é quase como estar perto do céu, ou das infernais estações que levam a ele.

O morador, cantor lírico, tenor, abre a porta e é evidente o rodapé soltando em vários pontos. O piano espremido na salinha, encaixado em diagonal, tira minha atenção do rodapé. O piso solto em alguns pontos faz aquela ondinha, tira a atenção do piano. Ele apresenta a mesa que arrumou para a entrevista: bolinho, muçarela enrolada, garrafa de café. Aceito o café, ralo. Penso: ainda bem que ele sabe cantar.

De Barrinha, perto de Sertãozinho, região de Ribeiro Preto

Sempre começo as entrevistas pedindo o nome completo porque costumo esquecer, para garantir que vou redigir corretamente a identificação e, claro, para ir encaminhando a conversa. Jornalismo é um trabalho braçal.

“Meu nome é Jean William Silva. Poderia ser Silva e Silva, duas vezes, porque é sobrenome de pai e mãe”. Ele tem 37 anos, parece ter 17. Tomo o segundo gole no café, péssimo. Eu devia ter posto açúcar. De frente na mesinha do apartamento, descalço, ele vai contando sua trajetória. Nasceu na pequena Barrinha, vizinha a Sertãozinho, e o diminutivo dos nomes representa perfeitamente o tamanho das cidades, ambas próximas a Ribeirão Preto, uma das maiores do interior paulista.

Na carreira, Jean William Silva se apresentou com grandes nomes, como o maestro João Carlos Martins
Na carreira, Jean William Silva se apresentou com grandes nomes, como o maestro João Carlos Martins
Foto: Divulgação

A vida de Jean William Silva parece história de novela. Muita coisa deu certo. Lembro que o melhor conselho a dar para qualquer pessoa é “tenha sorte”. Lógico que na carreira musical de um tenor preto nascido na pobreza, criado pelos avós cortadores de cana, muitos obstáculos surgem. Mas Jean é a prova de que contato com a arte e oportunidade de estudar podem aliviar bastante a tal jornada da vida.

Ele sabe disso, mas não se confunde: nem exalta o sucesso, nem faz questão de relembrar, mas relembra, as inevitáveis cenas de racismo enfrentadas da infância até países europeus, onde estudou e se apresentou, passando pelos Estados Unidos e pela barca de Santos. Relatos de apresentações, encontros com grandes nomes da música, como o maestro João Carlos Martins, além de inúmeros shows com artistas renomados, são entremeados a descrições de enquadrados em aeroportos, comentários ofensivos ouvidos em cafés de Milão, o roubo recente do carro, sua paixão pelo surfe.

Um pouco de linearidade ao relato

Nosso personagem tem uma biografia, O Resumo da Obra, de Élcio Padovez; inúmeros textos na internet relatam seus feitos; notinhas são dadas por disputadíssimas colunas em jornalões. Sintetizo nossa conversa de mais de duas horas. Para maiores detalhes, vão à luta.

“Nunca passei fome, mas nunca passou disso”, resume seus primeiros anos de vida. Duas situações são decisivas em sua infância-adolescência: a paixão do avô pela música, tendo em casa um acordeão, um violão e um violino; e o olhar amoroso de duas professoras.

Jean William Silva, ao centro, quando cantava em igrejas de Barrinha e Sertãozinho, no interior paulista
Jean William Silva, ao centro, quando cantava em igrejas de Barrinha e Sertãozinho, no interior paulista
Foto: Divulgação

Na casa dos avôs, onde Jean William Silva é criado, o avô o ensina a tocar. O neto talentoso canta no coral da igreja católica, festas, casamentos. “Ganhava um troquinho”. Na escola Winston Churchill, em Sertãozinho, a diretora Rose Amorim percebe seu talento e se empolga ainda mais quando ele ganha um concurso de música. Ela batalha e consegue bolsa de estudos em conservatório para o pupilo.

Em uma apresentação, outra professora se impressiona. “Você é a reencarnação de Caruso”, ela diz. “Eu não sabia o que era reencarnação, nem Caruso”. Essa professora, que ele chama carinhosamente de dona Julia, abraça a causa.

