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Rússia Etapa V: literatura soviética e o realismo socialista

28 dez 2017 - 12h07
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Nos anos 30 do século XX, o período de relativa tolerância criativa e da independência dos autores e artistas encerrou-se na Rússia Comunista. Adestrada pelo partido, a literatura soviética e as demais artes deveriam seguir a doutrina oficial. A ordem era engajar-se com ardor na tarefa de construir a sociedade igualitária futura sob orientação infalível do camarada Stalin, pai provedor e guia espiritual da nação. 

Lenin na usina Putilov (I. Brodsky)
Lenin na usina Putilov (I. Brodsky)
Foto: Divulgação

A nova fase artística seria orientada pelos cânones proletários do Realismo Socialista (expressão certamente criada por Stalin). Foi este o sumário do discurso pronunciado pelo comissário Andrei Zhdanov na abertura do Iº Congresso dos Escritores Soviéticos, realizado em 1934, com trágicas conseqüências para a história das letras do país. Pode-se afirmar que as exigências do partido foram o tiro de misericórdia na grande literatura russa que tanto encantou e espantou o Ocidente, sepultando ju7nto as experiências dos modernistas.

Lenin e Gorki, o líder e o escritor (tela de I. A.Wladimirov)
Lenin e Gorki, o líder e o escritor (tela de I. A.Wladimirov)
Foto: Divulgação

O Realismo Socialista

“Eu inventei um novo gênero...o gênero do silêncio.” (Isaac Babel - 1934)

Após quase duas décadas, de 1910 a 1930, as vanguardas artísticas e estéticas européias estavam por chegar a um fim. O ocaso resultou de um conjunto de fatores que iam desde a exaustão do experimentalismo, até a ascensão de regimes ditatoriais na década de 30 indispostos à tolerá-las. A devastadora Crise de 1929 no Ocidente, responsável pela ascensão dos ditadores fascistas,  e os Planos Qüinqüenais na União Soviética de Stalin, abalaram profundamente a liberdade imaginativa até então alcançada.

Durante o Iº Congresso da União dos Escritores Soviéticos, realizado entre 17 de agosto e 1º de setembro de 1934, o comissário Andrei Zhdanov, com apoio de Josef Stalin, Nicolau Bukharin e Máximo Górki, determinou que todos aqueles dedicados às artes& letras do país deveriam dali em diante orientar-se somente pela linha adotada pelo Partido Comunista.

Em anos anteriores, nos começos da revolução, quando a batuta do comissariado da cultura estava com Anatoly Lunacharsky, um bolchevique ilustrado e de temperamento liberal, todos os tipos de espetáculos dramáticos representados frente às multidões foram estimulados pelas autoridades. A teoria da carnavalização de Mikhail Bakhtin, que testemunhou estes espetáculos públicos em Petrogrado no período pós-revolução, deriva daí. Deu-se então o império dos vanguardistas. Além da ousadia na composição de cartazes de propaganda do regime, eles foram convocados a decorar com seus desenhos abstratos e figuras geométricas os vagões dos trens que partiam para a guerra civil de 1918-1921.

Não que a tolerância predominasse. Eugeni Zamiatin (autor da novela “Nós”, fundador da moderna distopia, inspiradora do “1984” de George Orwell), mesmo quando era integrante do partido comunista já denunciara a chegada de uma “A Idade do Gelo”, assegurando que a “ verdadeira literatura não pode fluir da pena de obedientes e rotineiros burocratas, mas terá que ser produzida por loucos, eremitas, heréticos, sonhadores, rebeldes e céticos.”(“Tenho Medo”, Jornal Dom Iskusstv, 1921)

O inferno do morticínio entre vermelhos e brancos, prosseguiu Zhdanov, já fazia parte do passado, a reconstrução do país se completara, agora, expurgados os elementos da economia capitalista que ainda restavam, era o momento do salto em direção ao socialismo. Hora de dar um basta na iconoclastia e irreverência dos tempos anteriores e dedicar-se a forjar uma nova cultura: uma contrafação saudável à decadência literária  da burguesia ocidental, atolada na pornografia, niilismo e misticismo. Soara a vez do Realismo Socialista. (*)

Estavam eles obrigados, pois, a idealizar romances, peças e novelas que estivessem ao nível do povo russo em geral, sabidamente muito baixo, e que não abrigassem truques experimentais ou personagem complicado que confundissem ou embaralhassem os leitores. Além disso, havia uma arraigada crença de que os experimentos dos modernistas não passavam de importação, de estrangeirismos que pouco tinha com o sentimento ou a estética russa. 

Deviam ser aliados do partido na luta contra o atraso, o analfabetismo, e a ignorância das massas, fazendo com que modelassem um cenário de entusiasmo somado ao trabalho duro, ajudando na radiante construção do futuro utópico – evidentemente que sob a paternal orientação de Stalin [Dobrenko&Naiman (ed.) The Landscape of Stalinism: the art and ideology on Soviet space, 2005].

 Como observou Katerine Clark, o velho mito da Mãe Rússia reaparecia pelas artes do aparelho ideológico comunista na forma da Pátria Socialista, espaço sagrado no qual o povo soviético, como “povo eleito”, escolhido pela dinâmica da história, estava destinado a implantar o comunismo, etapa superior do desenvolvimento social e redenção da humanidade na Terra.

(*) O termo Realismo Socialista surgiu por primeiro na oficialista Gazeta Literária, de maio de 1932, apresentada como “demanda das massas por uma arte honesta, verdadeira e revolucionária” que realmente representasse a revolução proletária. Máximo Gorki voltou a usar a mesma expressão para referir-se à necessidade de se criar algo baseado apenas na experiência socialista. 

Enquadrando a arte

Para aplainar o caminho do novo dogma, dois anos antes, em 1932, todas as associações e organizações das artes&letras que existiam na União Soviéticas foram abolidas. Ou se pertencia a União dos Escritores, controlada pelo regime, ou ninguém poderia publicar fosse o que fosse. Os que incomodassem seriam expulsos ou banidos, além de denunciados como “antipovo”, particularmente os que incorriam no pecado do “formalismo”, expressão corrente na época para classificar tudo o que não correspondia às determinações estéticas do partido.

A imposição do Realismo Socialista ao mundo das artes foi a conclusão lógica da estratégia stalinista de centralização total que vinha num crescendo desde a década de 1920, pois se Comitê Central executava a planificação econômica, exercia o monopólio absoluto da política, controlava o Exército Vermelho e a NKVD, a polícia secreta, como esperar que o frágil universo da estética pudesse ficar de fora dos olhos vigilantes do partido?

Por igual, a desabusada intromissão nas artes decorreu da concepção que Lenin tinha do papel delas como instrumento a ser explorado ideológica e partidariamente para fins educacionais e de mobilização das massas. Isto já se refletira nas medidas preliminares tomadas pelos bolcheviques nos meses seguintes à revolução de 1917 no sentido do controle total da mídia (gráficas, edições de livros, jornais e revistas, livrarias e bibliotecas), banindo dela os não-conformistas ou os oposicionistas.

Portanto, aqueles dedicados às artes&letras viram-se convocados a servirem como agentes de propaganda aos projetos do Estado Soviético na sua faina gigantesca da “construção do Comunismo”. Como escrevera Gorki no Pravda (4/12/1934), “a honra, a glória e o heróico, tornaram-se tão familiares aos soviéticos que nem mesmo era percebida pela imprensa”. Era tarefa para décadas, algo que transcendia gerações.  E é ainda do mesmo escritor a “receita” a ser seguida pelos seus colegas: como essência a nova arte deveria ser: A) Proletária acessível ao trabalhador; b) Típica voltada para o dia-a-dia deles; c) Realista figurativa e verdadeira, sem recursos verbais ininteligíveis; c) Partidária, sempre se colocando na linha determinada pelo partido comunista.

Exílio, prisão ou execução

Eugeni Zamiatin, resoluto, corajoso, não desejando de modo nenhum seguir ativo naquelas condições, enviou uma carta pessoal a Stalin pedindo para sair do país. Milagrosamente o tirano concordou. Logo, segui-o Victor Serge que já estava preso, mas graças ao clamor no Ocidente terminou sendo deportado em 1936.

Isaac Babel, o notável autor de “A Cavalaria Vermelha”, obra de 1926, e alto quadro do partido, não quis mais se dedicar ao métier. Mesmo sendo considerado como um dos mais famosos contistas soviéticos, disse a André Malraux, o escritor francês que estava presente no Congresso, que além de ser “mestre no gênero do silêncio” iria viver como vendedor de roupas. Não cumpriu totalmente com o que disse.

No ano seguinte ao Congresso, encontrando-se com o jornalista e escritor Ilya Ehrenburg, em Moscou em 1935, ponderou que tudo aquilo nada mais era do que uma preparatória da mobilização para a guerra (Hitler havia ascendido ao poder na Alemanha, em 1933). Na época do Grande Expurgo, Babel foi detido e fuzilado na prisão de Lubyanka, em Moscou, em 15 de janeiro de 1940. Um pouco antes chegara a comentar que “certas coisas somente poderiam ser ditas a esposa e embaixo dos lençóis”. 

