Fervor e crise marcam passagem de Leão XIV por um Líbano em busca de reconciliação em sistema multiconfessional
A visita de Leão XIV nesta segunda-feira (1°) transformou o Líbano em um raro cenário de unidade: sob chuva forte, multidões de todas as comunidades celebraram o pontífice enquanto o país enfrenta crise econômica, divisões confessionais e temor de guerra com Israel. Entre mosteiros lotados, súplicas por paz e encontros inter-religiosos, o papa pediu que os libaneses mantenham a esperança e permaneçam em seu país, ecoando o desejo coletivo de reconciliação e futuro estável.
Sob chuva intensa e ao som de hinos religiosos, milhares de pessoas se reuniram nesta segunda-feira (1°) para saudar o papa Leão XIV, no segundo dia de sua visita ao Líbano — um país marcado pela diversidade religiosa, onde ele levou uma mensagem de união e paz, pedindo à população que "continue a ter esperança".
O "papamóvel" cruzou as estradas do norte de Beirute rumo a um mosteiro, acolhido por fiéis que aplaudiam, entoavam cantos comemorativos e, em alguns pontos, lançavam grãos de arroz em sinal de boas-vindas. Cartazes com a imagem do líder da Igreja Católica tomavam conta do trajeto.
"Depois de tudo o que passamos, esta visita nos devolveu o sorriso", disse Yasmine Chidiac. Para Thérèse Darouni, 65 anos, "muita gente vai a Roma para ver o papa, mas desta vez ele veio até nós — é uma grande bênção e uma esperança para o Líbano".
Os sinos do mosteiro de Annaya, a 54 km da capital, anunciaram a chegada de Leão XIV ao santuário, onde ele fez uma oração diante do túmulo de São Charbel Makhlouf (1828-1898). O monge maronita, canonizado em 1977, é uma das figuras religiosas mais veneradas do país, respeitado por libaneses de diversas comunidades, muitos dos quais acreditam em seus milagres.
Sistema confessional
O Líbano tem um sistema político confessional e clânico profundamente enraizado nas divisões religiosas, desde sua independência e especialmente após o pacto conhecido como Pacto Nacional do Líbano, em 1943, que reserva os principais cargos do Estado às diferentes confissões religiosas: tradicionalmente, o presidente da República deve ser cristão maronita, o(a) primeiro-ministro(a) muçulmano(a) sunita e o presidente do Parlamento, um muçulmano xiita.
Quanto à demografia de fé — embora o país não realize um censo oficial desde 1932 (o que torna qualquer dado uma estimativa) —, a fonte usada pelo governo norte-americano e por institutos como CIA World Factbook aponta que cerca de 67,8% da população é muçulmana (com aproximadamente 31,9% sunitas e 31,2% xiitas), e cerca de 32,4% é cristã, sendo os cristãos maronitas o maior grupo dentro desse segmento.
Esse arranjo confessional, com repartição de poder e representação segundo a fé, molda fortemente a geografia política e social do país, influenciando quem pode ocupar cargos públicos e como as decisões de Estado são negociadas entre as comunidades religiosas.
"Continuar a ter esperança"
A visita papal ocorre em meio a um grande entusiasmo popular, mesmo com o temor de uma nova escalada do conflito com Israel. Apesar do cessar-fogo firmado há um ano entre o Hezbollah, aliado do Irã, e o Estado israelense, as Forças Armadas de Israel intensificaram bombardeios no território libanês nas últimas semanas.
Para marcar a presença de Leão XIV — o terceiro papa a realizar uma visita oficial ao Líbano, depois de João Paulo II em 1997 e Bento XVI em 2012 —, o governo decretou dois dias de feriado nacional.
Do mosteiro, o pontífice seguiu para o santuário de Harissa, aos pés da estátua de Nossa Senhora do Líbano, que domina a baía de Jounieh, no Mediterrâneo. Ali, foi cercado por centenas de bispos, padres e religiosos, em meio a uma multidão de celulares erguidos e gritos de "Viva il Papa".
Em discurso em francês, Leão XIV pediu que os libaneses mantenham a esperança "mesmo quando o estrondo das armas se aproxima e as demandas do cotidiano se tornam um desafio".
"Tivemos quase dois anos e meio de guerra, mas nunca perdemos a esperança", disse o padre Tony Elias, 43 anos, maronita do vilarejo de Rmeich, perto da fronteira israelense. Segundo ele, o papa "traz um verdadeiro apelo à paz. O Líbano está esgotado; depois de 50 anos de guerras sucessivas, o povo anseia pela paz", afirmou, exibindo um lenço branco com as bandeiras do Vaticano e do Líbano.
A agenda do pontífice prevê ainda dois momentos importantes nesta tarde: uma oração inter-religiosa na praça dos Mártires, no centro de Beirute — espaço simbólico da memória nacional — e um encontro com jovens no patriarcado de Bkerké, no norte do país.
"Precisamos estar unidos"
"Com tantos problemas econômicos, sociais e políticos, o país precisa de esperança", afirmou Elias Abou Nasr Chaalan, 44 anos. "Devemos nos unir como libaneses — assim como o papa reuniu líderes religiosos e autoridades na chegada. Somente juntos conseguiremos superar tantas dificuldades", disse o pai de dois filhos.
Na noite de domingo, autoridades políticas e religiosas compareceram ao palácio presidencial para receber o pontífice. Lá, Leão XIV fez um apelo para que os libaneses "permaneçam" em seu próprio país, marcado por um êxodo crescente desde o colapso econômico de 2019, e destacou a necessidade de "reconciliação".
Diante dos governantes, pediu que a classe política "sirva ao povo com compromisso e dedicação". A crise econômica que se agravou a partir do final de 2019 — e devastou a vida de milhões de libaneses — é amplamente atribuída à negligência dos dirigentes, frequentemente acusados de clientelismo sectário e corrupção.
O Líbano é a segunda etapa da primeira viagem internacional de Leão XIV, que começou na Turquia, onde reforçou o diálogo pela unidade entre cristãos.
Com AFP