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Transições 'atrapalhadas' podem gerar prejuízo nas contas

Especialistas destacam problemas principalmente entre grupos rivais e apontam importância do planejamento para os quatro anos de mandato

30 nov 2020 - 11h10
(atualizado às 11h32)
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Quando a prefeita Renata Sene (Republicanos) assumiu a gestão de Francisco Morato, na região metropolitana de São Paulo, se deparou com uma situação diferente do que tinham lhe informado sobre as contas no município. Após derrotar o então prefeito Marcelo Cecchettini (PV) nas eleições de 2016, Renata ouviu que haveria um superávit de R$ 9 milhões naquele ano. Boa parte da receita já estava comprometida com pagamentos e, segundo Renata, ela descobriu que seu primeiro ano de mandato teria de ser planejado com um rombo de R$ 30 milhões.

Transições atrapalhadas entre grupos rivais podem trazer prejuízos para as contas públicas e interrupções na prestação de serviços. Segundo analistas e autoridades que acompanham a qualidade no setor público, o problema é comum em muitos municípios. Para as gestões que assumem no próximo ano, há ainda um agravante: com as eleições de 2020 adiadas de outubro para novembro, o tempo para a transição será de apenas um mês.

Renata Sene (Republicados) foi reeleita prefeita de Francisco Morato
Renata Sene (Republicados) foi reeleita prefeita de Francisco Morato
Foto: Divulgação / Estadão Conteúdo

No caso de Francisco Morato, não houve troca de informações entre o prefeito derrotado e a candidata eleita em 2016, e as pendências se acumularam. Nos primeiros meses de governo, a nova gestão levou outro susto: a equipe informou Renata que, no último mês do governo anterior, empenhos de pagamentos rotineiros haviam sido cancelados. A prefeitura devia a dezenas de fornecedores, sem que os novos funcionários tivessem sido avisados.

"Tive o desafio de uma transição desrespeitosa: montamos uma equipe de transição, fizemos vários anúncios, mas não fomos recebidos da mesma forma", conta Renata, que se reelegeu no primeiro turno das eleições deste ano. Ela calcula que a confusão na troca de prefeitos atrasou em cerca de 14 meses a implantação de projetos que eram prioridade da sua gestão para a cidade. "Eles não deixaram a documentação adequada para a mudança de governo, e isso se mostrou um desafio muito grande."

Principais gargalos

Os problemas podem vir de contratos que deixam de ser renovados, documentos que se perdem em meio à troca de equipe, e a chegada de novos funcionários comissionados que não passaram por treinamento, apontam especialistas. É no primeiro ano de mandato que a maioria dos prefeitos costuma fazer contratos emergenciais, sem licitação, que tendem a ser mais caros e carregar falhas de planejamento.

"O prefeito não tem prazo para fazer uma licitação adequadamente, acaba lançando mão de contratações emergenciais, que não são as melhores para o interesse público", diz o advogado Luiz Gustavo Cordeiro Gomes, consultor da área de Direito Público na Fundação Instituto de Administração (FIA). "A transição mais complexa, que gera descontinuidade nos serviços públicos e faz despencar a efetividade, não tenha dúvida, é quando há uma mudança de grupo político."

Em Jandira, também na região metropolitana da capital, a troca da organização social (OS) que administrava o hospital público da cidade gerou o maior revés na gestão de Paulo Barufi (PTB). Recém-empossado, Barufi estava em seu quarto mês de mandato quando assinou um contrato emergencial para o atendimento básico de saúde no município. A nova administração apontava erros no cumprimento do contrato pela entidade que administrava o hospital até então, o que havia motivado uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara Municipal no ano anterior.

Barufi havia assumido no lugar de Geraldo Teotônio da Silva, o Gê (PV), que não buscou a reeleição. A contratação, feita às pressas, gerou questionamentos na Justiça após o Ministério Público de São Paulo (MP-SP) encontrar irregularidades nas certidões apresentadas pela OS. O prefeito acabou condenado em primeira instância por improbidade administrativa, com uma sentença determinando perda de mandato. Ele recorreu, e o caso está tramitando em segunda instância.

Nas eleições deste ano, em que tentou se reeleger, o prefeito perdeu para o candidato Doutor Sato (PSDB), que teve cerca de 45% dos votos. O município não tem segundo turno. "O processo de contratação seguiu os termos da lei. O prefeito continua trabalhando para a população e confia na Justiça", disse a assessoria de Barufi.

Contas públicas

Responsável pelos indicadores de qualidade usados pelo Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE-SP), o conselheiro Sidney Beraldo faz o alerta para que prefeituras criem controles internos para que informações sejam compartilhadas durante a transição. Se isso não ocorrer, há o risco do novo gestor perder de vista as recomendações e advertências que o tribunal faz durante a auditoria anual das contas municipais. No limite, essa falha pode levar até a uma rejeição das contas do novo prefeito.

"Se o controle interno é feito por um servidor de cargo comissionado, de confiança do prefeito, que leva embora (os dados) quando o prefeito sai, a prefeitura não tem esse histórico e isso, sem dúvida, vai trazer prejuízo no acompanhamento dessas recomendações feitas pelo tribunal", diz Beraldo. "E o novo gestor que não tenha conhecimento disso vai pagar o preço. Se não atender as recomendações, vai ter as contas rejeitadas."

O mesmo vale para Termos de Ajuste de Conduta (TACs) celebrados com o Ministério Público, ou ações na Justiça que obriguem mudanças na estrutura da administração. Segundo Cordeiro Gomes, têm sido frequentes ações do MP que exigem maior proporção de servidores concursados nas prefeituras, justamente para que funções essenciais não sejam desempenhadas por funcionários que estão apenas de passagem no setor público. Quando uma prefeitura perde uma ação desse tipo na Justiça, muitas vezes há um prazo curto para fazer novas contratações, o que tem impacto nas contas públicas.

Os problemas na transição são recorrentes a ponto de, neste ano, motivarem cursos e seminários da iniciativa privada e no setor público. O governo estadual de São Paulo ofereceu, pela primeira vez, um curso de capacitação para gestores municipais com foco na transição de governo. Ao menos 125 municípios devem participar.

"Vamos ter praticamente só dezembro para transição e, com isso, sentimos a necessidade de apoio para evitar interrupções de serviços essenciais à população", diz o secretário estadual de Desenvolvimento Regional, Marco Vinholi, responsável pelo programa. "É um curso para todas as cidades, independente de qualquer conotação política."

Com um cenário de queda na arrecadação ao longo de 2020, e a pressão em cima dos orçamentos com os reajustes em despesas, especialistas alertam que o planejamento na transição de governo será ainda mais crítico para garantir estabilidade ao longo do mandato. "Existem reflexos da transição de governo nos quatro anos de mandato", diz o advogado Edgar Hualker da Silva Dias, especialista em direito municipal. "O melhor é estudar sua própria estrutura. Se o prefeito fizer isso logo no início do mandato, vai ter quatro anos construindo um desenho com excelência. Se deixar para o final do mandato, não vai conseguir."

Estadão
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