SeaWorld: espetáculo ou crueldade? Vimos as famosas orcas
Shows com orcas que emocionam o público, mas preocupam os especialistas, são a principal marca do SeaWorld
Subo a rampa de acesso Shamu Stadium, onde as baleias do SeaWorld se apresentam. A sensação é bem parecida com a de entrar em uma arena de futebol ou chegar perto de um superstar: lotação, vendedores de pipoca, pessoas correndo para chegar a tempo do espetáculo.
Me acomodo na área reservada para o grupo de jornalistas convidados a conhecer, de perto, o trabalho dos tratadores de animais do complexo de parques situado em Orlando, na Flórida. A ansiedade para ver o show não era uma exclusividade das crianças.
Avisto parcialmente duas das sete orcas que moram lá – elas estavam atrás do palco, aguardando os comandos para entrar em cena. Os telões se movimentam, com um vídeo sobre a conservação dos oceanos e da espécie.
O show vai começar, pressinto. Uma música entoada por uma voz feminina começa a tocar. Não sou de chorar. Aguardo, tensa. E eis que a primeira baleia emerge da água, em um salto que faz a plateia gritar. Meus olhos se enchem de lágrimas. É encantador.
A partir de então, começam a surgir as demais integrantes do grupo, respondendo brilhantemente às ordens dos treinadores. Um deles oferece um mísero peixinho para uma das orcas. Ela faz que não com a cabeça. Ele então sugere dar o balde inteiro de peixes. Engraçadinha, ela responde de forma afirmativa. A plateia vai à loucura.
Elas dançam nas águas límpidas da piscina. Pulam. Chegam perto do público. E, claro, não deixam a desejar no momento mais aguardado: quando provocam os espectadores ao bater com o rabo na água, molhando completamente os ocupantes das primeiras fileiras.
Sinto um misto de encantamento, pela inteligência e obediência daqueles animais gigantescos, e dó, muito dó. A fidelidade com a qual aquelas baleias respondiam aos comandos me emocionou e me encheu de dúvidas.
Será que elas são bem tratadas? Essas piscinas são suficientemente grandes para suportar este porte de animal, acostumado com a liberdade da natureza? Não seria exaustivo trabalhar cerca de 15 horas por dia?
Assisti não só uma, mas duas vezes ao documentário Blackfish, de Gabriela Cowperthwaite, lançado em 2013. Nele, a americana reúne uma série de depoimentos de ex-treinadores do parque que denunciam maus-tratos e condições impróprias de sobrevivência.
Depois do filme, o SeaWorld acabou se tornando um alvo mais evidente de críticas e, sobretudo, questionamentos. Afinal, qual é a real necessidade de se manter orcas em cativeiro tendo como fim o entretenimento?
A viagem organizada para a imprensa tinha justamente o objetivo de responder a estas dúvidas. Conversei com o treinador mais antigo do parque, que hoje coordena a equipe do Shamu Stadium, Craig Thommas. De volta ao Brasil, falei com especialistas da área para confrontar os pontos mais críticos. Confira a seguir.
Avalanche de críticas
Umas das mais marcantes imagens que o mundo já viu sobre o SeaWorld foram as encantadoras coreografias encenadas pelos treinadores com as orcas dentro da água. Eles nadavam juntos e eram arremessados para fora da piscina, em um balé muito bem sincronizado.
Depois da morte da treinadora Dawn Brancheau, em 2010, que foi atacada pela orca Tilikum – responsável por outros ataques, segundo o documentário –, o show mudou, e os treinadores fazem todos os comandos fora da água, sem interagir diretamente com as orcas. “Mas eles ainda nadam com as baleias durante o treinamento”, afirma Craig, que confirma, inclusive, que Tilikum está vivo e continua ativo nos shows.
Segundo ele, nenhum procedimento foi mudado após o lançamento do filme. Craig também não acredita que o vídeo tenha derrubado o número de visitantes, embora assuma que o parque venha enfrentando “anos desafiadores”. “Não temos certeza sobre a causa. Mas estamos voltando, tivemos 11 milhões de visitantes no ano passado.”
Para o treinador, Blackfish é desonesto. “Não nos representaria fielmente”, pontua. “Eu acho que as pessoas deveriam fazer sua própria pesquisa e olhar os dois lados. Acho que vão descobrir que o que fazemos é bom para os animais. Honestamente, não acho que o documentário ajuda os animais de forma alguma, pelo contrário, acho que não representa bem o que fazemos aqui”, acrescenta.