Destino tristemente igual teve o diretor do teatro experimental soviético Svevolod Meyerhold, que apesar de ter 66 anos, levou também um tiro na nuca nos porões daquela mesma prisão. O reservado ao poeta Osip Mandelstam, autor do “A Esperança Abandonada”, foi um tanto diferente. Encarceraram-no a primeira vez em 1934 por ter escrito um epigrama contra Stalin: “Ele trata os crimes como negócio/ o brutamontes da Ossétia (região da Geórgia onde Stalin nascera). Todavia o ditador não o puniu com o rigor dos campos de trabalho e sim com desterro. Em 1937, todavia, detiveram-no novamente e no outro ano ele morreu de exaustão num campo de forçados próximo a Vladivostok, porto na Sibéria Oriental, em 27 de dezembro de 1938.

Um pouco antes deixara escrito: “Tu deves mandar-me/ e eu estou obrigado a ser serviçal ao desdenhar o nome e a honra/cresci enfermiço e tornei-me débil.”

Os que tiveram mais sorte haviam conseguido ser expulsos ainda nos começos da década de 1920. Em setembro de 1922, quando Genrik Iagoda, braço direito de Dzerzinky da TCHEKA, então rebatizada como OGPU, a polícia política dos bolcheviques, organizou uma lista de 130 cientistas e intelectuais russos que, por incompatibilidade ideológica, não podiam mais trabalhar nem viver em solo soviético. Providenciaram então o fretamento de dois navios que, partindo das docas de Leningrado, os levou em exílio forçado para a Stettin, na Alemanha, tendo a bordo lingüistas do porte de N. Trubetzkoy e R. Jakobson (que iriam fundar a Escola de Praga) e o famoso filósofo cristão Nikolai Berdiaiev. Deportações que foram catastróficas para o país, mas que enriqueceram os países que os acolheram.

A mesmice literária

Stalin num colóquio com soldados, marinheiros e trabalhadores (tela de K.D.Trokhimenko)
Stalin num colóquio com soldados, marinheiros e trabalhadores (tela de K.D.Trokhimenko)
Foto: Divulgação

O enquadramento dos escritores soviéticos e a imposta adesão deles ao projeto de stalinização, que fez deles gancho, alavanca ou manivela dos Planos Qüinqüenais aplicados às letras - algo que até então jamais se vira na história do país - aviltou enormemente as letras russas. Aliás, se tal exigência houvesse no tempo do czar, seguramente não se conheceria nomes como o de Gogol, Tolstoi, Dostoievski ou Tchekov, admirados pelo mundo inteiro.  

Desde então, leu-se, em tiragens de milhões de exemplares, um sem-fim de histórias banais, escritas em má prosa russa, tratando do sucesso da coletivização das terras, dos magníficos episódios da implantação de uma metalurgia ou siderurgia, da bravura dos lideres proletários na solidificação da nova sociedade, da alegria dos colcozianos durante a colheita, e da sempiterna sabedoria do comissário ou do membro do partido no local onde a narrativa transcorria, instrumento da clarividência do Guia Genial dos Povos, o camarada Stalin.   

Enredos banais

Jovens metalúrgicos (tela de I.Bevzenko)
Jovens metalúrgicos (tela de I.Bevzenko)
Foto: Divulgação

A complexidade psicológica dos personagens, as idiossincrasias de cada um, as nuanças do relacionamento amoroso, os lados amargos da vida, e de tudo mais desapareceu frente ao predomínio de uma narrativa heróica centrada nas ações épicas dos proletários, operários ou camponeses, na “construção da sociedade futura”, na qual os episódios eram entremeados por longas digressões, espaço no qual o autor, como se fora um arauto, repetia as palavras de ordem emitidas pelo partido naquele momento. Cada uma daquelas páginas abrigava não seres humanos de carne e osso, mas titãs soviéticos esculpidos em mármore ou forjados no bronze. Um tédio e uma chatice só. 

Era uma literatura de locomotivas e trilhos, de tratores e ceifeiras, de tornos mecânicos e bombas hidráulicas, de construção de barragens e hidrelétricas, de memoráveis escavações nas profundezas da terra, de onde emergia o mineiro stakanovita (*), coberto de pó negro, alardeando um novo recorde de produção, pronto a receber uma medalha e um diploma de louvor do representante do partido.

