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Rachel, Irina, Mónica: 'as identidades que me fizeram sobreviver ao Holocausto'

Hoje morando na Argentina, Mónica Dawidowicz descobriu quando adolescente que os verdadeiros pais haviam sido mortos pelos nazistas.

5 set 2017 - 13h55
(atualizado às 13h58)
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Um passaporte de Rachel quando criança
Um passaporte de Rachel quando criança
Foto: BBC News Brasil

Mónica Dawidowicz era Rachel quando nasceu em um campo de concentração em Lida, na Bielorrússia (hoje Belarus), em 1941. Poucos meses antes de seu nascimento, a cidade havia sido invadida pelos nazistas - fato que mudaria para sempre não só seu nome, como seu destino e o da família, judia. Confira seu relato à BBC Brasil.

"Eu tinha 14 anos de idade e já morava aqui em Buenos Aires quando desconfiei da minha história. Alguns fatos alimentavam minhas dúvidas. Por exemplo, quando as pessoas perguntavam aos meus supostos pais se eu era a 'menina que tinha chegado da Europa'. Encontrei cartas e documentos que confirmavam que minhas incertezas sobre minhas origens faziam sentido.

Perguntei abertamente aos meus supostos pais qual era a minha verdadeira história. E nós três acabamos chorando muito. Eles eram meus tios, e não meus pais. Meus pais, uma irmã pequena e outros familiares tinham sido mortos no Holocausto.

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Meu primeiro nome tinha sido Rojele (Rachel), como queriam meus pais e era o nome da minha tia, quem até aquele dia eu pensava que fosse a minha mãe. Mas também fui Irina e depois Mónica. Até hoje não sei a data exata do meu nascimento e continuo vasculhando arquivos, investigando para entender tudo o que aconteceu.

Minha história não é só minha, já que eu fui um dos casos de sobreviventes do Holocausto. E por isso conto e vou continuar contando, em palestras para crianças e para professores, porque só assim a história não se repetirá, apesar de na realidade percebermos que, infelizmente, ela vive se repetindo. Vou contar do início.

A minha mãe estava grávida de mim quando foi levada pelos nazistas de casa, em Lida, em Belarus, com meu pai e minhas duas irmãs. Lida tinha sido invadida em 1939 pelo Exército Vermelho (soviético) e em 1941 pelo exército nazista.

Até 1939, pelo que me contou minha irmã sobrevivente, a vida era bela em Lida. A família vivia numa casa grande, com meus pais, minhas duas irmãs e minha avó, e as férias eram numa casa de veraneio. Mas tudo mudou para sempre.

Gueto

Os pais de Mónica
Os pais de Mónica
Foto: BBC News Brasil

A invasão nazista foi em junho de 1941. Em agosto daquele ano, minha família e eu, na barriga da minha mãe, fomos levados para um gueto, o Gueto de Lida. Minha irmã mais velha, Ester, tinha dez anos, e Neja, oito.

Eu nasci no gueto em alguma data no fim de 1941. E, quando tinha três meses, meu pai aproveitou uma distração da vigilância, me passou por um buraco e me levou até um carro onde uma mulher nos esperava. Sei de tudo isso porque Ester me contou. E hoje, como mãe e avó, estremeço a cada vez que penso na situação que meu pai e minha mãe viveram.

Logo depois a mulher me entregou a um casal, o casal Shipula, que não tinha filhos e me batizou como Irina Shipula. Meu primeiro nome, Rojele Mowszowicz, tinha sido apagado. Fiquei com essa família até o fim da Segunda Guerra, em 1945. Mas naquele período, tios e primos meus tentaram escapar e não sobreviveram à pior tormenta que abalou a Humanidade.

A mala vermelha com a qual Mónica chegou ao Uruguai
A mala vermelha com a qual Mónica chegou ao Uruguai
Foto: BBC News Brasil

Um dia, quando meus pais estavam com minhas irmãs, minha avó e um primo no gueto, os nazistas pediram que fossem formadas duas filas. Os da fila da direita foram levados para uma fossa comum e metralhados. Os da esquerda sobreviveram algumas horas mais. Meus pais e minhas irmãs estavam na fila da esquerda. Minha avó, três tios e meu primo, junto com outros 5,6 mil judeus, foram para a fila da direita.

