O invisível que se vê
Conhecer o casal foi, para mim, mais do que um encontro casual em um voo, porém, um convite a repensar o que significa ver
Era um voo longo para Roma. Lá fora, a noite corria silenciosa, e dentro do avião, os passageiros se ajeitavam entre cochilos, burburinho de conversas curtas e o brilho dos filmes nas pequenas telas. Seria mais um voo entediante que pareceria não ter fim. Acomodei-me na poltrona e, ao lado, havia um casal simpático, que parecia estar em lua de mel. Alguns minutos depois, já puxei papo e o tempo começou a correr mais leve. Falamos de viagens, curiosidades, da vida em geral. Eu, querendo ser educado, mantinha o pescoço virado em direção a Marcos, que estava ao meu lado, como quem faz questão de olhar o outro nos olhos enquanto fala, quando ele me diz:"Não precisa falar comigo virando o pescoço, pode olhar pra frente! Tanto faz… eu sou cego!". O comentário me desarmou. Sorri, meio sem jeito, e naquele instante, percebi que estava diante de alguém que enxergava a vida com leveza.
O mergulho no escuro
A história de Marcos começa com glaucoma congênito, uma doença rara e agressiva, que o obrigou a enfrentar cirurgias desde os primeiros dias de vida. Cresceu com baixa visão, mas ainda com uma certa autonomia. Aos 20 anos, a doença começou a avançar. Já havia perdido a visão do olho esquerdo anos antes, depois de um descolamento de retina durante uma partida de futebol. Restava-lhe a visão do outro, único funcional. Foi quando, aos 22, precisou tomar a decisão mais difícil de sua vida.
"Era operar e tentar preservar o pouco que eu ainda tinha, correndo todos os riscos envolvidos, ou deixar a cegueira vir gradativamente. Decidi operar. Sempre fui adepto de tentar, de ir pra cima, de arriscar. Mas a cirurgia resultou em uma hemorragia. Dormi enxergando e acordei cego." Ao retirar o tampão, mergulhou em um vazio. "Foi como cair em um buraco negro", costuma dizer. Só que, no fundo desse buraco, as vozes ainda chegavam — vindas do mundo dos que enxergavam.
Vieram mais duas cirurgias, na tentativa de reverter a hemorragia. Nenhuma funcionou. A cegueira era definitiva. Restava a ele reaprender a viver. Marcos não demorou a se levantar. Procurou cursos de mobilidade e informática, reaprendeu a caminhar sozinho pelas ruas, a usar a tecnologia adaptada. Descobriu leitores de tela, aplicativos, e sobretudo, descobriu pessoas da sua idade vivendo situações parecidas. Ali, percebeu que era possível ser jovem e cego ao mesmo tempo. Um ano depois, já estava empregado. "Começava o Capítulo Dois", resume.
A cegueira como ficção
A partir dali, entendeu que a vida sem visão seria também vida de imaginação. "A cegueira é uma constante ficção. O tempo todo estou supondo imagens, a partir das cores e das formas que eu vi. Nos sonhos, isso já me é entregue naturalmente, não preciso me esforçar". No entanto, há limites para essa invenção. Diante do espelho, não se reconhece. Precisa do olhar de alguém para saber de si: o quanto envelheceu, como está seu rosto, que marcas o tempo já deixou. Sua autoimagem se reconstrói a partir das palavras dos outros.
Nos sonhos, a fronteira é ainda mais curiosa. Muitas vezes, se vê caminhando com a bengala, mas com plena visão. Como se o inconsciente não separasse memória e ausência, mas as colocasse lado a lado. E as cores, guardadas desde sempre, continuam vivas. O azul do céu, o vermelho de uma camisa, o amarelo de uma tarde de verão — tudo permanece intacto em sua lembrança.
Rostos inventados
A imaginação não se limita ao próprio reflexo. Marcos também cria os rostos das pessoas que conhece depois da cegueira. "Minha mente funciona como uma Inteligência Artificial. A partir de uma voz, já saio construindo um rosto, corpo e roupa para aquela pessoa. Se tenho contato físico, como segurar no braço, o prompt fica ainda melhor". Assim, transforma vozes em imagens, timbres em expressões, palavras em silhuetas. A ausência de visão se converte em invenção constante.
O cotidiano e os desafios invisíveis
O dia a dia de Marcos combina humor, resiliência e obstáculos. Ele organiza seu guarda-roupa com aplicativos de acessibilidade e brinca ao dizer que Renata é sua personal stylist. A tecnologia lhe dá autonomia, mas não apaga os desafios de viver numa cidade pouco preparada para quem não enxerga. As calçadas irregulares, o transporte público confuso, o preconceito velado, tudo isso ainda pesa.
Há histórias engraçadas, como a vez em que sua bengala levantou, sem querer, o vestido de uma mulher numa escada rolante. E também episódios dolorosos, por exemplo, quando uma funcionária do metrô o ameaçou de prisão por causa de um bilhete temporariamente bloqueado, não se importando com a sua deficiência. "O difícil não é ser cego, mas lidar com a cegueira dos outros", ele reflete.
O amor que ilumina
Foi justamente no metrô, que Renata entrou em sua vida. Ela caminhava atrás dele, ofereceu ajuda e, daquele gesto simples, nasceu uma amizade que logo se tornaria amor. Com o tempo, ela entendeu que estar ao lado de Marcos era também enfrentar o preconceito disfarçado em olhares e comentários. Havia quem a visse como cuidadora, nunca como parceira. Assim como quem duvidasse da autonomia de Marcos.
Mas, para ela, cada viagem e cada dia ao lado dele foram mostrando o contrário: que amor não se mede em ausências, mas na forma de estar presente. É Marcos quem prepara os roteiros de viagem, com detalhes pensados, para fazê-la sorrir. Para Renata, cada plano é também uma declaração silenciosa de afeto.
Viajar além dos olhos
Para Marcos, viajar não é apenas ver paisagens. É sentir. O aroma de um mercado, a música que ecoa de uma praça, a textura das pedras históricas sob os pés cansados. "Se viajar fosse só enxergar, bastava abrir o Instagram", brinca. Para ele, é experimentar cada lugar com todos os sentidos. O que não percebe diretamente, recebe em descrições de Renata ou até de aplicativos. A vida, insiste, seria frustrante apenas se fosse feita de visão.
Lições invisíveis
A cegueira não o transformou em bandeira, nem em mártir. Foi tombo, depois recomeço. Derrubou-o, fez com que se levantasse e, no gesto de se reerguer, encontrou a humildade como companhia. Aprendeu que ninguém se sustenta sozinho para sempre e que a liberdade, para qualquer um de nós, dura só até a próxima esquina. Renata confirma: conviver com Marcos é aprender todos os dias que enxergar não depende dos olhos, mas da forma como nos conectamos ao mundo.
Conhecer o casal foi, para mim, mais do que um encontro casual em um voo, porém, um convite a repensar o que significa ver. Porque a visão, descobri, não é apenas um sentido: é presença, escuta, tato e partilha. Marcos me ensinou, naquela viagem e em cada gesto de sua história, que a vida é invisível, mas não por isso, menos nítida.