Hidrocolonterapia traz riscos à saúde e não é recomendada para 'detox' do intestino
LAVAGEM INTESTINAL PELO ÂNUS DEVE SER FEITA APENAS NO PREPARO PARA EXAMES E EM CASOS DE CONSTIPAÇÃO INTESTINAL GRAVE; MÉDICO QUE GRAVOU VÍDEO DIVULGANDO PROCEDIMENTO DISSE QUE NÃO O RECOMENDA COMO TRATAMENTO
O que estão compartilhando: vídeo em que influenciadora mostra como fez um procedimento de hidrocolonterapia, uma espécie de lavagem intestinal. O conteúdo afirma que a hidrocolonterapia traz benefícios à saúde, pois melhora a microbiota do intestino e evita doenças.
O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é enganoso. Não há evidências científicas de que a hidrocolonterapia - lavagem intestinal a partir da introdução de uma cânula pelo ânus - traga benefícios à saúde. A lavagem intestinal deve ser feita apenas em situações muito específicas, como no preparo para exames de colonoscopia e investigação de endometriose, antes de cirurgias intestinais e em casos selecionados de constipação intestinal grave.
Ainda assim, o procedimento é precedido de dieta e uso de laxantes via oral. De acordo com especialistas, o procedimento mostrado em um vídeo que viralizou esta semana não apenas não traz benefícios à saúde como acarreta em riscos, alguns deles graves, como possibilidade de sangramento e perfuração do intestino, o que pode exigir cirurgias de emergência.
O médico Bruno Landim, dono da clínica onde o procedimento foi feito, disse ao Verifica que a hidrocolonterapia mostrada no vídeo foi feita em uma paciente com quadro de constipação intestinal severa, com impacto na qualidade de vida. Ele acrescentou que reconhece que o procedimento não deve ser estimulado de forma indiscriminada.
A influenciadora Ary Steinkopf, que publicou o vídeo sobre o procedimento, não respondeu. A postagem foi apagada após o contato do Verifica.
Saiba mais: O vídeo investigado acumulava quase 12 mil curtidas no Instagram menos de 24 horas após a publicação. Ele foi postado pelo perfil da nutricionista Ary Steinkopf em parceria com o médico Bruno Landim, dono de uma clínica de medicina integrativa no Rio de Janeiro.
No vídeo, o procedimento é feito na própria nutricionista, que também é influenciadora digital. Há comentários do médico no conteúdo, mas a hidrocolonterapia é feita por outra profissional, que não tem o nome divulgado.
O que é a hidrocolonterapia?
O procedimento mostrado no vídeo é uma espécie de lavagem do intestino grosso com água morna introduzida por uma mangueira via anal. Em alguns casos, é usado soro fisiológico. Após a introdução do líquido, é feita uma massagem no abdômen para, em tese, ajudar a expulsar o excesso de fezes antigas acumuladas. O procedimento dura de 10 a 15 minutos.
No conteúdo viral, o médico diz que a hidrocolonterapia traz benefícios à saúde, como um "detox" hepático e linfático, além de melhora no peristaltismo (movimento dos músculos do trato gastrointestinal) e na microbiota intestinal. A limpeza seria benéfica porque, segundo ele, 90% das doenças começam no intestino. Mas nada disso é verdade (leia mais detalhes abaixo).
A nutricionista que vai fazer o procedimento diz que precisa eliminar fezes que estavam "acumuladas por anos" no intestino. Mas, de acordo com a Sociedade Brasileira de Coloproctologia (SBCP), não faz sentido falar em uma intoxicação do organismo provocada pelo acúmulo de fezes antigas no intestino.
"Esta teoria foi cientificamente desmentida por volta de 1920, quando estudos científicos demonstraram não haver qualquer relação entre a presença de fezes no cólon e algum tipo de intoxicação no nosso organismo", diz uma nota técnica divulgada em 2023, quando o tema já circulava pelas redes sociais.
"A ideia de que as fezes poderiam ficar presas à parede do intestino por vários anos também é completamente descabida", completa o texto.
Isso é desmentido por estudos científicos e autópsias, segundo a Sociedade. "Estudos realizados em procedimentos cirúrgicos e autópsias nunca evidenciaram a presença de fezes firmemente aderidas à parede do intestino grosso".
Procurado, o médico Bruno Landim disse que, em sua prática, a hidrocolonterapia não é apresentada como tratamento curativo, nem como substituta de terapias médicas tradicionais.
"Trata-se de um recurso considerado apenas em casos selecionados, especialmente em constipação crônica grave, dentro de uma abordagem integral, e sempre com protocolos rigorosos de segurança, triagem e respeito às contraindicações clínicas", disse, em nota.
