Os tais índices de produtividade
Discussão sobre reforma agrária esquenta com polêmica sobre a pertinência da atualização dos índices de produtividade da agropecuária
Nas últimas semanas esquentou novamente a discussão da sociedade brasileira a respeito da reforma agrária. Um dos elementos centrais, que disparou as polêmicas subseqüentes, foi a pertinência da atualização dos índices de produtividade da agropecuária nacional. Os índices usados atualmente foram determinados em 1980, a partir dos dados do Censo Agropecuário de 1975, com abrangência para uma microrregião geográfica do País. Portanto, sua aplicação tem base na escala de município. Os novos índices seriam corrigidos a partir dos dados da Produção Agrícola Municipal, levantados pelo IBGE entre 1996 e 2007.
Segundo informações publicadas na Revista Agronalysis, de setembro de 2009, o MDA declarou que em muitas regiões os índices não devem ser alterados. A Agronalysis cita três exemplos ilustrativos: para a soja, 66% dos municípios teriam os seus índices mantidos, e somente 7% teriam índices superiores; no milho, seriam 57% dos municípios com a manutenção dos índices e 12% com valores maiores; para a cana-de-açúcar, 88% dos municípios não sofreriam alteração e apenas 3% teriam índices superiores.
Todavia, a despeito da grande evolução tecnológica e dos aumentos da produtividade da agropecuária brasileira nas últimas décadas, grande parte das lideranças do setor produtivo do agronegócio tem se posicionado contrariamente à atualização dos índices. Num apanhado de posicionamentos levantados pela notícia da Agronalysis, pude identificar três tipos de argumentos:
1)Assim como outros setores, a agropecuária não deve ter a obrigação de ter um desempenho produtivo mínimo. Pelo contrário, os produtores deveriam ter a possibilidade de planejar a sua meta produtiva, com direito a serem ociosos.
2)O setor atualmente é competitivo e os agricultores improdutivos ou ineficientes são naturalmente excluídos. Desta forma, o mercado impõe a necessidade de ser produtivo e eficiente e o regula.
3)Os índices de produtividade são inadequados para avaliar o desempenho econômico no campo. Não basta medir quanto se produz por área, mas qual é o custo de produção, o preço, a demanda do mercado, o crédito e outras variáveis que determinam a lucratividade no campo. Enfim, a produtividade não garante a viabilidade econômica da atividade agropecuária.
Como de costume, assim como no debate sobre a questão ambiental, os argumentos destes líderes não tocam na essência do tema e ignoram o pressuposto básico que ancora todo o marco legal do nosso País: a terra deve cumprir um papel social. Portanto, embora a propriedade da terra seja privada, os seus proprietários assumem um compromisso público e um dever legal quando a adquirem e a ocupam. Os tais índices seriam uma das referências objetivas para se avaliar se uma propriedade rural está cumprindo o seu papel social. Além de estar definido na constituição, este dever passou a ser detalhado no Estatuto da Terra, publicado em 1964. Então, vamos lá: segundo o Estatuto da Terra, ¿A propriedade da terra desempenha integralmente a sua função social quando, simultaneamente:
a) favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de suas famílias;
b) mantém níveis satisfatórios de produtividade;
c) assegura a conservação dos recursos naturais;
d) observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a possuem e a cultivem.¿
Logo, os dois primeiros argumentos dos líderes rurais contra os índices (que o produtor tem o direito de ser ocioso como qualquer setor da economia, e o mercado regula a eficiência no campo e a distribuição da terra) não podem ser considerados e são um equívoco dos líderes que sustentam estes pontos de vista. Este tipo de posicionamento somente desgasta e põe em descrédito o setor. Quem o defende, desconhece o marco legal da atividade ou ignora deliberadamente pressupostos e acordos básicos da nossa sociedade.
Contudo, a análise que os índices de produtividade são inadequados ou insuficientes para medir o desempenho econômico me parece fazer sentido, desde que se reconheça que o desempenho econômico é fundamental para se avaliar o cumprimento do papel social da terra, juntamente com aspectos sociais e ambientais. Neste contexto, o Estatuto da Terra se mostra muito moderno, cunhando o conceito de Desenvolvimento Sustentável quase três décadas antes da Rio-92. Embora tenha uma conceituação moderna, o estatuto parece estar somente obsoleto quanto às variáveis que indicam o cumprimento do papel social da terra.
O que mais mudou desde então, é que o componente econômico da agropecuária é cada vez mais definido fora da porteira, a partir de custos de insumos, disponibilidade de crédito, preços de produtos definidos em bolsas internacionais e outras variáveis de grande complexidade. A questão seria somente mudar a escala e o método de se avaliar a viabilidade econômica da atividade, incorporando outras variáveis além da produtividade, mas não ignorá-la ou colocá-la embaixo do tapete.
Para tanto, as políticas agrária e a agrícola precisam ser profundamente revistas e integradas. Deve ser uma política de governo e não de uma costura de ministérios, com visões divergentes. Por ter deveres especiais, o setor agropecuário deve ser objeto de uma política pública robusta e transparente, que considere a complexidade dos mercados, das economias protegidas e que dê condições de gerar renda e lucro ao produtor. Adicionalmente, deve lhe dar condições de se proteger do alto risco inerente à atividade.
Deve lhe proporcionar formas de cumprir com os seus compromissos públicos, que passam a ser cada vez mais importantes em dias de mudanças climáticas. As lideranças do nosso País devem sair da cortina de fumaça e garantir instrumentos que garantam que se cumpra a essência dos acordos e marco legal da nossa sociedade, gerando benefícios privados e públicos de maneira equilibrada.
Luís Fernando Guedes Pinto, engenheiro agrônomo e doutor em Agronomia pela Esalq-USP, com diversos trabalhos publicados sobre certificação e sistemas de produção agrícola, é secretário-executivo do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora).