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Mundo

Sem diálogo razoável, terrorismo é totalmente injustificado

1 ago 2011 - 10h10
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Reportagem
MORENO OSÓRIO
FELIPE FRANKE

"O terrorismo é totalmente injustificado". O diretor do Centro de Pesquisa em Democracia na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Nythamar de Oliveira, é enfático. Para o Ph.D. em Filosofia, não existe legitimidade em atos que primam pela falta de lógica. A partir das ideias do influente professor americano de Filosofia Política John Rawls, cujo pensamento antecipou questões colocadas em pauta após os atentados de 11 de setembro de 2001, Oliveira acredita que a capacidade de enxergar o outro por meio de um diálogo razoável é a base para uma coexistência entre os povos e a base da democracia liberal.

Para Nythamar de Oliveira, é possível existir uma postura pluralista que torna viável a convivência de visões diferentes e até incompatíveis entre si
Para Nythamar de Oliveira, é possível existir uma postura pluralista que torna viável a convivência de visões diferentes e até incompatíveis entre si
Foto: Felipe Schroeder Franke / Terra

É uma postura pluralista que torna possível a convivência de visões diferentes e até incompatíveis entre si. Contradições surgidas nesse processo devem ser levadas a público e resolvidas a partir de um consenso. Assim, o terrorismo deve ser tratado como um crime a ser punido com a pena máxima de cada legislação. Ele não pode ser confundido com reivindicações sociais ou críticas a determinadas posturas políticas. "Uma coisa é condenar o terrorismo, outra é entender problemas de desigualdades sociais e econômicas", afirma. Confira abaixo os principais trechos da conversa de Nythamar de Oliveira com o Terra.

Terra - Estamos nos aproximando dos 10 anos dos atentados de 11 de setembro de 2001. O que mudou, durante esse período, sobre o pensamento a respeito do terrorismo?
Nythamar de Oliveira - Houve mudanças na reflexão sobre filosofia, relações internacionais, justiça e política externa. Mudou também a forma de pensar a recepção do terror. Mas o que me surpreende é o que foi esboçado por John Rawls no livro O Direito dos Povos, de 1999, dois anos antes dos atentados. Nessa obra, ele fala de jihad - expressão vulgarizada após o 11/9 como forma de fundamentalistas chamarem atenção para a ameaça sofrida pelos valores do islamismo. O autor defende que povos não liberais do mundo islâmico podem ter uma leitura não belicista do termo, e que isso é uma questão de recepção das tradições religiosas, de pluralismo ideológico. Ou seja, tudo o que o fundamentalismo islâmico rejeita - a possibilidade de dialogar com posições diferentes daquelas que defende. Rawls não só foi um dos primeiros a prever o que estava por acontecer, mas também contribuiu para um melhor entendimento de questões éticas relacionadas ao terrorismo.

Terra - A violência, em maior ou em menor grau, é válida para defender uma posição política ou uma ideia?
Nythamar - Esse é o problema. É a questão da normatividade. O que distingue um movimento social legítimo, com reivindicações razoáveis, de um movimento terrorista? Creio que há como fazer isso, mesmo em situações delicadas, como o conflito árabe-israelense. É preciso entender o que é terrorismo, e aí podemos voltar à Revolução Francesa, ou mesmo para a independência dos Estados Unidos. Para os britânicos, o movimento separatista conduzido pelas 13 colônias pode ter sido movido por forças terroristas. Hoje não faz nenhum sentido. Mas é importante que se faça essa análise de normatividade na história. No caso do terrorismo recente, podemos fazer a mesma coisa: como a questão foi analisada em 2001 e como está sendo em 2011. Para isso é preciso entender o contexto geopolítico, algo que o Ralws já fazia em 1999. Porque é possível fazer críticas à globalização, por exemplo, sem precisar comprar todo o pacote de movimentos que querem criticar tudo o que for ocidental. O terrorismo ligado a Al-Qaeda tende a fazer isso. É isso que dez anos depois a gente é capaz de entender melhor.

