França e Brasil têm visão seletiva sobre religiões que devem ser 'punidas', diz especialista da laicidade
A França celebra nesta terça-feira (9) os 120 anos da promulgação da lei da laicidade, que garante a separação entre Estado e religião. Mais que um conceito, no país, a laicidade é considerada um valor fundador da nação. Porém, segundo Marcelo Camurça, professor titular do Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora, a laicidade vivida hoje na França difere muito da lei de 1905.
"Os estudiosos da laicidade na França observam que a concepção atual descaracteriza a lei de 1905", afirma o especialista, que é membro do Comitê de Laicidade e Democracia da Associação Brasileira de Antropologia e também do Groupe Société, Religion et Cité da École Pratique des Hautes Études.
"A laicidade na França, na lei de 1905, era restrita à esfera pública estatal. Depois, ao longo dos anos, a partir da década de 1990, foi estendida à sociedade, muitas vezes usada para restringir a diversidade religiosa e as religiões trazidas pelos imigrantes, como o Islã, que gera muita controvérsia no país", explica.
Camurça destaca que existe uma influência indireta do modelo francês de laicidade no Brasil. O conceito chegou ao país em 1891, com a República e a Constituição Republicana.
"Houve uma influência da ideia iluminista de promoção dos direitos humanos, da liberdade de crença e do incentivo à escola pública, em detrimento das escolas religiosas católicas. Então, eu acho que o meu argumento central é que os dilemas da laicidade na França e no Brasil correspondem a situações equivalentes, mas também inversas, que se comunicam", analisa.
Brasil: privilégios às igrejas cristãs católica e evangélica
De acordo com Camurça, no Brasil, a noção de separação entre Estado e Igreja é ampliada para incluir a religião dentro da laicidade. Essa definição "flexível" ou não ateia "visa garantir privilégios às igrejas cristãs católica e evangélica, principalmente nos seus segmentos mais conservadores, e restringir a presença pública das religiões afro-brasileiras", sublinha.
"Na França - e na Europa em geral -, por ser uma sociedade mais secularizada, a experiência legal da laicidade implica que a religião não apareça ostensivamente na política", diz. "Mas o regime da laicidade, muitas vezes, é invocado pela direita e pela extrema direita para, a partir dessas separações rígidas e restritivas, proibir o uso de símbolos religiosos na sociedade", completa.
O pesquisador cita o exemplo do ex-candidato à presidência e jornalista Éric Zemmour, que defende uma "laicidade cultural" inspirada nos "valores do cristianismo".
"É claro que a religião deve ter manifestação pública, mas ela não pode ser instrumentalizada. Nós não podemos aplicar à saúde, à educação e à legislação critérios religiosos, sob pena de nos aproximarmos de uma teocracia e não de uma democracia", afirma.
Para ele, em ambos os países se constata "uma certa visão seletiva sobre quais religiões devem ser alvo de desconfiança e ação punitiva: os muçulmanos na França e as religiões afro-brasileiras no Brasil".
Pautas morais
Os direitos reprodutivos e sexuais são exemplos das diferenças entre França e Brasil em matéria de separação entre Estado e religião. Enquanto no primeiro o direito ao aborto foi inscrito na Constituição, no segundo, grupos religiosos travam a evolução dessas questões, e os direitos adquiridos são constantemente ameaçados.
"A França, por ser uma sociedade secularizada, embora historicamente sob influência do catolicismo, instituiu o direito ao aborto já nos anos 1970. E no Brasil, por ser uma sociedade ainda com uma influência cristã conservadora muito grande, essas restrições se estabelecem, inclusive na própria sociedade", diz. "E mesmo aqueles católicos que têm uma visão mais aberta no social, nessa parte dos direitos reprodutivos, são mais conservadores."
Para Camurça, o conservadorismo no Brasil sempre existiu, mas de forma disfarçada; atualmente, esse discurso é explícito, por meio da chamada pauta moral dos evangélicos. "Então, a questão é que está havendo um retrocesso", afirma.
"A diferença, eu acho, é que antigamente, no caso da Igreja Católica, ela agia mais por meio de lobbies. Ela não atuava diretamente na política. E, a partir dos anos 1990, os evangélicos passaram de uma atitude de que 'crente não se mete em política' para intervir diretamente na política, elegendo parlamentares tanto na esfera municipal quanto na estadual e federal, para ocupar espaços políticos e impor essa pauta moral na educação, na saúde e na legislação", analisa o especialista.
Ele ressalta que a marca da laicidade "é uma autonomia pedagógica, científica e jurídico-normativa, que são critérios para o bem comum da sociedade, baseados na ciência, na pedagogia e nas leis, e não em princípios religiosos".