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1968: a Revolução Globalizada (Parte II)

27 mar 2018 - 16h13
(atualizado às 16h22)
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Em 1968, jovens das cidades mais importantes do mundo sairam às ruas para criticar abertamente a sociedade e os regimes políticos vigentes. Durante alguns meses, tudo parecia ser posto de pernas para o ar frente ao vendaval juvenil. Açoitadas pela fúria das ruas, as autoridades quase naufragaram naquele ano tão estranho e excepcional durante a primeira revolução globalizada que se conheceu.

Contestação e contracultura

Nenhum outro acontecimento desde a Guerra da Secessão de 1861-65 provocou tamanha divisão na opinião publica norte-americana como o envolvimento dos Estados Unidos na guerra civil vietnamita (1961-1975). A chamada “maioria silenciosa”, e os conservadores em geral, sustentava que era uma intervenção militar justa e nobre porque os americanos estavam no Sudeste da Ásia para impedir que seus aliados do Vietnã do Sul caíssem sob domínio comunista. Criam sinceramente que estavam apoiando a causa da democracia e não um regime colaboracionista, neocolonialista e corrupto.

Pelotão se desloca na selva (Ofensiva do Tet, 1968)
Pelotão se desloca na selva (Ofensiva do Tet, 1968)
Foto: Reprodução

Repentinamente milhares senão milhões de norte-americanos, sempre tão ciosos da excelência da suas instituições e do seu idealismo, deram-se conta que desta feita estavam agindo do lado do mal. Eles é quem eram os vilões do conflito. Sensação que piorou ainda mais quando tomaram conhecimento do Massacre de My Lay cometido em 16 de março de 1968  por um pelotão de infantaria sob o comando do tenente William Calley que abateu a tiros 504 camponeses vietnamitas. O que fez com que a rejeição ao recrutamento se ampliasse ainda mais, estimulado por multidões que saiam às ruas entoando hinos religiosos que se transformaram em canções de protesto, como foi o caso do We shall overcome:

Nós triunfaremos/Nós algum dia seremos livres

Algum dia todos nós seremos livres/

Nós não tememos/Nós não estamos mais sós

Entrementes milhares de jovens americanos refugiaram-se no Canadá e na Suécia para escaparem do recrutamento,  especialmente depois que o presidente Johnson convocou os calouros para completar os regimentos a serem enviados para o fronte de guerra. Naquele momento o número de soldados servindo no Vietnã chegou a 549.500.

Mark Rudd durante a ocupação da U. de Columbia ( maio de 1968)
Mark Rudd durante a ocupação da U. de Columbia ( maio de 1968)
Foto: Reprodução

Deu-se então a vez dos campus  entrarem em ebulição. A famosa Universidade de Columbia, de Nova York,  foi tomada entre abril e maio de 1968 pelos seus alunos liderados por Mark Rudd, um dos líderes da SDS (Students for a Democratic Society). Ocupações e sit-ins multiplicaram-se desde Berkeley na Califórnia, até a Universidade de Chicago e de Wisconsin. O mundo universitário colocou-se em pé de guerra contra as autoridades acadêmicas e as estatais. Denunciavam a colaboração daqueles centros de estudo e pesquisa com o esforço de guerra norte-americano. Os cérebros acadêmicos estavam aos olhos dos jovens em aberto conluio com as empresas dedicadas à fabricação de armas de destruição em massa, além de napalm e herbicidas que eram lançados contra os campos indefesos do Vietnã.

O Movimento Hippie

“Apesar da fraude e da leviandade que embaraçam seus contornos uma nova cultura esta realmente surgindo entre nossa juventude (...) uma cultura tão radicalmente dissociada dos pressupostos básicos da nossa sociedade que muitas pessoas nem sequer a consideram uma cultura, e sim uma invasão bárbara de aspecto alarmante.”

Theodore Roszack - A Contracultura, 1972

Outra forma de contestação foi assumida pelo Movimento Hippie, tendo à frente o ativista Abbie Hoffmann. Estes eram jovens da mais diversa extração social que ostensivamente vestiam-se de uma maneira chocante para o americano médio daquela época. Deixavam crescer as barbas e os cabelos, vestiam brim e trajes de algodão colorido, decoravam-se com colares, pulseiras e profusões de anéis. Calçavam sandálias como se fossem jovens trapistas e queriam deter o War Power, o Poder da Guerra, contrapondo-o ao Flower Power, o Poder da Flor.

Passaram, por igual, a habitar em bairros separados, como o famoso Haight Ashbury, em San Francisco, na Califórnia, o East Village em Nova York,  ou em comunidades rurais. Rejeitando a sociedade de consumo  mantinham-se pelo artesanato e, no campo, da horta. Além disso não preservavam as regras esperadas de comportamento, higiene, ou casamento. Peace and Love (“Paz e Amor”) era o seu lema.

