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América Latina

Haiti: após 50 anos, maior ditador das Américas é admirado

Há 50 anos, François Duvalier proclamava sua presidência vitalícia e entrava para a história como um dos mais sangrentos ditadores do mundo, embora até hoje desperte a admiração de seu povo

2 abr 2014 - 14h17
(atualizado às 14h26)
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“Apenas civis podem possuir um país, não militares. O militar deve permanecer em seus quartéis e receber ordens e instruções do presidente, do rei, do imperador. Esta é a minha opinião, esta é a minha filosofia. Para ter paz e estabilidade, você deve ter um homem forte em todos os países”. Com esta contraditória afirmação, François Duvalier, o Papa Doc, justificava a sangrenta ditadura que havia instaurado no Haiti, desde que pôs os pés no palácio presidencial, em 22 de outubro de 1957.

Após assumir a liderança do país latino, o homem bom e afetivo que ajudava os mais necessitados, se transformou e tomou a forma de uma figura que, ao mesmo tempo, disseminava terror e despertava admiração.

<p>François Duvalier, o Papa Doc, em foto tirada em 1963, um ano antes de anunciar sua presidência vitalícia</p>
François Duvalier, o Papa Doc, em foto tirada em 1963, um ano antes de anunciar sua presidência vitalícia
Foto: AP

Com o anúncio de sua presidência vitalícia em 2 de abril de 1964, Papa Doc (“papai doutor”) consolidou seu regime centralizador e autoritário. Durante os catorze anos em que esteve no poder, Doc montou uma leal guarda civil – os tontons macoutes, ou “bichos-papões – responsável pela aniquilação de todos os seus oponentes. Além disso, caçou e prendeu jornalistas, exterminou qualquer foco de insurgência da polícia e do exército e deu ordens para a produção e distribuição de panfletos nos quais se designava Deus.

Estrangeiros e empresários eram obrigados a pagar quantias em dinheiro à milícia de Doc, e, se não o fizessem, pagavam caro. O embaixador da Grã-Bretanha no país, Gerald Corley-Smith foi expulso do Haiti e viu a sua embaixada ser fechada por se opor ao regime autoritário do presidente haitiano.

Destino semelhante teve o arcebispo Raymond Poirier, que foi preso e colocado, apenas com a batina e um dólar no bolso, dentro de um avião com destino a Miami, no período em que a Igreja Católica passou a ser alvo de Papa Doc.

O ditador também gostava de luxo e tinha muitos caprichos. A população foi forçada a pagar uma taxa obrigatória para a construção da Duvalierville, a cidade de Duvalier. O dinheiro nunca foi empregado na edificação da cidade, mas sim, depositado nas contas do próprio ditador, em bancos do Haiti e da Suíça.

<p>Papa Doc posa para foto em 1969</p>
Papa Doc posa para foto em 1969
Foto: AP

Durante seu reinado, Doc ordenou a prisão de profissionais da imprensa, a expropriação de terras para a construção de academias para seus guarda-costas, e a execução de quem quer que o desafiasse ou o traísse.

Quando dois de seus filhos foram quase mortos em um atentado, Doc ordenou que 65 de seus oficiais fossem fuzilados. Em outra ocasião, comandou pessoalmente o assassinato de 19 de seus principais seguidores, por desconfiar que seus homens tramavam um plano que o levaria à derrocada.

Quem foi François Duvalier

François Duvalier nasceu em um bairro pobre de Porto Príncipe. Filho de um professor e de uma funcionária de padaria, Duvalier se formou em medicina pela École de Médecine da capital haitiana e atuou durante anos em clínicas e hospitais tratando de doentes com enfermidades tropicais. Chegou a ser diretor do Serviço de Saúde Pública, de 1946 a 1949, e ministro do trabalho e da saúde durante os dois anos seguintes, época em que passou a integrar um grupo de intelectuais nacionalistas, que entrou para a clandestinidade em 1951.  Seis anos mais tarde, Papa Doc aproveitou a implantação de um novo golpe militar e a renúncia de Magloire para se candidatar à presidência e com o respaldo dos próprios militares tomar o poder.

Um presidente negro com poderes 'sobrenaturais'

Doc, que se gabava por ser o primeiro homem negro e pobre do Haiti a se tornar presidente, consolidou seu poder entre os chefes espirituais regionais da religião vodun (tradição religiosa baseada nos acentrais dos povos Ewe-Fon da África Ocidental). Durante o período em que foi membro de um grupo de médicos financiado pelos Estados Unidos para percorrer o próprio Haiti, na década de 1940, Doc percebeu a importância que o vodun tinha para a população, principalmente entre os moradores das áreas rurais, e passou a usar a religião para construir um culto em torno de sua personalidade e amedrontar seus opositores.

<p>Haitianos choram a morte do presidente Papa Doc, em abril de 1971. Até hoje o líder haitiano é amado e odiado</p>
Haitianos choram a morte do presidente Papa Doc, em abril de 1971. Até hoje o líder haitiano é amado e odiado
Foto: AP

Há relatos de que o presidente tentou por horas induzir a cabeça de um de seus inimigos, o capitão Blucher Phologénes, a revelar os planos de seus inimigos enquanto ele meditava na banheira, vestido apenas com seu chapéu negro.