Terra - Está aí então a impossibilidade de se enxergar alguma legitimidade nesses movimentos? Ou seja, não há uma reivindicação política, e sim a simples incapacidade de enxergar o outro?
Nythamar - Há o problema da alteridade nos dois lados. Por exemplo, a própria definição de Oriente é uma invenção ocidental. Por exemplo, nos Estados Unidos há muita consciência em relação à questão da alteridade. Na filosofia, para ficarmos na minha área de trabalho, os estudantes não só podem como são encorajados a se debruçar sobre o pensamento não ocidental. Aqui no Brasil, ao contrário, existe uma tendência muito eurocêntrica na filosofia. Quando se fala em civilização ocidental, assume-se, de maneira geral, que os portugueses estavam certos. Ninguém pensa - no imaginário popular - no genocídio de populações indígenas, no tráfico negreiro, na escravidão. Nesse sentido, nós temos que fazer essa autocrítica em relação à conquista das Américas, ao Ocidente, a essa visão judaico-cristã, que acaba prevalecendo. Uma vez feita essa autocrítica, é possível pensar em formas de dar mais abertura à questão do outro, o que para a maioria das pessoas do mundo ocidental não é nada problemático.

Terra - Ao contrário do fundamentalismo islâmico...
Nythamar - Exato. E do fundamentalismo que se dá nos equivalentes ocidentais. O comportamento de um evangélico criacionista do sul dos Estados Unidos não é muito diferente de um talibã. A diferença é que ele se beneficia de coisas do mundo secularizado. As descobertas científicas, por exemplo. Para depois dizer que não é preciso estudar ciências na escola pública.

Terra - Isso faz parte do projeto civilizatório ocidental.
Nythamar - Isso é interessante em uma leitura de autocrítica. Porque não há civilização sem barbárie. É um processo, uma dialética perversa. Mas se a civilização ocidental assumir uma postura crítica e pluralista, isso não é problemático. É a ideia do que Rawls chama de pluralismo razoável. É perfeitamente possível concebermos uma coexistência pacífica entre visões totalmente diferentes e até incompatíveis entre si. Esse é o ponto de partida do liberalismo político.

Terra - Em dois eventos recentes, a França baniu o véu islâmico e a Suíça proibiu a construção de minaretes. Isso não é uma contradição?
Nythamar - Contradições existem e vão continuar emergindo. Faz parte do pluralismo que discussões como essa venham a público. Elas foram discutidas, tanto na França quanto na Suíça. Houve muitas críticas, muitos desacordos em relação às medidas adotadas. O problema é quando a laicização acaba querendo fazer do Estado uma instituição que impõe seus valores como uma religião. Algo parecido com o que tivemos na antiga União Soviética.

Terra - É como levar as características de uma instituição pública para o espaço público.
Nythamar - Esse é o grande perigo. O caso da Suíça é interessante porque o que parece ter prevalecido foi uma postura de medo - um problema atual na Europa. Porque a partir da liberdade dada a outros grupos para que exerçam seus valores dentro dessas sociedades, a própria ideia de pluralismo pode acabar ameaçada. É um processo dinâmico que não podemos evitar. Foi a grande hipocrisia de países democráticos que não permitiam a emergência de movimentos ligados ao comunismo, marxismo. Como o Macartismo nos Estados Unidos política de perseguição ao comunismo e aos comunistas, ligada ao senador republicano americano Joseph McCarthy, no final da primeira metade do século XX.

Terra - Nesse sentido, como fica a questão da ação americana que culminou na morte de Bin Laden?
Nythamar - Houve questionamentos sobre como um país que defende soberania política pdoeria invadir outro para ir atrás de um terrorista. Nesse caso, a justificativa é geopolítica, e não ética ou moral. E essas questões ligadas à normatividade precisam ser diferenciadas de decisões de segurança. Não há formas de defender legitimidade no terrorismo. Pela própria lógica da falta de lógica, do irracional, do radical.

