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Em São Paulo, a várzea também é para as mulheres

Liga feminina soma quase 100 times, mas ainda briga por espaço e valorização

19 nov 2018 - 05h11
(atualizado às 11h09)
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De segunda a sexta-feira, Flavia Tayna Mesquita de Jesus trabalha como cozinheira. Aos finais de semana, ela se transforma em jogadora do Apache, equipe da várzea da zona sul de São Paulo. Essa vida dupla virou uma tatuagem no braço esquerdo: um sapato de salto alto ao lado de uma chuteira. Existem centenas de Flavias espalhadas pela cidade: mulheres na várzea.

Em linhas gerais, o feminino encontra mais obstáculos que o masculino: campos de terra na periferia, falta de recursos e pouca visibilidade. A notícia é que as mulheres deram um passo adiante na organização com a criação da Liga Feminina de Futebol Amador. São quase 100 equipes na capital, Grande São Paulo e interior.

Maria Amorim, diretora da Liga, conta que tudo começou com um grupo de WhatsApp para organizar um torneio em Parelheiros. Era maio de 2016. O número de contatos aumentou até uma centena. Dali surgem torneios, amistosos e ações sociais. Existem torneios abrangentes, nos quais um time da zona leste vai jogar no extremo sul, e outros do bairro mesmo. Não há limite de idade, há jogadoras de 13 a 38 anos. A liga vem ganhando visibilidade e foi um destaques de evento realizado no Museu do Futebol em outubro no qual o governo paulista anunciou o projeto de tombamento dos campos de várzea para revitalizá-los.

Existem outras iniciativas relevantes. A meia Thaís Nunes, a Thaisinha da seleção brasileira e do Red Angels, da Coreia do Sul, decidiu patrocinar a Copa da Rainha, que pretende ser o maior torneio da cidade. Serão R$ 12,3 mil em premiações — recorde entre copas de São Paulo.

A presença feminina obviamente mexe com os homens. Alguns aceitam na boa. Maria cuida dos dois filhos, da casa e da organização dos torneios. Luis Amorim, seu marido, foi um dos grandes incentivadores da criação do time feminino. Ele é o presidente e o técnico do time. Os dois filhos do casal sempre vão ver a mãe jogar.

Em vários locais, ainda existem preconceito e disputa por espaço. "As mulheres simplesmente não têm campos para treinar. Os homens não deixam", reclama Gilmar Galvão, técnico do Magistral, time da Parada de Taipas e que foi criado no início dos anos 1990.

Embora dê pequenos sinais de organização, as meninas estão muito distantes dos meninos. Enquanto a maior copa feminina paga R$ 12 mil em premiações, naquela Copa da Thaisinha, os torneios masculinos chegam a R$ 85 mil. As jogadoras não recebem ajuda de custo; os homens ganham de R$ 100 a R$ 400 por jogo. Em média, 500 pessoas vão aos grandes jogos femininos. A Super Copa Pioneer, a Champions League da várzea, por exemplo, teve nove mil na final. Enquanto a liga feminina celebra 100 times, a Liga Paulistana de Futebol Amador registra 1.440 times só na capital.

Nesse contexto, o antropólogo Enrico Spaggiari classifica a várzea feminina como uma "prática de resistência". "As mesmas diferenças que percebemos entre homens e mulheres no futebol profissional são observadas na várzea", diz o estudioso da USP.

A ex-jogadora Ednei dos Reis, a Ita, afirma que o preconceito diminuiu e mais meninas encaram o futebol como opção de carreira. Sua constatação vem do projeto social que ela desenvolve no campo do Codó, em Guaianases. Por outro lado, ela fica com um pé atrás em relação ao futuro. "Não existe olhar para a várzea", opina a ex-jogadora do Corinthians. Para ela, seria fundamental que os clubes profissionais fizessem parceiras com projetos espalhados pela periferia. "A periferia é uma fonte de talentos", diz.

A parceria seria uma espécie de ponte entre a várzea e o profissional. Uma luz. A partir 2019, os times masculinos na Libertadores e na Copa Sul-Americana serão obrigados a manter equipes femininas. É uma ordem da Conmebol.

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