Mas Doc não cometia torturas aos opositores apenas espiritualmente. Era comum o presidente descer até o porão de seu palácio para assistir prisioneiros políticos serem torturados.

Nenhum outro regime durou tanto quanto o de Papa Doc. Dos 36 presidentes que antecederam o ditador, 23 foram ou mortos ou depostos. Sob um clima de grande terror e sob a proteção constante dos 600 membros de guarda das forças do governo e de 5 milicianos, Doc liderou o Haiti até a sua morte, em 22 de abril de 1971.

Tal pai, tal filho

Com a morte de Papa Doc, o país viu emergir um novo ditador: Jean-Claude Duvalier, o filho de Papa Doc. 'Baby Doc' assistiu o pai comandar o país com mãos de ferro por 12 anos, e naturalmente, deu continuidade ao legado.

Durante o período em que se manteve no poder, Baby Doc matou milhares de opositores e desviou milhares de dólares. O país permaneceu sob o rígido controle da milícia dos bichos-papões e sob a vigilância da guarda “duvalerista”, conhecida como 'os dinossauros'.

<p>Jean Claude Duvalier, o Baby Doc, posa junto do pai, no palácio presidencial, na capital Porto Príncipe</p>
Jean Claude Duvalier, o Baby Doc, posa junto do pai, no palácio presidencial, na capital Porto Príncipe
Foto: AFP

O filho do grande ditador chegou a ensaiar uma liberalização na década de 1970, ao criar uma liga haitiana de direitos humanos e propor eleições, mas voltou a dominar o Haiti com rédeas curtas após se casar com Michele Bennet, uma rica herdeira protestante do antigo regime.

Contudo, Baby não foi tão bem sucedido quanto o pai, e acabou destituído em 1986, após uma revolta popular. Deposto, o filho de Doc fugiu com milhares de dólares para a França, onde viveu por anos com a namorada Veronique Roy em uma mansão do litoral sul da França, uma das regiões mais caras e sofisticadas do mundo.  

Baby Doc só regressou ao seu país de origem em 2011, mesmo sob ameaças de prisão pelas forças do governo do então presidente René Préval.

O legado da 'era Doc' e a admiração de seu povo

Papa e Baby Doc deixaram seu o Haiti em extrema miséria. Durante seus mandatos, o Haiti viu a escalada de sua deterioração econômica e social como resultado de décadas de isolamento diplomático e do desvio de milhões de dólares de obras sociais. Em 1986, o índice de analfabetismo haitiano figurava entre um dos mais altos do mundo e a saúde pública se encontrava em um estado lamentável: cerca de 90% da população sofria de tuberculose ou desnutrição.  

<p>Manifestante protesta contra a miséria no Haiti, em 29 de março de 2014. A população haitiana pede a renúncia do autal presidente, Michel Martelly, acusado de não tomar as medidas necessárias para cessar a fome no país</p>
Manifestante protesta contra a miséria no Haiti, em 29 de março de 2014. A população haitiana pede a renúncia do autal presidente, Michel Martelly, acusado de não tomar as medidas necessárias para cessar a fome no país
Foto: AP

Desde o fim da 'era Doc', a miséria, agravada pelo terremoto de 2010, vem se perpetuando no país. A população está insatisfeita com o atual presidente, Michel Martelly, e há dias vem organizando protestos para pedir sua renúncia. O povo acusa Martelly de não ter feito o suficiente apara aliviar a fome no país, desde que tomou posse em maio de 2011.

Mesmo diante do legado de total miséria deixado por Papa e Baby Doc, existem haitianos que relatam outra versão dessa história. O haitiano Louis, de 40 anos, explica que, embora a situação do Haiti tenha ficado bastante difícil após do terremoto de 2010, o país não se encontra em estado de total desolação, pelo contrário. Segundo ele, os sistemas de saúde e educação haitianos são muito bons, e os problemas detectados em seu país não diferem dos enfrentados outras nações, inclusive o Brasil.

<p>Baby Doc acena para simpatizantes após uma coletiva de imprensa, em Porto Príncipe, em 21 de janeiro de 2011. Há 25 anos no exílio, Doc afirmou ter voltado ao Haiti para ajudar o povo a reconstruir seu país, após o terremoto de 2010</p>
Baby Doc acena para simpatizantes após uma coletiva de imprensa, em Porto Príncipe, em 21 de janeiro de 2011. Há 25 anos no exílio, Doc afirmou ter voltado ao Haiti para ajudar o povo a reconstruir seu país, após o terremoto de 2010
Foto: AP

Sua percepção sobre Papa e Baby Doc é oposta à que o resto do mundo tem desses dois ditadores. “Eles são boas pessoas e suas histórias são limpas e suaves, ninguém pode falar mal deles, as pessoas que se opunham a eles e ao atual presidente são pessoas sem ideais, bandidos de terno”, garante o imigrante.

Louis é um dos muitos haitianos que aprenderam na escola a admirar os líderes de seu país. Não importa o que o mundo diga, nos livros de história do Haiti, Papa e Bay Doc são retratados como os 'deuses' que sempre afirmaram ser.

Diante da tamanha adoração de um povo a um líder autoritário, a reflexão que fica é se Papa Doc não estava certo ao afirmar que “o que você chama de democracia em seu país, em outra nação pode ser chamado de ditadura”.

Fonte: Terra
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