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Trump põe em dúvida reunião com Kim Jong-un; entenda as reviravoltas na negociação entre EUA e Coreia do Norte

Clima tenso entre Washington e Pyongyang parecia caminhar para um desfecho positivo até uma das principais autoridades da Casa Branca comparar a situação atual na Ásia com a Líbia e seu ex-ditador, Muammar Khadafi.

21 mai 2018 - 18h41
(atualizado em 22/5/2018 às 15h24)
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Presidentes sul-coreano e americano se encontraram para discutir sobre cúpula que pode não mais ocorrer
Presidentes sul-coreano e americano se encontraram para discutir sobre cúpula que pode não mais ocorrer
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

O presidente Donald Trump sinalizou que o encontro com o líder norte-coreano, Kim Jong-un, previsto para o próximo mês, pode ser adiado, segundo a agência de notícias AFP.

Trump recebeu hoje o presidente sul-coreano, Moon Jae-in, na Casa Branca para debater sobre a cúpula agendada para o dia 12 de junho em Cingapura. Esperava-se que Moon dissesse a "Trump o que esperar ou não de Kim", noticiou a agência sul-coreana Yonhap.

No início do encontro, de acordo com a AFP, o presidente americano afirmou: "Se não acontecer [agora o encontro], talvez aconteça depois". De acordo com a agência Reuters, existe uma "chance substancial" de que a cúpula não ocorra conforme o previsto.

Tudo isso corrobora o cenário que começou a se delinear na semana passada, após a Coreia do Norte avisar que poderia cancelar sua participação na reunião - que será histórica, se ocorrer.

A razão seria uma declaração de uma das principais autoridades do governo americano sobre um país africano e seu ex-ditador, provocando mais uma reviravolta dessa partida do xadrez político global.

Coreia do Norte e Estados Unidos vinham em uma troca crescente de hostilidades desde o ano passado, fazendo o mundo cogitar que os dois países estavam à beira de uma guerra nuclear.

Mas a tensão arrefeceu de forma surpreendente em abril. Kim Jong-un chegou a plantar árvores da paz com o presidente sul-coreano, Moon Jae-in, e a prometer uma "nova história" com seu antigo rival e principal aliado americano na região, ao trabalharem juntos pela desnuclearização da península. O líder norte-coreano e Trump também anunciaram a reunião em Cingapura.

Conhecido por seu belicismo, Bolton disse que modelo usado na Líbia pode ser exemplo para a situação atual com a Coreia do Norte.
Conhecido por seu belicismo, Bolton disse que modelo usado na Líbia pode ser exemplo para a situação atual com a Coreia do Norte.
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Tudo parecia finalmente caminhar para um desfecho positivo - até o conselheiro de segurança nacional de Trump, John Bolton, fazer uma comparação com o que se passou na Líbia há mais de uma década.

Bolton afirmou em uma entrevista à emissora CBS que a Coreia do Norte poderia serguir o "modelo da Líbia" para obter a confiança de outras nações ao se desarmar nuclearmente

"Queremos provas de que é algo real, e não só retórica. A Líbia nos levou a superar nosso ceticismo ao permitir que observadores americanos e britânicos tivessem acesso às suas instalações nucleares."

Em 2003, Muammar Khadafi aceitou abrir mão do programa nuclear líbio - em uma entrevista à CNN, ele declarou que a invasão do Iraque e a deposição de Saddam Hussein por uma coalizão liderada pelo Estados Unidos haviam influenciado sua decisão.

Em troca, as sanções americanas contra o país norte-africano foram suspensas e as relações diplomáticas com os Estados Unidos foram retomadas.

Mas, em 2011, Khadafi acabou sendo deposto por rebeldes e militantes apoiados pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Acabou capturado e morto.

"O regime da Coreia do Norte pode olhar para o que aconteceu com Khadafi e ver que precisa manter suas armas nucleares para não ser deposto daqui a oito anos, como ocorreu na Líbia", diz à BBC Brasil John Tierney, ex-congressista americano e diretor-executivo do Centro para o Controle e Não Proliferação de Armas, organização dedicada à redução de arsenais nucleares.