Craig, inclusive, trabalhou com todos os ex-treinadores que criticam o SeaWorld no polêmico documentário. “Eles tiraram vantagem de uma situação horrível. Pessoalmente, não gostei. O triste é que isso envenena a mente das pessoas. E foi muito bem feito, no sentido de contar mentiras e manipular. Isso é o mais triste para mim.”
No site da instituição, é possível encontrar respostas para boa parte das críticas que ganharam força após o documentário.
Em prol do cativeiro
A questão animal é muito complexa: é difícil achar a linha que separa o respeito do que é simplesmente aceitável socialmente. A vaca que engorda no pasto, e depois é morta para alimentar humanos, é algo comum no Brasil, mas em alguns países não.
Dentro da área do entretenimento, no entanto, o buraco é mais embaixo. Incluem-se aí diversos exemplos de maus-tratos, como animais de rodeios, circos, cavalos e pôneis usados para passeios em cidades turísticas, muitas vezes com ossos à mostra e sem as mínimas condições de sobrevivência.
O cativeiro, dentro deste cenário mais amplo, não é o principal “x” da questão. Os profissionais entrevistados o defendem quando tem fins de preservação da espécie ou de conscientização, como ocorre de maneira adequada em muitos zoológicos. “Existem espécies que só existem porque foram mantidas em cativeiro”, pondera Carolina Rocha, veterinária e especialista em comportamento animal.
O SeaWorld, embora seja associado diretamente às famosas baleias, tem um extenso trabalho de resgate e reabilitação de outros tipos de animais, além de um diálogo educativo com os visitantes.
Discurso ecológico
Nos diferentes parques do SeaWorld, o discurso de conscientização sobre a natureza e o respeito com os animais é bastante presente. Em contextos diversos, eles buscam sempre bater na mesma tecla: uma pequena atitude do ser humano pode afetar diretamente a natureza, o meio ambiente e, por consequência, a preservação de algumas espécies.
Naomi Rose, cientista de animais marinhos do Animal Welfare Institute (AWI), de São Diego, Califórnia, no entanto, não acredita neste diálogo. “O que eu realmente não gosto sobre o SeaWorld é que eles contam mentiras para o público sobre a ecologia e a biologia das orcas, em nome de justificar seu negócio. Eles são uma empresa com fins lucrativos. Irão proteger seus acionistas primeiro e fazer o que é certo com as baleias em um distante segundo lugar. Acho que isso é antiético”, dispara.
Para ela, nem mesmo os funcionários têm plena consciência do que replicam aos visitantes. “Acho que alguns dos treinadores acreditam no que estão dizendo, mas eles estão errados. Mentiras são contadas a eles pelos seus empregadores, assim como é para o público, e eles não conhecem o suficiente sobre orcas selvagens pare reconhecer essas mentiras”, reforça.
Quanto tempo vive uma orca?
Uma das críticas levantadas por Blackfish é o tempo de vida médio das orcas. Segundo o SeaWorld, elas vivem de 30 a 50 anos, tanto no parque, quanto na vida selvagem.
Os especialistas, no entanto, discordam. Naomi diz que, na natureza, alguns machos conseguem chegar até os 70 anos de idade, e as fêmeas podem alcançar os 90. “Em cativeiro, a maioria das orcas não passa dos 25 anos”, completa.
O veterinário Milton Marcondes, diretor de pesquisa do Instituto Baleia Jubarte, observa que é muito difícil fazer a contagem de anos das orcas livres, mas concorda que, presas, elas vivem menos. “A média de sobrevivência dos bichos lá no SeaWorld é menor do que na natureza segundo os estudos que a gente vê. Eles usam nomes artísticos, como Shamu, mas na verdade a rotatividade é bem grande”, observa.
É hora do show!
Outro ponto que vale a ressalva é a rotina das orcas. Segundo Craig, as baleias chegam a fazer oito interações por dia; começam por volta das 8h e terminam em torno de 23h, dependendo da época do ano. “Os shows são como a hora da brincadeira. É algo fácil para elas.”
Craig também afirma que as baleias são como humanos: tem dias bons e ruins. Quando não estão dispostas, simplesmente não participam dos shows. Com base em sua vivência com os animais, ele diz que as baleias parecem gostar do trabalho.
Para o veterinário João Carlos Gomes Borges, diretor-presidente da Fundação Mamíferos Aquáticos, impor uma rotina desse nível não é algo tão simples assim. “Os animais mantidos com o propósito de entretenimento, assim como acontece com animais de circo, têm uma rotina bastante séria em termos de treinamento.”
Os possíveis ataques não divulgados a treinadores seriam uma resposta do bicho a esta imposição de rotina, na opinião de Milton. “Existem centenas de relatos de ataque de orcas ao treinador, casos documentados, fora os que acontecem nos bastidores e ninguém fica sabendo. No entanto, até hoje nunca vi um único relato de ataque de orca a humanos na natureza”, reforça. “Não existe animal agressivo ou não agressivo, existe a situação”, completa.
Piscina não é mar
Questionado sobre o espaço físico onde as baleias moram, Craig explica que elas ficam em sete piscinas conectadas, em um total de 7 milhões de galões de água (equivalente a 26,5 milhões de litros). Vale lembrar que uma fêmea adulta pesa de 2 a 4 toneladas, enquanto machos adultos pesam entre 4 a 6 toneladas.
O parque tem um cuidado especial com a qualidade da água, que é monitorada 24 horas por dia para ter o nível de sal e temperatura adequados e próximos do que seria o ambiente natural do animal.
A diversidade da vida marinha, por sua vez, não se compara às piscinas do parque, acredita Milton. “Em um simples mergulho no mar, o bicho atravessa variações de temperatura, vê peixes e outras espécies de animais, relevo, corrente marítima. É um ambiente muito mais rico. Lá eles não têm isso, é uma piscina com água super transparente. Para um animal inteligente, como é o caso das orcas, vira um tédio.”
Naomi reforça que as orcas podem nadar cerca de 160 quilômetros por dia. “Elas são sempre ativas na vida selvagem. No cativeiro, elas podem permanecer imóveis na superfície por vários minutos – e até por horas –, o que é completamente anormal na natureza. Claramente os recintos no SeaWorld são muito pequenos para estas baleias.”
Estresse
Em sua tese de mestrado, a veterinária Carolina acompanhou cães que atuavam por uma hora, de uma a três vezes por semana, como terapeutas de idosos, crianças ou pacientes de hospitais. Nestas situações, o trabalho não chega a ser pesado: o cachorro interage, recebe carinho e brinca, para levar um pouco de alegria aos pacientes visitados.
Após análises,ela comprovou que as interações não só aumentavam de forma significativa os níveis de cortisol (hormônio do estresse) dos animais como também influenciavam no seu comportamento. “Se nessa situação, em que ele trabalha somente uma hora por dia poucas vezes por semana, eles ficam estressados, a probabilidade de as baleias, que trabalham o dia todo, ficarem estressadas, é bem grande.”
O estresse, segundo ela explica, aumenta a liberação de cortisol e adrenalina. “Naturalmente, há o equilíbrio destes hormônios. Quando estão muito elevados, comprometem várias funções do organismo como a reprodução, o metabolismo e o sistema imune. Isso também contribui para o aumento da glicemia e para síndromes cardíacas de um modo geral.”
De acordo com a especialista, também são comuns doenças associadas ao estresse, como úlcera, TOC’s (Transtorno Obsessivo Compulsivo), irritabilidade e agressividade.
O SeaWorld rebate a questão, afirmando que acompanha os níveis de cortisol das orcas. No entanto, eles justificam que o índice, por si só, não vale se não for analisado o contexto todo. “Quando você estuda o nível de cortisol para determinar o estado de estresse do animal, a quantidade pode sim estar mais alta do que o normal, ou pode ser apenas um ‘bom estresse’, que pode indicar que o animal está com fome, doente, com frio, animado ou agitado por ter se exercitado recentemente. É totalmente normal o nível de cortisol subir e descer durante o dia, o que ajuda o corpo a perceber se é hora de dormir ou acordar, por exemplo.”
Dentes cerrados, barbatanas curvas
Outro ponto consensual entre os especialistas são algumas alterações físicas que os animais de cativeiro apresentam – e que, de um modo geral, o parque entende como mutações normais devido à vivência fora do mar.
A explicação seria a chamada “estereotipia”, que é a repetição de um comportamento destrutivo. “Orcas em cativeiro têm dentição mais fraca. Elas mordem as paredes de concreto e os portões de metal, obsessivamente, devido ao tédio e à agressividade. Elas quebram os dentes inferiores, como resultado. Isso abre espaço para bactérias e outros organismos causadores de doenças entrarem no sistema sanguíneo destes animais”, explica Naomi.
No site do parque, eles justificam que na vida selvagem também são encontradas orcas com dentição desgastada.
