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Euclides e a tragédia da Piedade

3 ago 2018 - 16h12
(atualizado às 16h13)
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No dia 15 de agosto de 1909, o escritor Euclides da Cunha, o maior nome das letras nacionais, autor de Os Sertões, foi morto a tiros num acerto de contas com o amante da sua mulher, o cadete Dilermando de Assis. O  desenlace deu-se num lugar um tanto ermo, na Estrada Real de Santa Cruz, área mais afastada do bairro da Piedade no Rio de Janeiro. Daí a imprensa, deste então, designá-lo com a Tragédia da Piedade, situação em que estiveram presentes, nos seus condimentos passionais,  os elementos de um drama de proporções clássicas, digna do repertório de um Ésquilo.

O duelo, charge de A Manhã.
O duelo, charge de A Manhã.
Foto: Reprodução

No Olimpo dos Republicanos

Euclides da Cunha não era somente um escritor extremamente bem sucedido, era igualmente um herói republicano.  Em dezembro de 1888, ainda na época do Império - em incidente que o deixou famoso bem antes de empunhar as letras - ,  sendo ele aluno da Escola Militar na Praia Vermelha, no Rio de Janeiro,  por ocasião de uma apresentação de armas, lançou sua baioneta aos pés do Ministro da Guerra  de D. Pedro II, em protesto contra as vexações anteriores sofridas pelos militares.

Este ato corajoso e destemido, que lhe valeu a expulsão da escola aos 21 anos, abriu-lhe as portas para que ele circulasse entre a elite da oficialidade republicana. Começou a freqüentar a casa do major Solon Ribeiro, que além de fazer do lar o abrigo dos próceres republicanos,  foi o oficial que entrou na história brasileira por ser o portador da mensagem do Marechal Deodoro da Fonseca a D. Pedro II, comunicando-o da proclamação da república. Ao visitá-la pela primeira vez, Euclides da Cunha logo entusiasmou-se pela filha do major, Anna Emília, a S´Anninha como a intimavam.

Ela estava então com 14 anos, e era afilhada do Barão do Rio Branco. O cadete deixou-lhe um bilhete “ Entrei aqui com a imagem da República e parto com a sua imagem.” O casamento entre o herói rebelde e a jovem musa republicana  deu-se quase em seguida à Proclamação da Republica, consumando-se em 10 de janeiro de 1890. Foi, mesmo com os bons votos de todos , um enlace de infelicidades.

Anna, o pivô da Tragédia da Piedade
Anna, o pivô da Tragédia da Piedade
Foto: Reprodução

Fama e infortúnio

Se Euclides da Cunha foi sobejamente bafejado pela inteligência e o conhecimento de Minerva, Vênus, a deusa do amor, virou-lhe as costas. Em parte, justamente por identificar-se com a atividade da coruja, espremendo seus grandes olhos noturnos sobre livros, sobre alfarrábios, códices,  registros, mapas e documentos, é que o pequeno cupido não incumbiu-se de flechar o coração de quem ele mais queria, S´Anninha

Celebrado no Brasil inteiro desde o lançamento de Os Sertões, em 1902, quase em seguida  Euclides da Cunha começou a ser traído pela mulher. Sempre viajando, deixara-a com  seus três filhos no Rio de Janeiro, morando numa pensão na rua Senador Vergueiro. Foi lá que ela, uma atraente balzaquiana, uma morena vivaz e sensual, mulher de leitura, conheceu o jovem Dilermando de Assis, com apenas 17 anos.

Quando o escritor voltou de uma viagem feita pela Amazônia, em 1906,  onde fora tratar das questões de fronteiras, soube de tudo. Dilacerado entre a tentativa de manter um casamento de aparências -  para não infelicitar os filhos ou manchar-lhe a reputação - , e os tormentos por sentir-se vilmente traído ( Anna Emília, enquanto esposa de Euclides, chegou a ter dois filhos do amante), viu a sua vida  torna-se um inferno. Ele não podia aceitar que ela, apoiada num desquite ou numa simples separação, fosse viver com um outro, ainda mais um garoto. Os tempos eram tiranicamente moralistas, exigindo dele uma atitude radical.