Terra - Esse posicionamento justificaria a ação americana?
Nythamar - Na perspectiva deles, não há dúvida. Em pesquisas, você pode ver quantos americanos que foram contrárias ao envio de tropas ao Iraque e Afeganistão apoiaram, posteriormente, a morte de Bin Laden. Para mim, isso parece ser razoável, tanto do ponto de vista lógico-conceitual quanto do ponto de vista ético-normativo. Por outro lado, tenho vários amigos islâmicos que acreditam que o Alcorão é a revelação divina, mas que, no entanto, acham que o Bin Laden era um louco, com ideias insustentáveis. Creio que a ignorância tem um papel forte no extremismo. Não é simplesmente um lado contra o outro. É possível pensar, mesmo não a partir de uma racionalidade pura, em termos razoáveis e entender reinvindicações que sejam radicalmente diferentes das nossas. No caso do terrorismo, não há essa possiblidade. Se há vias razoáveis de questionamento, não há justificativa para um grupo matar pessoas inocentes.

Terra - Ou seja, é uma posição intransigente deles.
Nythamar - Totalmente. Esses terroristas devem ser punidos com pena máxima. Se no regime em questão há pena de morte, será isso. Não vejo outra saída, do ponto de vista ético e do ponto de vista da racionalidade prática. Não queremos entrar num avião pensando que pode existir algum maluco que vai explodir tudo porque é hora de provar alguma coisa. Não faz nenhum sentido. O terrorismo é totalmente injustificado. Não tenho dúvidas quanto a isso. Creio, no entanto, que está errado não entender o terrorismo como um crime. Isso foi um tipo de crítica levantada contra o governo Bush. Porque ele assumiu uma posição materialista, ianque, que passou por cima da ONU, ignorou a Europa. Foi arrogante, imperialista, autoritário, arbitrário. Mas isso não é dar razão a atentados terroristas, dizendo que faz parte. Para entender a questão do terrorismo hoje, dez anos depois, é preciso entender a questão geopolítica, a questão do mundo pós-guerra fria, o mundo pós-americano. Uma coisa é condenar o terrorismo, outra é entender problemas de desigualdades sociais e econômicas.

Terra: São dois assuntos que devem ser tratados de forma independente.
Nythamar - Sim, mas um está interligado ao outro. Tudo é muito complexo. Por exemplo, a globalização parece estar favorecendo uma ideia de democracia. Mas não existe um modelo único de democracia. O aprendizado da democracia é exatamente a abertura contínua para o diálogo com o outro. Você tem que respeitar as diferenças.

Terra - Trata-se de um cenário complexo. Por um lado, é preciso respeitar a legitimidade de algumas reivindicações. Por outro, há ações que não podem ser aceitas por não serem legítimas. Esses dois pontos de vista parecem provocar um cenário que vai durar por muito tempo.
Nythamar - Pode ser. Em termos normativos, creio que é possível condenar radicalmente o terrorismo. Mesmo que não seja fácil passar da moral para o direito, você vai ver que na maior parte dos países há uma legislação que condena o terrorismo. Partindo disso, você vai ver que o sentido jurídico e moral estão ligados à coexistência pacífica, à sociabilidade. No mundo moderno, a gente precisa dar explicações racionais. Tem de haver um tipo de consenso mínimo. Por isso, uma bomba é uma coisa totalmente fora de controle. Esse tipo de situação, realmente, vai perdurar na medida em que a natureza humana está sujeita ao que Kant filósofo iluminista alemão chamou de mal radical. Não é que exista no ser humano algo essencialmente mal ou perverso. É possível pensar em termos de sociabilidade, de patologias sociais. Isso é passível de correção. Isso é o mais interessante na análise de teoria política.

Fonte: Terra
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