Isso não aparece no conteúdo do vídeo, nem na legenda do post. O texto apontava para uma série de supostos benefícios e acrescentava que o procedimento era "super acessível" na clínica onde foi feito. A influenciadora chega a dizer que é um detox profundo indicado para "todo mundo".
Landim afirmou que pediu que o post fosse apagado pela influenciadora "para evitar interpretações equivocadas e prevenir que o procedimento seja buscado por pessoas sem indicação clínica adequada".
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Lavar o intestino traz benefícios à saúde?
Em resposta ao Verifica, Bruno Landim disse que, no caso específico mostrado no vídeo, o procedimento foi feito como medida complementar após consulta inicial, revisão do histórico intestinal da paciente e confirmação de que não havia contraindicações. Ele compartilhou dois artigos - um deles, um estudo experimental - sobre a prática e a segurança de hidrocolonterapia em pacientes com constipação refratária.
Mas, de acordo com a médica coloproctologista Andrea Pecci, membro da SBCP, a hidrocolonoterapia não é considerada um tratamento e não há diretriz a recomendando, nem no Brasil nem no exterior. "Não tem nada de evidência científica. Pelo contrário, ela traz muito mais riscos do que benefícios", disse.
A alegada melhora na microbiota intestinal citada no vídeo é contestada por especialistas. Pecci diz que não há fundamento na teoria de que 90% das doenças vêm do intestino.
"Hoje, a microbiota é muito estudada", explicou. "Ela é composta por uma variedade imensa de microorganismos: tem bactéria, vírus, fungos, protozoários. É como se fosse um ecossistema que tem uma função de fazer uma barreira de muco no intestino. Esse muco é que vai funcionar como uma barreira de filtro".
Se há uma lavagem sistemática e mecânica desse muco, a função da microbiota é atrapalhada. "Isso acaba fazendo com que essa barreira fique permeável. E hoje se sabe que um intestino permeável é ruim, porque pode trazer doenças neurológicas, imunológicas, alérgicas. Você perde uma barreira de proteção", detalhou.
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Quais os riscos de se fazer o procedimento?
A Sociedade Brasileira de Coloproctologia alerta que a hidrocolonterapia acarreta em riscos à saúde das pessoas, como desequilíbrio da flora intestinal, desidratação, desequilíbrio hidroeletrolítico, distensão abdominal, cólicas, além de risco de perfuração do intestino e sangramento por lesão da parede intestinal durante a colocação da sonda.
Em 1985, aponta nota técnica da entidade, o procedimento foi condenado nos Estados Unidos pela Food and Drug Administration (FDA) como método terapêutico para desintoxicação do organismo. Atualmente, a entidade não aprova nenhum dispositivo para lavagem do cólon com líquidos.
Em caso de sangramento ou perfuração do intestino, a pessoa pode precisar de cirurgia de emergência e até colocação de uma bolsa de colostomia. "É um procedimento invasivo que pode ter complicações gravíssimas, outras menos graves. Pode ter uma exacerbação de doença hemorroidária, de uma fissura anal, pode ter formação de fístula anal", enumerou.
A médica Toni Golen, da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, respondeu recentemente sobre a segurança desse procedimento e alertou que, além de ser desnecessário - já que o cólon elimina toxinas por si só -, ele traz riscos.
"Pessoas com condições como diverticulite, doença inflamatória intestinal, doenças cardíacas ou renais, ou que tenham sido submetidas a cirurgias de cólon, enfrentam riscos adicionais", apontou.
A lavagem é utilizada em alguma situação?
Sim, mas em casos muito específicos e com recomendação e acompanhamento médico. Ela pode ser feita antes da realização de exames de colonoscopia ou de investigação para endometriose, já que é preciso uma imagem limpa para que seja feito um diagnóstico. Outra possibilidade é no preparo para cirurgias intestinais. Em casos específicos, um médico pode indicar uma lavagem intestinal para pessoas com constipação intestinal grave.
Mas é preciso lembrar que, em nenhum desses casos, é feita a lavagem diretamente, sem outros procedimentos. Primeiro, a pessoa é submetida a uma dieta específica, geralmente com líquidos e fibras. Depois, é feito uso de laxante viral oral. Só em alguns casos pode haver indicação para lavagem por via anal.
Pessoas que têm trânsito intestinal lento e episódios constantes de conspiração precisam de acompanhamento médico e, em geral, são tratadas com dieta adequada, rica em líquidos, fibras, com poucos alimentos industrializados e associada à atividade física regular.