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Transexuais criticam filtro de mudança de sexo do Snapchat e defendem mudanças no aplicativo

Ferramenta é motivo de diversão para muitos usuários, mas incomoda parte do público que viveu preconceitos durante a transição de gênero

10 jun 2019 - 17h37
(atualizado às 17h40)
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A novidade do Snapchat desperta a curiosidade de quem quer se ver no gênero oposto: basta um clique para homens ganharem feições femininas e mulheres se verem com barba e traços mais robustos. A brincadeira rende piadas e estimula o imaginário dos usuários, mas incomoda parte da comunidade transexual e não-binária - que enfrenta os tabus e preconceitos da vida real no dia a dia.

Kakah Moreira, de 30 anos, que se identifica com o sexo feminino desde pequena, é uma das pessoas que criticam o filtro. Criada entre os ensaios da escola de samba Imperador do Ipiranga, ela relembra a infância quando ainda estava em um corpo masculino. "Eu ficava encantada com aquelas mulheres lindas, altas, na frente da bateria. Queria ser igual a elas, uma rainha."

O tempo passou e ela enfrentou preconceitos e crises de identidade até se aceitar como mulher transexual, o que a faz sentir que a ferramenta do Snapchat banaliza a sua história de vida. "É uma brincadeira complexa e sem noção às vezes. A gente passa por diversos problemas sociais e comportamentais para se entender trans, então eu sinto que esse filtro brinca com as minhas decisões", critica.

"Eu fiz minha versão masculina no aplicativo e não postei por uma questão emocional. Tiveram amigas que gostaram e outras que não por nunca terem se visto com pelo na cara e fisionomia máscula. A maioria nem está publicando, porque não se sente à vontade para mostrar [uma versão do sexo oposto]", completa.

Kakah ressalta que não é contra a existência do aplicativo, já que "muitas pessoas se divertem com ele". Mas defende que o Snapchat faça campanhas de conscientização para que a novidade leve brincadeira e informação ao mesmo tempo para os usuários, principalmente neste mês do orgulho LGBT+.

O pedido da sambista por políticas de conscientização no aplicativo não vem à toa. Além de ser uma rede social que voltou a atrair o público - devido aos filtros de mudança de sexo e de criança -, o Atlas da Violência, divulgado no começo deste mês, aponta que os crimes de agressão, lesão corporal, homicídio e tentativa de homicídio contra a população LGBT+ somaram, juntos, mais de 15 mil denúncias no Disque 100 entre 2011 e 2017. "É válida qualquer iniciativa para quebrar o preconceito e os paradigmas", afirma Kakah.

Veja abaixo o filtro aplicado a jogadores de futebol:

Contatada pelo E+ desde a última quarta-feira, 5, em busca de um posicionamento oficial, a equipe do Snapchat não respondeu às perguntas encaminhadas por e-mail pela reportagem. De acordo com a assessoria de imprensa da empresa, os porta-vozes costumam atender às demandas um dia após o envio da solicitação, mas isso não ocorreu.

'O filtro do Snapchat reflete o que a nossa sociedade é'

Stéfano Araújo, de 22 anos, é homem transexual (transição do sexo biológico feminino para o masculino) e já usou o filtro de mudança de gênero algumas vezes. Apesar de não sentir o mesmo mal-estar de Kakah e as amigas dela, ele reconhece que a novidade abre precedentes para brincadeiras de mau gosto.

"O brasileiro é hipócrita e tem pouca empatia, porque na hora de abrir o aplicativo é brincadeira, mas quem é trans e faz cirurgia de mudança de sexo é visto como um 'viadinho afeminado'. Não aceitam sua identidade", critica. "O filtro do Snapchat reflete o que nossa sociedade é: quando brinca, ela está ok; mas quando a situação sai do virtual e acontece com alguém próximo, ela fica violenta", completa.

A opinião de Stéfano se reflete em números. De acordo com um relatório da ONG Transgender Europe, de novembro de 2018, o Brasil é o País onde mais se mata transexuais no mundo. Entre 1º outubro de 2017 a 30 de setembro de 2018, 167 foram assassinados. A pesquisa, feita em 72 nações, classificou o México em segundo lugar, com 71 vítimas, e os Estados Unidos em terceiro, com 28.

Diante das estatísticas, o jovem acredita que a equipe do Snapchat poderia usar o desconforto que o filtro causa em pessoas trans para conscientizar e, consequentemente, ajudar o aplicativo a crescer. "O Snapchat ficou abandonado e esquecido depois que o Instagram dominou tudo. A galera voltou a usá-lo por causa dos filtros, então seria uma jogada de marketing abraçar a pauta LGBT. É uma comunidade muito forte nas redes sociais", analisa.

Não sou homem, nem mulher

A insatisfação com o filtro de mudança de sexo do Snapchat na comunidade LGBT+ ganha maior proporção no Twitter. Dentre as centenas de críticos, há não só os transexuais, mas também os não-binários (que não se enxergam homem nem mulher).

Um jovem de Nova York, nos Estados Unidos, identificado como Enigma**, encaixa-se nessa categoria e pediu em um tuíte que o Snapchat reconheça sua identidade. "Atualmente as opções são só os gêneros masculino e feminino. Eu sou não-binário e não me sinto representado. Faça de mim o seu produto", escreve.

A mulher transexual Jani Nelson também se manifestou em prol desse grupo. "Snapchat, podemos ter um filtro não-binário com lados do cabelo raspados e coloridos, jogados para o lado ou em topete, e uma jaqueta de brim com alfinetes?", pede ela.

Outro internauta sugeriu que a rede social estimulasse o uso de hashtags na ferramenta. "Se o Snapchat quer fazer um filtro de mudança de sexo, poderiam ter ao menos anexo a ele as hashtags '#TransSãoMaravilhosos' ou '#DireitosTransSãoDireitosHumanos'. Assim, todo mundo iria compartilhar mensagens positivas sobre os transexuais. Isso também diminuiria as chances de postagens transfóbicas [por meio do filtro]", sugere.

Diálogo inclusivo

Diante das insatisfações de parte do público trans, Liliane Rocha, que é mestre em Políticas Públicas pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e especialista em diversidade, analisa que o filtro de mudança de sexo precisa ser somado a um contexto informativo e educacional.

"É preciso [que o Snapchat diga] que respeita a orientação sexual e a identidade de gênero de todos. E se posicionar incentivando o respeito entre os usuários", afirma. De acordo com ela, é também necessário que a rede social de fotos ouça pessoas transexuais para dar legitimidade e coesão à iniciativa. "Precisamos ampliar cada vez mas o espaço de falas das pessoas trans na sociedade, empresas e redes sociais", completa.

*Estagiário sob a supervisão de Charlise Morais

**Explicada a dificuldade do uso de pronomes neutros em português, a fonte não se incomodou com a adoção do masculino no texto

Estadão
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