Dezembro não termina o ano; ele expõe tudo o que foi sustentado em silêncio
Por que dezembro escancara o cansaço emocional, intensifica a "dezembrite" e revela os limites de um ano vivido em modo de sobrevivência
Há algo em dezembro que não pode ser explicado apenas pelo calendário. É como se o corpo, finalmente, parasse de negociar. Durante o ano inteiro, a mente insiste, empurra, racionaliza. Diz que dá para aguentar mais um pouco, que depois melhora, que agora não é hora de sentir. Mas o corpo não esquece. Ele registra, ele soma e, quando o ritmo externo começa a desacelerar, ele cobra.
Dezembro não chega leve. Ele chega revelador.
Como médica psiquiatra, observo esse movimento se repetir ano após ano. Pessoas que passaram meses funcionando em alta performance começam a apresentar sintomas difusos. Um cansaço que não passa com o sono. Uma irritabilidade que não combina com a própria personalidade. Uma tristeza sem causa aparente. Uma dificuldade real de se entusiasmar, mesmo diante das conquistas.
Popularmente, esse estado ganhou o nome de "dezembrite". Um termo informal, quase bem-humorado, mas que descreve com precisão um fenômeno neuroemocional real. Não é preguiça. Não é drama. É o sistema nervoso entrando em exaustão após longos períodos de ativação contínua.
Encerramento de ciclos
O psiquiatra Luiz Eduardo Xavier descreve esse momento com clareza ao afirmar que "o último mês do calendário escancara o encerramento de um ciclo. É quando, quase sem perceber, fazemos uma auditoria interna entre o que planejamos, o que idealizamos e o que realmente conseguimos viver nesse período". Quando essa conta não fecha, o impacto não é apenas psicológico, mas emocionalmente profundo. A discrepância entre expectativa e realidade costuma se traduzir em melancolia, culpa, arrependimento e um tipo de luto silencioso que nem sempre encontra espaço para ser elaborado.
Essa auditoria interna acontece justamente quando o ano desacelera por fora e acelera por dentro. E se torna ainda mais pesada em um cenário de comparação constante. As redes sociais exibem recortes cuidadosamente editados de felicidade, sucesso e plenitude. Quando a vida real é comparada com essa vitrine, cresce a sensação de fracasso e inadequação. Como aponta Luiz Eduardo Xavier, é nesse momento que a grama do vizinho parece sempre mais verde.
Neurociência explica
Do ponto de vista da neurociência, o que acontece ao longo do ano é um predomínio prolongado do modo de sobrevivência. O cérebro aprende a operar sob alta demanda, com liberação frequente de cortisol e adrenalina. Em situações pontuais de estresse, esse mecanismo é adaptativo. Quando se torna crônico, é adoecedor.
O problema é que muitas pessoas normalizaram viver em hiperalerta. Normalizaram acordar cansadas. Normalizaram a sensação de urgência constante. Normalizaram a dificuldade de desligar a mente à noite. O cérebro, porém, não entende isso como normalidade. Ele interpreta como ameaça prolongada.
Em dezembro, quando a agenda começa a aliviar e as demandas externas diminuem, o organismo tenta migrar para um estado de recuperação. É nesse momento que os sintomas aparecem. Não porque a pessoa esteja pior, mas porque finalmente o corpo encontra espaço para sinalizar. Por isso, tantas pessoas adoecem justamente nas férias. Não é coincidência. É fisiologia.
O burnout que não paralisa, mas corrói
Existe uma imagem equivocada do burnout como um colapso súbito. Na prática clínica, o que mais aparece é o burnout funcional. A pessoa segue trabalhando, cuidando, entregando, sendo referência para todos. Por fora, tudo parece sob controle. Por dentro, há um esgotamento profundo.
Esse tipo de burnout é especialmente perigoso porque é socialmente recompensado. Pessoas muito adaptáveis, responsáveis e disponíveis costumam ser elogiadas. Aos poucos, aprendem a ignorar os próprios limites. O cérebro passa a operar em vigilância constante. O eixo do estresse permanece ativado. E o corpo paga o preço.
Em dezembro, esse modelo começa a falhar. A energia que sustentava a performance acaba. Surge a apatia, a irritação, a sensação de vazio. Não porque a pessoa seja fraca, mas porque ultrapassou, por muito tempo, aquilo que era biologicamente possível sustentar.