Ainda que o Departamento de Estado americano tenha afirmado que continua a se preparar para a reunião em Cingapura no próximo mês, é difícil encontrar quem se arrisque a prever o que virá a seguir. "Com as personalidades fortes de Kim e Trump, não há nenhuma certeza", diz Tierney.

"Só podemos esperar que o encontro ocorra e que os Estados Unidos se prepare para esse encontro, mas não há qualquer evidência de que o país tenha uma estratégia delineada para isso."

Ameaça

O governo norte-coreano já havia protestado sobre a continuidade de exercícios militares conjuntos entre os Estados Unidos e a Coreia do Sul, o que acusou de ser um ensaio para uma invasão, e cancelou uma rodada de diálogo com o país vizinho.

A fala de Bolton veio em meio a esse clima tenso e foi muito mal recebida por autoridades norte-coreanas. O vice-ministro das Relações Exteriores, Kim Kye-gwan, disse que o país pode desistir da cúpula com Trump se o presidente americano insistir que Pyongyang entregue suas armas nucleares unilateralmente.

Ele ainda acusou os Estados Unidos de fazer "declarações irreponsáveis" e de "fomentar intenções sinistras", atribuindo a culpa diretamente a Bolton. "Não escondemos nossa repugnância em relação a ele", disse o norte-coreano. Ele ainda acrescentou que o diálogo com a Coreia do Sul só será retomado quando o imbróglio estiver resolvido.

Ex-ditador líbio foi deposto, capturado e morto em 2011
Ex-ditador líbio foi deposto, capturado e morto em 2011
Foto: Reuters / BBC News Brasil

A Casa Branca respondeu afirmando ainda ter esperanças de que o encontro se concretize. Por sua vez, Trump agiu rapidamente para tentar desfazer a tensão criada pelo seu assessor, mas não deixou de fazer outra ameaça.

O presidente americano afirmou não estar buscando concretizar um modelo semelhante ao da Líbia agora, e que Kim Jong-un permanecerá no poder caso siga o script planejado pelos Estados Unidos, mas deixou claro que o líder norte-coreano não está livre de um destino semelhante ao de Khadafi caso se recuse a fazer um acordo.

"O modelo líbio não é um modelo que temos em mente de forma alguma quando pensamos na Coreia do Norte. O modelo, se você olhar para aquele modelo com Khadafi, foi dizimação completa. Entramos lá para derrotá-lo", declarou Trump.

"Esse modelo seria provavelmente aplicado se não fizéssemos um acordo (com a Coreia do Norte). Mas, se fizermos um acordo, acho que Kim Jong-un ficaria bem, bem feliz. Ele ficaria lá, estaria em seu país, comandaria seu país, seu país ficaria bem rico."

No encontro com Moon, Trump teria afirmado ainda crer que Kim Jong-un esteja "falando sério" sobre a desnuclearização.

Diferenças

No entanto, em meio a tantos paralelos entre a Líbia e a Coreia do Norte, existem diferenças que conferem a Kim Jong-un uma posição mais favorável que a de Khadafi há alguns anos.

"Não podemos comparar um país em processo de obter um poderio nuclear, como a Líbia, com um que afirma já ter uma bomba e certa capacidade de lançá-la a alguma distância, como concorda a maioria dos especialistas", afirma Tierney.

Outro aspecto importante é que Khadafi foi deposto em 2011 em meio aos levantes populares ocorridos na Primavera Árabe, quando a população organizou protestos massivos contra regimes do Oriente Médio.

"Bolton pode ter a esperança de que o povo se insurja contra Kim Jong-un, mas não há qualquer evidência de que isso possa ocorrer na Coreia do Norte hoje. O máximo que se chegou perto disso foi na era da fome [em meados dos anos 1990], mas isso ficou no passado. Hoje, Kim e os militares têm muito poder."

Em seu comunicado sobre a possibilidade de cancelar o encontro com os Estados Unidos, a Coreia do Norte disse: "Se o governo Trump não se recorda das lições do passado, quando conversas com a Coreia do Norte e os Estados Unidos retrocederam por causa de pessoas parecidas com Bolton, e presta atenção ao conselho de pseudopatriotas que insistem no modelo líbio, as perspectivas da próxima cúpula e das relações entre a Coreia do Norte e dos Estados Unidos ficam bem claras."