Euclides da Cunha, o gênio infeliz
Euclides da Cunha, o gênio infeliz
Foto: Reprodução

A Tragédia da Piedade

Monteiro Lobato, comentando o caso muitos anos depois, creditou-o às desgraças da Fortuna. Uma tragédia de Ésquilo, asseverou ele. Na manhã do domingo do dia 15 de agosto de 1909, Euclides da Cunha, com um pretexto banal, passou na casa de uns primos em Copacabana para conseguir uma arma. Sabedor da estação em que a mulher estava (ela, assustada com os crescente furores dele, homiziara-se na modesta casa do amante no bairro da Piedade), para lá rumou empunhando um revolver calibre 32.

Percorrendo a Estrada Real de Santa Cruz, um local um tanto ermo, o marido injuriado não demorou para localizar o ninho dos amantes. Bateu palmas frente ao pequeno portão e pediu para entrar. Queria dar umas palavras com Dilermando. Anna Emília, que lá estava com o filho Solon, sentiu nos ares o cheiro do sangue. Mal a porta lhe foi aberta, Euclides, dizendo ter ido lá “ para matar ou morrer”, disparou sua arma contra Dinorah, o irmão de Dilermando, um alferes da Marinha. Mais três outros foram feitos contra o amante. Campeão de tiro, o jovem Dilermando respondeu-lhe com dois balaços certeiros. Euclides, ferido com um projétil que lhe furara o peito, saindo pela porta lateral da casa, arribou nas escadas, morto. O maior escritor do país, desaparecia assim, só e duplamente humilhado, pela mulher infiel e pela destreza do amante dela.

O local da tragédia (a primeira casa à esquerda)
O local da tragédia (a primeira casa à esquerda)
Foto: Reprodução

Segue o drama

O escândalo foi colossal. Criando-se na ocasião  até uma forte tensão entre civis e militares, pois o grande intelectual fora morto por um tenente do exército. Pairou no ar por uns tempos,  a desconfiança de que,  por ter  Euclides denunciado no Os Sertões a campanha contra Canudos como “um erro”, “ um crime”, os tiros fatais de Dilermando teriam um sabor de resposta da insatisfação dos quartéis.

Os três filhos de Euclides com Anna foram entregues a tutores. Dilermando de Assis, absolvido por ter agido em legítima defesa, resolveu reparar  o estrago casando-se com a  viúva. Tiveram ainda cinco filhos. Dinorah, o irmão dele, com o ferimento agravado, ficou hemiplégico (suicidou-se em Porto Alegre, em 1921).

Em 4 de julho de 1916, transcorridos quase sete anos das vésperas daquela desgraça, uma nova se repetiu. O jovem alferes Euclides da Cunha Filho, o Quidinho, com apenas 16 anos,  atiçado pelas Erínias, resolveu tomar-se de vinganças. Adentrou num cartório onde estava Dilermando e disparou sua arma nas costas dele. Ainda que ferido, o campeão de tiro conseguiu pregar  duas precisas balas no rapazinho. Nem assim Anna Emília, em nome da paixão que a movia, deixou Dilermando, que novamente foi inocentado. Se bem que ela disse “ Eu não errei, eu amei”, aparecia  assim  à opinião pública como mulher e mãe insensível. O resultado final daquilo tudo foi impressionante. 

Ainda que Anna Emília conseguiu manter-se com  os filhos de Dilermando, os que teve com Euclides se dissolveram. Os Cunha jamais a perdoaram,  pois ela fora o pivô de  duas mortes: a do marido Euclides e a do filho Quidinho. Além de assistir o aleijão do seu infelicitado irmão DinorahDilermando de Assis, por sua volta,  carregou por todos os lados o peso de ser “ o assassino de Euclides”.  De fato,  as Erínias, as fúrias de Ésquilo, arrasaram aquela gente.  

Epílogo

É uma lei que as gotas de sangue derramado na Terra

Exigem outro sangue, pois o assassínio clama pela Erínia,

Para que, em nome das primeiras vítimas,

Ela traga nova vingança sobre a vingança

Ésquilo ( Orestéia, Coéforas,400-404)

Fonte: Voltaire Schilling
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