Jim Morrison, líder do grupo The Doors
Jim Morrison, líder do grupo The Doors
Foto: Reprodução

Desenvolveram um universo próprio, uma “cultura alternativa”, que infelizmente não resistiu ao convívio deles com as drogas. Iniciados na marijuana,  terminaram por mergulhar em coisas mais fortes como cocaína, heroína, o LSD (ácido lisérgico) e outras chamadas de psicodélicas, introduzidas no meio estudantil e no mundo acadêmico pelo professor de psicologia da Universidade de Harvard Timothy Leary. Coube a ele o pouco meritório papel de fazer com que os alucinógenos deixassem de ser associadas aos desclassificados sociais e aos criminosos para serem consumidos em ambientes de classe média (*).

(*) Leary, por sua vez, havia se inspirado no escritor Aldous Huxley que havia experimentado uma droga denominada de  mescalina e cujos efeitos ele retratou no seu livro The Doors of Perception (As portas da percepção) e, anteriormente, na sua clássica novela sobre a sociedade distópica intitulado The Brave New World (Admirável Mundo Novo, de 1932).

Orientalismo e rock de contestação

Os ídolos literários da Geração de 68 foram o escritor pacifista alemão Herman Hesse, falecido em 1962 no seu exílio na Suíça,  cujos livros, como Demian e Sidarta,  narravam histórias orientais de iniciação e abandono à introspecção e à meditação.  Por igual, os jovens celebraram o poeta Dylan Thomas, morto por excessos do álcool em 1953, um rompedor de regras considerado, devido sua vida dissipada,  o “ultimo poeta maldito” da literatura inglesa, autor de versos obscuros e delirantes:

E a morte perderá o seu domínio/.

Aqueles que há muito repousam sobre as ondas do mar

não morrerão com a chegada do vento/;

ainda que, na roda da tortura, comecem

os tendões a ceder, jamais se partirão/;

entre as suas mãos será destruída a fé

e, como unicórnios, virá atravessá-los o sofrimento/;

embora sejam divididos eles manterão a sua unidade;

e a morte perderá o seu domínio.

(“E a morte perderá o seu domínio”- tradução de Fernando Guimarães)

Um dos mestres pensantes da Geração de 68  foi o psiquiatra germano-americano Wilhelm Reich que associava a agressividade humana à repressão sexual praticada contra os adolescentes e os jovens em geral por adultos que, por serem  formados na rigidez patriarcal e autoritária,  consideravam o sexo pecaminosos e imoral. Reich defendia, paralelo à revolução política, uma Revolução Sexual.

Seguindo-o na preferência da época achava-se o famoso escritor-psicanalista Erich Fromm que procurou conciliar Freud com Marx, produzindo uma série de livros de divulgação no sentido de aproximar a Psicanálise do Marxismo. Ambos eram alemães de origem judaica e haviam se refugiado nos Estados Unidos durante os anos 30.

O Rock como crítica

A música eleita por eles foi o rock ou a balada de contestação: Janis Joplin, Jim Morrison, Joan Baez, Jimmy Hendrix, Bob Dylan, John Lenon e Joe Cocker foram seu principais expoentes.

Rejeitavam abertamente tudo o que pudesse ser identificado como vindo do “americano médio” porque acreditavam que a essência da agressão ao Vietnã encontrava-se no âmago do modo de ser da sociedade tecnocrática, competitiva, individualista e consumista que caracterizava a nação. Propunham uma contracultura (couterculture). Não formaram um partido político nem desejavam disputar as eleições. Queriam impressionar pelo comportamento, altera radicalmente os costumes dos que os cercavam para mudar-lhes a mentalidade.

O apogeu do movimento da contracultura ocorreu no Festival de Woodstock, nas proximidades de Nova Iorque, em agosto de 1969, quando 300 a 500 mil jovens reuniram-se para um encontro de massas para celebrar o rock e manifestar-se pela paz.

Os Panteras Negras

A ala moderada do Movimento Negro norte-americano, por sua vez, perdeu, em 4 de abril de 1968, o seu maior expoente, o pastor Martin Luther King, assassinado em Memphis, no Tennessee. Ele que fora criticado por seus métodos pacifistas pelas lideranças mais jovens e radicais, os “Panteras Negras”( Black Panther Party for Self Defense), inclinava-se cada vez mais contra a Guerra do Vietnã no momento em que foi baleado. King entendeu que a luta dos povos do Terceiro Mundo assemelhava-se a dos negros americanos contra a discriminação e o preconceito.

Tanto assim que as primeiras vitimas da polícia naquele vulcânico ano foram três estudantes negros da Universidade da Carolina do Sul que haviam sido mortos num protesto, por terem sido barrados numa clube de boliche, ocorrido em 8 de fevereiro de 1968, enquanto 27 outros foram gravemente feridos no que ficou conhecido como o Massacre de Orangenburg.