Ponto de tensão

Um ponto de tensão nesta negociação é a forma como se daria uma possível desnuclearização da península.

Washington exige um desarmamento nuclear "amplo, verificável e irreversível". Mas a ministra de Relações Exteriores sul-corena, Kang Kyung-wha, confirmou haver uma "diferença de opiniões entre o Norte e os Estados Unidos sobre como realizar" esse desarmamento, sem dar mais detalhes sobre a divergência.

A Coreia do Norte havia afirmado que faria o desmonte de seu local de testes nucleares em Punggye-ri entre 23 e 25 de maio, mas não houve menção sobre o acesso de observadores internacionais ao local.

Em uma visita recente à Coreia do Norte, o secretário de Estado americano, Mike Pompeo, destacou que qualquer alegação de desnuclearização por parte dos norte-coreanos exigiria "uma verificação robusta" por parte dos Estados Unidos e de outros países.

Mas, em 2008, a Coreia do Norte rejeitou justamente essa proposta dos Estados Unidos de realizar de inspeções como as ocorridas na Líbia.

A nova mudança de tom por parte de Pyongyang, com sua ameaça de não participar do encontro, parece ser uma forma de colocar pressão sobre americanos e sul-coreanos em busca de mais concessões, avalia Laura Bicker, repórter da BBC em Seul.

"Os Estados Unidos pode dar diversas garantias a Kim Jong-un, mas não podem protegê-lo de um levante popular interno", disse Mark Landler, correspondente da Casa Branca do jornal americano The New York Times, em uma edição do podcast "The Daily" sobre o tema.

"É por isso que ele está tão relutante em abrir mão de suas armas. Esta seria uma 'apólice de seguro' que faria os inimigos do regime pensarem duas vezes antes de agir."

Belicista e nacionalista

Landler explicou que, ao mencionar a Líbia, Bolton poderia querer dizer que os Estados Unidos deveria buscar um acordo "rápido, direto e amplo" com a Coreia do Norte como o realizado no passado, mas, ao citar o exemplo do país africano, transformou-se no "bicho-papão" destas negociações.

Aos 69 anos, Bolton é figura proeminente em política externa no círculo republicano, tendo participado dos governos de Ronald Reagan, George Bush e George W. Bush.

Foi uma figura-chave da invasão do Iraque, em 2003, ao ajudar a "vender" para a comunidade internacional a teoria de que Saddam Hussein possuía armas de destruição em massa. Posteriormente, foi comprovado que o regime do então líder iraquiano não tinha esse tipo de armamento.

Também já foi embaixador americano na Organização das Naões Unidas (ONU), mas deixou o cargo 14 meses após ser nomeado ao ter a confirmação de seu nome para o posto rejeitada pelo Senado. Desde abril de 2018, ele atua no governo Trump.

Sua fama de belicista e nacionalista o precede. Em suas memórias, conta que, na época em que era estudante da Universidade Yale, sentia-se "um alienígena" entre tantos jovens contrários à guerra no Vietnã.

É um forte defensor do "poder americano" e do fortalecimento das fronteiras. Ele já deixou claro acreditar que o regime norte-coreano e seu programa nuclear representam uma "ameaça iminente" aos Estados Unidos e sugeriu recentemente atacar preventivamente a Coreia do Norte.

"Ele nunca hesitou em assumir a posição mais ameaçadora possível", disse Landler, do Times. "Ao fazer a comparação com a Líbia, ele sabia o que estava fazendo. Mandou uma mensagem de que, se as coisas não forem de um jeito, serão de outro."

Tierney concorda e avalia que "John Bolton está sempre disposto a ir a extremos". "Não estou dentro da sua mente, mas ele parece ter prazer em interferir nas relações diplomáticas americanas", afirma o especialista.

"Bolton acredita na força americana e que os Estados Unidos devem fazer demonstrações de força, subjugar seus oponentes, forçando-os a concordar com as visões americanas, em vez de tentar entender o adversário."

* Com reportagem de Rafael Barifouse, da BBC Brasil em São Paulo.

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