O “diabo” se fazia presente na figura do sabotador, na vilania do agente estrangeiro infiltrado (cuja duplicidade sempre terminava desmascarada pela vigilância e proficiência do comissário local), ou simplesmente no comportamento do indiferente, do cético, o tipo que não se deixava empolgar pela “construção do Comunismo”, mas que no fim se convertia à causa. Era um mundo maniqueísta, do preto e branco, de aliados contra inimigos, no qual a figura central observou mais tarde Ylia Ehrenburg, “era retratada com o pincel de um medíocre pintor de ícones.”.

(*) Expressão derivada de Alexei Stakhanov, um mineiro do Don, uma espécie de operário padrão ou super-homem da Rússia stalinista dos anos 30.

O começo do degelo

Parece não haver até nos nossos dias um levantamento mais detalhado do total de escritores, artistas e pensadores que foram aprisionados, levados a cumprir pena no Gulag (o sistema de campos de concentração soviético), ou simplesmente executada à bala. A perseguição e extermínio da intelligentsia russa determinada pelos bolcheviques começaram no ano de 1921, ainda sob Lênin. A primeira foiçada atingiu nomes expressivos da poesia, tal como Nikolai Gumilev, o marido da célebre poetisa Ana Akhmatova e co-fundador da União pan-russa de escritores, e mais 61 outros, todos assassinados pela CHEKA de Petrogrado (acusados de conspiração contra-revolucionária, numa das primeiras cabalas inventadas pela polícia secreta soviética).

Outros se anteciparam ao triste fim. “Sergei Esenin, por exemplo, “o filho pródigo” da literatura russa”, o poeta-camponês, desiludido com os acontecimentos expressos no poema “A Estrela de Outubro me enganou”, matou-se em 27 de dezembro de 1925. “O mesmo fez o futurista Vladimir Maiakovski, ele que dissera aprender “o alfabeto nos letreiros folheando páginas de estanho e ferro”, disparou chumbo no seu peito no dia 14 de abril de 1930, atendendo assim a sua famosa estrofe:” o coração suspira por uma bala ““!

Número de mortos que aumentou espantosamente à época da yezhovchnina, o Grande Expurgo dirigido por Nikolai Yezhov, diretor da NKVD, o Comissariado dos Assuntos Internos, entre 1936 e 1938, época de paranóia coletiva que serviu para Stalin colocar uma pá de cal sobre a tumba da intelligentsia e sobre os seus antigos companheiros de partido.

Os que conseguiram ainda manterem-se vivos depois daquilo tudo, escritores&artistas, tiveram seus cérebros como que congelados, robôs controlados por uma poderosa burocracia que adquirira horror à mudança ou à inventividade. Nomes como os de Ilya Ehrenburg e Boris Pasternak sobreviveram apenas por um capricho do ditador, que pessoalmente os apreciava. Excepcional também foi o de Michail Aleksandrovich Sholokhov, um alto quadro do partido, autor de “O Don Silencioso”, tido como um “clássico do Realismo Socialista”, talvez o livro mais lido na URSS e que o habilitou a receber o Premio Nobel de Literatura de 1965.

Entende-se assim o enorme impacto que a morte de Stalin, ocorrida em 5 de março de 1953, causou sobre o país e nas suas artes como um todo. O gigantesco tirano, “a Montanha Magnética”, como indiretamente o designou Stephen Kotkin, que enregelara a alma da nação, tinha um lado humano: era mortal. O cadáver embalsamado dele, colocado inicialmente ao lado do de Lenin no mausoléu da Praça Vermelha em Moscou, foi um estimulo ao degelo geral que se seguiu.

Bibliografia

Brooks, Jeffrey –Thank You, Comrade Stalin!:

Soviet Public Culture from Revolution to Cold War. Princeton University Press, 1999.

Dobrenko&Naiman (ed.) The Landscape of Stalinism: the art and ideology on Soviet space, Washington University,  2005.

Volkov, Solomon – São Petersburgo: uma história cultural. Rio de Janeiro – São Paulo: Editora Record, 1997.

Ehrenburg, Ylia – Memórias. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1964-1970, 6 v.

Serge, Victor – Memórias de um revolucionário. São Paulo. Companhia das Letras, 1987.

Zhdanov, A . A.  - Soviet Literature - The Richest in Ideas, the Most Advanced Literature [discurso no Iº Congresso de Escritores Soviéticos, 1934]

Kotkin, Stephan – Stalin. Paradoxos do poder. São Paulo: Editora Objetiva, 2017.

http://www.marxists.org/subject/art/lit_crit/sovietwritercongress/zdhanov.htm

Veja também

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Fonte: Especial para Terra
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