Metas climáticas não serão alcançadas sem integridade da informação, diz conselheira da ONU
CHARLOTTE SCADDAN VÊ CONFERÊNCIA EM BELÉM COMO OPORTUNIDADE PARA ENFRENTAR AÇÃO DE GRUPOS QUE DISSEMINAM FALSIDADES SOBRE O CLIMA E MINAM A DEMOCRACIA AO INCENTIVAR POLARIZAÇÃO
Pela primeira vez, a desinformação foi inserida entre os pontos principais a serem discutidos na conferência da ONU para as mudanças climáticas (COP). A "integridade da informação em assuntos climáticos" consta como um dos 30 objetivos-chave da conferência, organizada nesta semana em Belém, no Pará. Ela é definida como um ponto transversal com o potencial de estimular e acelerar todos os demais objetivos da conferência.
Para a conselheira sênior em integridade da informação na Organização das Nações Unidas (ONU) Charlotte Scaddan, isso ocorre por dois motivos. O primeiro seria uma maior conscientização sobre a desinformação climática. Segundo ela, a preocupação deixou de ser uma questão da sociedade civil e chegou aos estados membros da COP. "Se quisermos alcançar nossas metas climáticas, os países não têm outra escolha a não ser abordar os desafios no ecossistema da informação", disse. "A questão é como e quando."
O segundo fator está ligado ao trabalho do presidente da COP, o embaixador brasileiro André Corrêa do Lago. "Com esta presidência da COP 30, o assunto foi levado a outro nível, e eles realmente mostraram muito apoio à questão", avaliou Scaddan.
A ONU usa o termo "integridade da informação" pois trabalha com um olhar integral para o tema. Essa visão sugere abordar não só a disseminação de alegações ou conteúdos enganosos, mas também outros problemas sistêmicos. É o caso, por exemplo, do papel que os algoritmos têm na comunicação. Ou campanhas de assédio e ódio.
A integridade da informação seria o equivalente digital de uma dieta saudável para a população: para viver bem, não basta ter acesso a qualquer comida, e sim a alimentos nutritivos e seguros. Da mesma forma, é preciso que as pessoas tenham acesso a informações precisas e confiáveis para gerar conhecimento e capacidade de tomar decisões.
Leia a seguir os principais pontos da entrevista concedida por Scaddan ao Estadão Verifica:
Há evidências científicas suficientes de que a atividade humana tem influência na mudança do clima. A desinformação climática é capaz de inviabilizar esse consenso no público?
É impossível destruir o consenso científico. Ciência é ciência. O que vários atores são muito bons em fazer é semear a dúvida entre públicos-chave, como formuladores de políticas e tomadores de decisão. O objetivo é atrasar ou interromper o alcance das metas climáticas acordadas internacionalmente.
Mas também vemos a desinformação climática sendo utilizada para fins fora da área ambiental. Está sendo usada em esforços para minar processos democráticos, especialmente em torno de eleições, e geralmente para piorar a polarização social. É um mecanismo conveniente para uma ampla gama de atores: políticos, governamentais ou não governamentais, estatais ou não estatais.
Existem semelhanças na luta contra a desinformação e na luta contra a mudança climática?
As comunidades vulneráveis e marginalizadas são as mais imediatamente impactadas pelas mudanças climáticas. Da mesma forma, elas são as mais visadas no ataque à integridade da informação. Elas não têm acesso a informações confiáveis e podem ser alvo de campanhas de ódio e assédio. Então, sim, há paralelos, e ambos exigem cooperação internacional. Em julho, a ONU publicou nosso primeiro relatório de risco global e os resultados foram exatamente o que você acabou de dizer. A desinformação foi identificada como a principal vulnerabilidade global para a qual a comunidade internacional não está suficientemente preparada, e muito perto do topo estavam os riscos ambientais. Nós as vemos como duas crises que estão convergindo e que devem ser abordadas juntas.
A desinformação vai enfraquecer os esforços para tomada de decisões na COP 30?
Estamos fazendo de tudo para evitar que isso aconteça. Haverá tentativas de minar a integridade da informação climática em torno da COP. Nós vimos isso em todas (as edições da conferência), e esta não será exceção. E, na verdade, pode haver esforços maiores em torno desta (edição). Em parte porque a questão da integridade da informação está na agenda pela primeira vez, o que é um grande passo à frente. O IPCC reconheceu a desinformação climática em seu relatório de 2022, mas acho que, com esta presidência da COP 30, o assunto foi levado a outro nível. Eles realmente mostraram muito apoio à questão. É o item número 30 na agenda de ação.
Mas acho que também reflete a escala do problema e a crescente conscientização internacional, dos próprios estados membros, de que não seremos capazes de alcançar nossas metas climáticas a menos que fortaleçamos a integridade da informação. A questão é como e quando. E acho que esta COP 30, em Belém, é uma oportunidade crucial.
Há quem confunda medidas de combate a desinformação com censura ou limitação da liberdade de expressão. Como evitar essa distorção?
Há uma falsa dicotomia entre integridade da informação e a liberdade de expressão. Você não pode desfrutar plenamente da liberdade de expressão sem barreiras de proteção no espaço da informação. A liberdade de expressão é, sim, o direito de se expressar, mas é também o direito de procurar e receber ideias de todos os tipos. E é significativamente mais difícil fazer isso quando você está em um ambiente de informação poluído com mentiras, e especialmente se você pertence a um grupo vulnerável a campanhas de ódio e de assédio. As barreiras de proteção à integridade da informação existem para elevar a liberdade de expressão, e não para miná-la.
A Amazônia é uma área com muitos conflitos. A desinformação pode ser usada como arma contra povos indígenas ou outras comunidades tradicionais?
A desinformação é tristemente usada para atingir grupos vulneráveis, e é realmente importante abordar isso. Precisamos proteger essas comunidades. E, neste caso, essas comunidades que são tão vitais para uma ação climática eficaz.
O fortalecimento à integridade da informação pode reduzir conflitos sociais e ambientais?
O acesso à informação é um direito humano. É importante que todos os elementos da sociedade tenham acesso a uma variedade de pontos de vista, uma variedade de fontes de informação. As câmaras de eco (fenômeno em que uma pessoa só tem acesso a conteúdos que confirmam seu posicionamento) são realmente um dos grandes impulsionadores da polarização social e da falta de coesão que temos visto. Então, quanto mais informações puderem ser acessadas em geral, isso deve levar a sociedades mais estáveis, economias mais estáveis e um futuro mais pacífico.