A morte do grande líder negro, Premio Nobel da Paz de 1964, provocou uma violenta onda de  saques e  incêndios nos maiores bairros negros em 125 cidades americanas. Por igual,  ajudou na projeção de um ativismo mais extremista representado pelos Panteras Negras, liderados por Huey Newton e Bobby Seale,

Mas o maior expoente do radicalismo negro, sua estrela maior,  foi Stokely Carmichael um jovem ativista, então com 27 anos,  fundador do SNCC (Student Nonviolent Coordinating Committee) que pregava uma atuação separada dos negros na política norte-americana por meio do Black Power, o Poder Negro,  e que mais tarde exilou-se na Guiné africana.

Seale e Newton, líder dos Panteras Negras
Seale e Newton, líder dos Panteras Negras
Foto: Reprodução

Os Panteras Negras transformaram-se eventualmente num grupo revolucionário marxista que defendia uma política de auto-defesa dos negros, a isenção dos pagamentos de impostos e de todas as sanções da chamada "América Branca". Exigiam, por igual, a libertação de todos os irmãos de cor da cadeia, e o pagamento de compensação por séculos de exploração branca, além de isenção do serviço militar.

Sua ala mais radical defendia a luta armada. Em seu pico, nos anos de 1960, o número de membros da organização excedeu 2 mil o que lhes permitiu abrir sedes nas principais cidades, até que começassem a ser exterminados um por um pela polícia e pela perseguição do FBI de Edgar Hoover.

A nova esquerda

“....essa oposição luta contra a maioria da população, incluída a classe operária, contra todo o chamado way of life do sistema, contra a onipresente pressão do mesmo e, finalmente, contra o terror que reina fora das metrópoles.”

Herbert Marcuse - O Fim da Utopia, 1967

O embasamento teórico do que estava acontecendo, daquela erupção juvenil internacional, e de tudo o que viria ainda a ocorrer,  encontrou seu melhor embasamento teórico no pensamento do filósofo alemão Herbert Marcuse. Exilado nos Estados Unidos desde 1934, ele preocupou-se em entender quais as possibilidades de transformação social numa sociedade opulenta como a norte-americana na qual a crítica ao capitalismo era inexpressiva.

Num livro polêmico “A Ideologia da sociedade industrial” (One-Dimensional Man, 1964), percebeu que numa sociedade unidimensional como era a norte-americana, ao contrário da bidimensional predominante na Europa (na qual operários se opõem aos capitalistas), caracterizava-se por sua capacidade de absorver as classes subalternas tornando-as não-contestadoras e acomodadas.

Desta forma a idéia de Marx de que o operariado industrial, o moderno proletariado, seria a força motriz da revolução socialista, e principal agente da transformação social,  não se verificava em sociedades do capitalismo avançado (ou tardio) como a norte-americana.

Nela os trabalhadores em geral atuavam como uma força conservadora, seduzidos pelo consumo e pelos bens materiais do american way of life. Tanto assim que enquanto a classe média instruída voltou-se crescentemente contra a guerra, coube aos operários e a maioria dos sindicatos de empregados darem-lhe apoio.

Marcuse, profeta da rebelião dos jovens de 1968.
Marcuse, profeta da rebelião dos jovens de 1968.
Foto: Reprodução

Concluiu então que os verdadeiros agentes da transformação deveriam ser os outsider, os que ainda estavam fora das benesses do sistema capitalista, como as minorias étnicas ou os que simplesmente as rejeitavam, como os estudantes e  grupos formados  pelos intelectuais beatniks. Deles é que, ainda que inconscientemente, partiria a contestação ao regime e a ordem autoritária que lhe dava sustentação.

Os militantes dessa Nova Esquerda (New Left) não eram marxistas nem tinham simpatias pelo socialismo. Eram de composição social diversificada, acolhendo gente de todos os estratos sociais. Seus principais representantes, pelo menos nos Estados Unidos,  não eram políticos nem líderes demagogos mas poetas e escritores como Allen Ginsburg, por exemplo.

Marcuse, na tradição ideológica da Escola de Frankfurt, via na tecnologia uma forma mais sofisticada de controle social e repressão. Ela continuava existindo mesmo em sociedades democráticas, porque as técnicas do mass-midia “de manipulação e controle”, permitiam um policiamento mais eficiente sobre as mentes dos cidadãos. O processo de emancipação das massas no futuro dependia em grande parte não só do movimento político mas também de uma substancial alteração do comportamento, inclusive ético-sexual.

Em outro dos seus livros muito famosos e lidos, intitulado Eros and Civilization, A Philosophical Inquiry into Freud.(Eros e Civilização, de 1966), defendeu a “dessublimação controlada” onde ocorreria uma libertação simultânea “ da sexualidade e da agressividade reprimidas.”

Ele desejava resgatar o utópico que havia sido abandonado pelo marxismo  “clássico”. Entendia ele que graças ao acelerado desenvolvimento tecnológico era  possível  hoje atingir a utopia (ou o que anteriormente se considerava uma utopia) e implantar uma sociedade solidária e igualitária, onde a repressão sexual desaparecesse.

Veja também

"A Revolução silenciosa", um documentário sobre a história das mulheres sauditas:
Fonte: Especial para Terra
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