Natal, expectativa e a ditadura da felicidade
O Natal carrega um peso simbólico intenso. Ele ativa memórias, vínculos, expectativas e experiências passadas. Para o cérebro, não é apenas uma data. É um gatilho emocional complexo. Há quem associe o Natal a acolhimento e pertencimento. Outros o associam a conflitos familiares, perdas, frustrações ou solidão. Nenhuma dessas respostas é errada. Elas são construídas ao longo da vida.
O sofrimento surge quando existe uma obrigação social de estar bem. De demonstrar felicidade. De agradecer o ano, mesmo quando ele foi duro. Como observa Luiz Eduardo Xavier, somos alvo de uma verdadeira ditadura da felicidade. Dezembro chega embalado por mensagens de gratidão, celebração, reconciliação e família. Essa promessa se torna quase intolerável para quem não encontra motivos para comemorar.
Memórias de dezembro
Além disso, dezembro costuma reativar fantasmas antigos. Reencontros e rituais familiares frequentemente despertam críticas, comparações, conflitos e lembranças difíceis da infância. Para quem perdeu vínculos, viveu um luto, terminou um relacionamento ou está distante da família, esse período amplifica a solidão. O silêncio emocional cresce justamente quando o mundo parece exigir celebração.
Do ponto de vista psiquiátrico, negar emoções não as elimina. Emoções reprimidas tendem a se manifestar no corpo, no humor, no sono e na ansiedade. Talvez o Natal precise ser ressignificado. Menos como um palco emocional e mais como um espaço possível de honestidade. Estar presente não significa estar feliz. Significa estar inteiro.
Finalizar ciclos é um processo cerebral, não apenas simbólico
Encerrar ciclos não é um conceito abstrato. É uma necessidade neuropsicológica. O cérebro humano precisa de fechamento para organizar memórias emocionais. Quando um ciclo não é elaborado, ele permanece ativo na mente, consumindo energia psíquica.
Isso explica por que tantas pessoas entram no novo ano carregando o peso do anterior. Mudam o calendário, mas não processam as experiências. Finalizar ciclos envolve reconhecer perdas, aceitar limites, revisar expectativas e abandonar narrativas que já não servem. Quem eu precisei ser este ano para sobreviver? E quem eu não quero mais precisar ser? Esse processo não é rápido nem confortável. Mas é profundamente regulador do ponto de vista emocional.
O cansaço que não melhora com férias
Muitos chegam ao fim do ano acreditando que precisam apenas descansar. Mas, após alguns dias de pausa, percebem que algo continua fora do lugar. Isso acontece porque o esgotamento não é apenas físico. Ele é existencial.
Cansa viver desconectado do que faz sentido. Cansa sustentar relações desequilibradas. Cansa adiar escolhas importantes. Cansa viver em função do que se espera, e não do que se sente. O cérebro responde a esse desalinhamento com sintomas. Não como punição, mas como sinal. Sintomas são linguagem. E dezembro amplifica essa linguagem.
Um outro jeito de encerrar o ano
Talvez este não seja o momento de grandes promessas, metas rígidas ou transformações instantâneas. Talvez seja o momento de escutar com mais atenção. O que este ano revelou sobre meus limites? Onde eu me violentei emocionalmente tentando dar conta de tudo? O que precisa ficar aqui para que o próximo ano não comece pesado demais?
Encerrar o ano não é apagar o que foi difícil. É integrar. É reconhecer que você fez o melhor possível com o nível de consciência e recursos emocionais que tinha naquele momento. Isso é maturidade emocional. Isso é saúde mental.
Como bem resume Luiz Eduardo Xavier, talvez a pergunta não seja por que dezembro é melancólico para tantas pessoas, mas por que exigimos que ele seja feliz para todos. Para alguns, dezembro é celebração. Para outros, é travessia. Em cada vida, uma narrativa. Que dezembro seja menos cobrança e mais compaixão pela própria história. Porque, muitas vezes, o maior presente de fim de ano não é começar algo novo. É permitir que algo termine em paz.
Sobre a autora
Jéssica Martani é médica psiquiatra, especialista em TDAH, saúde mental e regulação emocional. Coordena a pós-graduação em TDAH do Instituto TDAH, reconhecida pelo MEC, em parceria com a Universidade Anhanguera. É colunista da Bons Fluidos (Editora Caras) e criadora do canal Brilhantemente, onde traduz temas complexos e reflexões acessíveis para quem busca equilíbrio emocional e transformação pessoal. Saiba mais em Instagram e YouTube