Programa LGBT registra avanço de homofobia em São Paulo
Prefeitura contabilizou 116 casos em dois meses contra os 240 casos gerais em todo o ano de 2014; ação lançada hoje quer coletar denúncias
Aline Martes tem 37 anos e é travesti desde os 16. Parou de frequentar a escola quando ainda cursava a quarta série do ensino fundamental. “Na sala de aula, eu não sabia se prestava atenção na professora ou no ‘montinho’ que se criava e que, depois, vinha para cima de mim me agredir ou me xingar. Hoje isso tem até um nome bonito e sonoro, ‘bullying’, mas essas agressões me fizeram desistir de ir para a escola. Preferia ir escondida à casa de uma amiga só para não ter que passar por aquela situação todo dia”.
Athena Joy tem 27 anos e é transformista. Ela conta que sofreu violência psicológica da própria família, durante anos, e violência física de quem sequer conhecia. “Eu estava na fase de transformação para quem sou hoje. Um sujeito me xingou na rua de ‘viado safado’, eu xinguei de volta e ele quase desfigurou meu rosto com socos”, diz.
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O casal Luana Neves, 19 anos, e Tamires Martins, de 18 anos, encontrou uma maneira de se blindar contra a chacota na rua quando andam de mãos dadas: “Cortei meu cabelo bem curto, um corte masculino, porque quando nós duas tínhamos cabelo comprido, era demais da conta: nos ofendiam, nos mediam de cima a baixo, e uma vez um sujeito me agrediu porque achava errado ver duas mulheres juntas”, conta Tamires.
Apesar de as histórias terem nuances diferentes, as quatro personagens convergem em um ponto: São Paulo, e mesmo o Brasil, ainda são lugares onde a homofobia não foi dissipada das situações mais corriqueiras do cotidiano – dentro e fora de casa –, nem da tentativa de conquistar espaços no mercado de trabalho. No caso da capital paulista, a percepção de quem recebe esse tipo de relato, pelo poder público, é de que ele está aumentando.
Com a promessa de combater situações como essas, a prefeitura de São Paulo lançou nesta segunda-feira um serviço itinerante que, por meio de uma van e equipes de atendimento especializado, pretende dar assistência a vítimas de homofobia na cidade. Batizado de Unidade Móvel de Cidadania LGBT, o programa, vinculado à secretaria municipal de Direitos Humanos e Cidadania, vai oferecer apoio psicológico e jurídico às vítimas, além de testes rápidos de detecção de HIV.
“Fizemos uma primeira experiência de atendimento itinerante com mulheres vítimas de violência e recolhemos muitas informações importantes sobre violência doméstica; agora, faremos o mesmo com a comunidade LGBT e os casos de homofobia – sobretudo em pontos específicos e onde o risco e a vulnerabilidade são maiores”, afirmou o prefeito Fernando Haddad (PT).
O petista ainda se disse favorável a leis mais rígidas no combate à homofobia – promessa de campanha, por exemplo, da então candidata à reeleição Dilma Rousseff (PT). “É inaceitável alguém sofrer violência pelo fato de ser mulher, negro, ter uma religião a, b ou c, ou determinada orientação sexual. Não podemos conviver com isso, ainda mais quando o mundo inteiro está caminhando para celebrar a diversidade”, avaliou. “Somos 12 milhões [de habitantes em São Paulo]; temos que lidar com a diversidade de maneira madura”, concluiu o prefeito.
Em uma fase inicial, a van LGBT atenderá no Largo do Arouche, de quinta-feira a domingo, das 18h às 23h. Aos sábados, o veículo estará na rua Augusta, próximo ao cruzamento com a rua Peixoto Gomide. Os dois locais são considerados redutos LGBT na capital paulista.
Em dois meses, órgão recebeu mais casos de homofobia que em todo 2014
De acordo com o coordenador de Políticas LGBT da Secretaria de Direitos Humanos, Alessandro Melchior, a pasta vem observando, nos últimos meses, avanço dos relatos de homofobia que chegam até ela.
“Recebemos durante todo o ano passado 240 casos no nosso atendimento geral – não apenas relatos de homofobia, mas outros inerentes à vulnerabilidade. Só em abril e maio deste ano, contabilizamos 116 situações só de homofobia – de violência a preconceito, e a maior parte, infelizmente, de violência psicológica na escola e na família”, comentou Melchior. Sobre as situações de agressão física relatadas, o coordenador afirmou que elas se concentram, principalmente, na região da avenida Paulista. “Ali é o centro da vida noturna de São Paulo, e também local onde a diversidade é muito grande, mas nem todos conseguem ainda, infelizmente, conviver com essa pluralidade”, opinou.
No próximo semestre, a secretaria abrirá um centro de cidadania para abrigar LGBTs em situação de rua. Em uma primeira etapa, antecipou Melchior, serão 30 vagas. A unidade está sendo preparada no Bom Retiro, na região central. Já as unidades móveis de atendimento, como a lançada hoje, deverão ser mais quatro até o final de 2016.
Recepcionista no programa municipal de proteção à comunidade LGBT, o TransCidadania, a travesti Aline acredita que o caminho até o fim da homofobia é longo – ela que, além das situações de agressão na escola, ainda pré-adolescente, já apanhou também no centro da cidade.
“Só saí da prostituição, há seis meses, por conta da bolsa que recebo no programa – são R$ 820 que, juntando com o salário de um companheiro mecânico com quem vivo há nove anos, pagamos nossas contas. Mas se você rodar por lojas, empresas e fábricas, nunca vai encontrar uma trans trabalhando porque as pessoas não querem empregá-las. Temos capacidade de trabalho como qualquer outro ser humano”, desabafou.
Para a assistente de telemarketing Tamires, o combate à homofobia precisa ter como exemplo também a classe política. “É um absurdo e uma completa idiotice usarem Deus para ditar o que pode e que não pode ser feito – eles precisam mais de Deus que nós, pois julgam, enquanto nós procuramos colocar Deus em todas as nossas decisões”, disse Tamires. A estudante Luana, sua companheira há quase dois anos, concorda. “Os políticos deveriam praticar mais o [ensinamento do] ‘amai o próximo como a ti mesmo’ – não haveria homofobia se fizessem isso”, completou a jovem.