Naomi também vê problemas no fato de as baleias ficarem mais tempo na superfície do que debaixo d’água, diferente de orcas selvagens, o que traz outros tipos de problemas físicos. “Isso as expõem a queimaduras solares, mordidas de mosquitos e lento colapso de sua barbatana dorsal. Como a barbatana não é apoiada pela água, a gravidade a puxa para baixo à medida que ela cresce.”
Segundo a cientista, não são conhecidos casos de queimadura solar ou doenças transmitidas por mosquitos em baleias livres. “Em resumo, as baleias de cativeiro são mais propensas a morrer de infecção do que as selvagens. Elas são menos ativas e, portanto, estão em pior condição. Elas são mais entediadas, mais agressivas e mais neuróticas.”
Filhotes: um assunto delicado
Críticos afirmam que o SeaWorld não respeita o vínculo familiar das baleias, separando fêmeas de seus filhotes ou desunindo animais da mesma família. “A orca é um animal que vive em grupos estáveis, com três, quatro gerações. No mesmo grupo você vê avós, filhas, netas. Elas têm uma estrutura social muito forte. Nadam juntos, ajudam umas às outras quando encalham. O que acontece no cativeiro é que essa estrutura é completamente quebrada. São populações diferentes, que são misturadas. E assim começam os problemas de agressividade entre as orcas”, explica Milton.
Craig confirma que alguns filhotes são enviados para outros parques do complexo, depois dos primeiros anos. Mas o parque responde às críticas afirmando que reconhece a importância do laço entre mães e filhotes. “Nós conduzimos os programas de reprodução de uma maneira que promove a diversidade genética. Onde antes era necessário mover as baleias para assegurar a diversidade, hoje, com os avanços na inseminação artificial, a transferência de animais é cada vez menos comum. Em raras ocasiões, quando as mães não podem cuidar de seus filhotes por conta própria, nós desenvolvemos técnicas pioneiras para interferir com eficiência no crescimento desses filhotes."
Programa de reprodução
O programa de reprodução, iniciado em 1984, já gerou 24 baleias. “O grande êxito destes programas de reprodução está no fato de todos os animais se apresentarem saudáveis e bem adaptados, além de serem fontes de informações para estudos de biologia marinha e fisiologia reprodutiva”, informa o SeaWorld.
Naomi discorda da eficiência da iniciativa. “Mesmo as orcas nascidas em cativeiro sofrem no confinamento. Elas são muito grandes, ativas, inteligentes e socialmente complexas para viver de forma adequada em cativeiro. Independentemente de terem nascido lá ou não. O programa de reprodução tem que acabar, assim como a exibição destas espécies em cativeiro.”
Para Milton, a combinação de ambiente artificial e desorganização social contribuem para uma qualidade de vida mais pobre. “Imagine se eu colocasse você em uma sala, com TV, ar-condicionado, um médico de plantão, sem risco de ser assaltado, atropelado. Digo para você que vai viver 80 anos, mas não pode sair de lá. Você ia querer?”, questiona o veterinário.
Emoções eu vivi
Eu estaria mentindo se dissesse que não me emocionei com tudo o que vi. Que não me peguei de boca aberta diante de shows tecnicamente impecáveis. Que voltei a ser criança. Vi a alegria no rosto de pessoas, de todas as idades, encantadas com a possibilidade de chegar tão perto dos animais.
Qual a chance de, na vida real, de se tocar um pinguim? De nadar com um golfinho? De ficar a poucos metros de uma orca?
Também é inegável a conexão que os treinadores têm com aqueles animais, e o carinho com o qual cuidam deles, independentemente da espécie, em qualquer um dos parques do complexo.
Aparentemente – e sem checar os bastidores – todos são muito bem tratados. Mas ainda assim estão fora do seu ambiente natural. Fazendo algo que é imposto pelo homem, e não o que a sua natureza manda.
Passada a emoção, me peguei com a mesma culpa que senti depois de uma viagem à Monte Verde, Minas Gerais, recentemente, quando topei participar de um passeio a cavalo com amigos. Não refleti: apenas fui.
Só depois de uma longa jornada de subidas e descidas de morros, analisei o cavalo que me levou para ter alguns minutos de diversão. Ele parecia abatido, cansado. Me senti o pior ser humano do mundo: por que não questionei? Por que não me coloquei no lugar daquele animal por um segundo antes de montá-lo?
Não questionei porque sou humana, e às vezes simplesmente me deixo levar pela emoção. E a emoção não dá espaço para o senso crítico.
Senso crítico, esse, que o animal não tem, muito menos o livre arbítrio para escolher onde quer morar. Mas nós, sim. Resta saber se vale carregar o peso da culpa em nome de alguns momentos de diversão.
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