Depois daquele dia, meus pais entenderam que deveriam salvar também as minhas irmãs. Após muito sufoco, eles conseguiram entregá-las a famílias não judias.

'Insuportável'

Primeiro foi Ester. Meu pai a entregou a dois homens poloneses. Ele deu a eles dinheiro e endereços de familiares nossos na Argentina e nos Estados Unidos, esperando que assim as três filhas um dia se encontrassem.

Ester, que tinha dez anos, entendeu que na nova casa não podia falar em idish e nem chorar. Mas para Neja, que tinha oito anos, a situação foi muito mais difícil. Ela chorava pedindo para ver nossos pais. A família que a tinha acolhido acabou levando-a de volta ao gueto.

O último destino da minha irmãzinha Neja e dos meus pais foi o Campo de Exterminio de Majdanek, a poucos quilômetros da cidade polonesa de Lublin, perto da fronteira com a Ucrânia. O gueto de Jaludna, em Lida, foi eliminado em 1943.

Nunca saberei se meus pais e Neja morreram no transporte que os levou ao campo de extermínio, nas câmaras de gás ou nas fossas comuns. Ainda hoje, quando penso, sinto que qualquer que seja a resposta me parece insuportável.

Neja e Ester, irmãs de Mónica
Neja e Ester, irmãs de Mónica
Foto: BBC News Brasil

É também claro para mim que logo depois do fim da Segunda Guerra e do Holocausto, nós judeus éramos nada, e seres sem destino. E este foi meu caso também.

Fui levada por meus parentes da casa da família que tinha me protegido, os Shipula. E passei por um périplo que me levou da Polônia à Suécia, onde fiquei quatro meses num orfanato da Cruz Vermelha, e dali para a casa de parentes no Uruguai - que me entregaram aos cinco anos de idade aos tios que me criaram aqui na Argentina.

Foi no orfanato na Suécia que passaram a me chamar de Mónica. Da Polônia, eu tinha saído com um documento com nome de Rachela Mowszowicz e uma data de nascimento inventada, 20 de junho de 1941, quando na verdade eu ainda estava na barriga da minha mãe.

Vim para a América do Sul porque outros tios que me esperavam nos Estados Unidos não puderam me receber - eles foram informados que a cota de judeus recebidos no país já tinha sido atendida.

Cheguei a Montevidéu com uma malinha vermelha, com poucas roupas, um cavalinho de madeira, uma boneca e um livro editado em 1941, quando nasci, chamado Tummelisa (A Polegarzinha), de Hans Christian Andersen, escrito em sueco, que fala sobre uma menina que, como eu, nasceu em condições extraordinárias.

Guardo tudo até hoje.

Mónica quando era chamada de Irina Shipula
Mónica quando era chamada de Irina Shipula
Foto: BBC News Brasil

Passado e presente

Em 1947, eu já estava aqui em Buenos Aires com meus pais que me criaram, Jaime e Raquel, que não tinham filhos. Eles conseguiram documentos atestando que nasci na Argentina e que era filha deles. Mas para não contrariar as tradições judias do ashkenazim, que indica que não se deve colocar na criança o nome de alguém vivo da mesma família, voltaram a me chamar de Mónica.

A minha vida inteira tive que dar explicações sobre a minha identidade. E acabei escrevendo um livro (lançado em 2016 e chamado Todos mis nombres - "Todos os meus nomes") sobre o meu caso que, como repito, não é só meu.

Mónica visita Lida com filhos e sobrinhos
Mónica visita Lida com filhos e sobrinhos
Foto: BBC News Brasil

Como tive tantos pais, dediquei meu livro a eles. Pude saber dos detalhes do que aconteceu porque essa minha busca é permanente. Encontrei documentos e fotos nos arquivos na Suécia, em Lida e nas conversas com familiares, como a minha avó na casa dos Shipula - meus pais nessa família morreram cedo.

Em junho passado, viajei com meus filhos e sobrinhos a Lida e sou da comissão diretiva do Museu do Holocausto aqui em Buenos Aires. Levei cinquenta anos para entender que sou sobrevivente do Holocausto.

Hoje vivo feliz. Na minha busca descobri certidões que revelam meus nomes, Rachel e Irina. E às vezes os dois nomes no mesmo documento. Mas podem me chamar de Mónica. E o sobrenome que uso atualmente é o do meu marido, Dawidowicz."

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