Sabe quando a gente encontra, ou é encontrado por quem tem a visão além do alcance? Pessoas que veem em nós aquilo que nem nós estamos vendo? Acho que foi isso que aconteceu com nosso tenor. A professora, rica herdeira, simplesmente o leva para morar na casa dela e financia seus estudos.

Mas financia no grau: motorista, aula de inglês e canto, psicólogo, quarto para morar na mansão, onde há um piano dos bons – não perguntei de qual tipo, mas me pareceu, pela descrição, melhor do que o da sua sala. Também não pergunto, porque repórteres são falíveis, como ele fez para subir com o piano atual até o apertamento onde mora.

Da USP de Ribeirão Preto, conectando com São Paulo

Jean William Silva ingressa na graduação em música na Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto quando o curso está começando, tem dois anos. “Fui um aluno normal. Fui pra barzinho, colei, não fui um aluno brilhante”. Na faculdade, percebe a enorme distância de formação em relação aos colegas, alguns com anos de bagagem em conservatórios. Mas se esforça e tem amigos que o ajudam.

O talento e dedicação de Jean William Silva o levou aos principais palcos. Cantou até para o papa Francisco
O talento e dedicação de Jean William Silva o levou aos principais palcos. Cantou até para o papa Francisco
Foto: Divulgação

Entre eles, a irmã de jornalista famosa em São Paulo que, por sua vez, faz a ponte com o maestro João Carlos Martins. Ele ouve o estudante, adora e vai inserindo o tenor nas oportunidades que surgem. Esse grande maestro, que nos dá orgulho de sermos brasileiros, estará hoje na homenagem a Jean William Silva na Câmara Municipal de São Paulo, além dos pais e avós ainda vivos, amigos, as professoras, e claro, dona Julia, a mulher que o adotou na adolescência e proporcionou sua formação. Não ouso perguntar o sobrenome dela, inferi que não é o caso, sua atitude foi genuína, não publicitária.

Voltando ao início da carreira do tenor Jean William Silva em São Paulo: ele ganha bolsas de estudo, faz gravações com medalhões, participa de orquestras importantes na capital paulista, em outros lugares do Brasil, na Europa, especialmente Milão, Emirados Árabes, Índia, Estados Unidos, mas não África, onde deseja se apresentar. E, sim, como tenor de ópera, apesar de espíritos sebosos que o lembravam não haver protagonistas negros em montagens operísticas.

Sobre este ponto – a possível impossibilidade de um baixinho preto ser tenor de ópera – a terapia paga por dona Julia durante cinco anos o salva. Terapia é fundamental, deveria ser política pública disponível em todo lugar, a qualquer hora, especialmente próxima a pontes altas, trilhos de trem e madrugadas solitárias.

Rodou o mundo, mas São Paulo é o lugar

A capital paulista, impiedosa máquina de moer gente, é o lugar onde Jean quer morar. Importante que seja perto do metrô, talvez Pinheiros mesmo. Na cidade ele fez projetos sociais, quer fazer outros, se apresentou em locais badalados, conheceu gente que abriu portas para sua carreira. Neste ano, está na terceira ópera.

“A concretude da minha carreira só se deu porque eu me mudei para esta capital. Eu que devia dar um título para São Paulo”. Por enquanto, ele recebe. A cidade vai reconhecer hoje seu talento e contribuição.

É “bravo” que se grita durante os aplausos? Hoje, o tenor Jean William Silva ouvirá os dois sons ao receber o título de Cidadão Paulistano
É “bravo” que se grita durante os aplausos? Hoje, o tenor Jean William Silva ouvirá os dois sons ao receber o título de Cidadão Paulistano
Foto: Divulgação

Pergunto como será este dia, se vestirá seu melhor terno, preparará discurso. “Não preparo discurso, vai ser no improviso. No máximo, anotar uma coisa ou outra que não quero esquecer”.

E vai falar o quê? Isso ele sabe de cor: “Tenho muito para falar e muito para agradecer. O Brasil passou por momentos obscuros na cultura, na ciência. Estamos vivendo uma transformação positiva, humanizada. Ainda existe uma enorme lacuna entre pretos e brancos. Espero que essa lacuna diminua e que o Brasil se torne um país pacífico”.

Nós também, nos dois aspectos.

ANF
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