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Com tragédia iminente, Barão de Cocais abandona vilarejo

Até o gado foI removido de Socorro, distrito no sopé da mina de Gongo Soco onde o rompimento é iminente

24 mai 2019 - 04h10
(atualizado às 08h19)
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Com a paisagem marcada por pequenas roças que surgiram em volta de uma igreja secular em Barão de Cocais, cidade a cerca de 90 quilômetros de Belo Horizonte, o vilarejo do Socorro está desenganado. "É como ter um parente muito doente, a gente fica só imaginando a morte", descreve a moradora Eliza Aparecida dos Santos, de 54 anos.

Embora os sítios permaneçam de pé e as plantações continuem florescendo, não há mais ninguém por lá que se beneficie das colheitas. Isso desde a madrugada de 8 de fevereiro, quando os moradores acordaram com disparo de sirenes e foram retirados às pressas por causa do risco iminente de rompimento de uma barragem vizinha. Sob mira da lama de rejeitos, o povoado ficou deserto, até os gados foram removidos. Hoje, já não existe esperança de voltar.

Imagem de arquivo do dia 23/03/2019 mostra na parte de cima a estrutura na Mina de Gongo Soco, em Barão de Cocais (MG)
Imagem de arquivo do dia 23/03/2019 mostra na parte de cima a estrutura na Mina de Gongo Soco, em Barão de Cocais (MG)
Foto: RAMON BITENCOURT/O TEMPO / Estadão

Encravado no sopé da mina de Gongo Soco, adquirida pela Vale em 2011 e desativada em 2016, o vilarejo de Socorro seria o primeiro alvo de um possível rompimento da barragem Sul Superior, que está em nível 3 de alerta, o mais crítico, desde o dia 22 de março. O lamaçal engoliria, ainda, os distritos de Tabuleiro, Piteiras e Vila do Gongo, que formam a chamada zona de autossalvamento. Nesses locais, não haveria sequer tempo de correr.

Por isso, todos os 458 habitantes foram, a contragosto, realojados em hotéis ou casas fora de risco, alugadas pela mineradora. Deixaram para trás lavoura, animais, móveis, roupas, documentos e até a própria rotina. No Socorro, Eliza era diretora da Escola Municipal Mestre Quintão, um colégio rural que há 51 anos ensina crianças do povoado a ler e escrever. "A primeira sensação é de um sonho ruim, como se não tivesse acontecendo. Só depois a gente entende o risco que correu", diz.

Por causa da barragem, a Mestre Quintão passou a funcionar no anexo de outra escola, em uma região elevada de Barão de Cocais. Todos os 42 estudantes foram transferidos para lá - carteiras e parte dos materiais foram doados pela Vale. As salas são batizadas com nome de valores: Respeito, Humildade e Esperança. "Havia alunos que iam para aula de cavalo, havia um apego muito grande", conta a professora Roseney Motta, de 46 anos.

"Toda aula a gente tem de reservar 10 minutos para falar da barragem. É o tempo que as crianças têm para desabafar", diz a professora Ana Paula Herculano, de 39 anos. "Agora os alunos estão, cada um, morando em um bairro diferente. No ano que vem, o provável é que façam matrícula em unidade mais próxima de casa. Ou seja, corre o risco da escola não existir mais."

Na Vila do Gongo, outra área condenada, a agricultora Geralda Santos, de 79 anos, ganhou, por usucapião, o título do seu pedaço de terra na Justiça. Hoje viúva, ela criou dez filhos só com o que plantava. "Moço, deixei milho para comer. Deixei mandioca. Deixei 60 cabeças de galinha. Tem um pomar de laranja, limão, jaboticaba", conta. "Tudo está lá; e eu, aqui. Tô que não me conformo."

Geralda passou a morar com parte da família em uma residência mobiliada e paga pela Vale em Barão de Cocais, mas diz não se sentir em casa. Também está com saúde debilitada e precisa usar muleta para conseguir andar. "Não consigo nem dormir, tanta saudade", diz, mostrando as palmas das mãos com marcas de feridas. "Minha mão cascou quando me levaram para um hotel, por causa do estresse."

Nesta semana, a apreensão na cidade aumentou ainda mais, após notícia de que uma parede de contenção (talude) tem avançado 7 cm por dia. O desabamento da estrutura é dado como certo até domingo - resta saber se será o gatilho para o rompimento da barragem Sul Superior. Segundo auditoria, o risco é entre 10% e 15%.

Homem pedala no centro de Barão de Cocais, em Minas Gerais, cidade onde o meio fio de algumas ruas foi pintado de laranja para sinalizar possível trajeto de rejeitos da barragem Sul Superior, da mineradora Vale
Homem pedala no centro de Barão de Cocais, em Minas Gerais, cidade onde o meio fio de algumas ruas foi pintado de laranja para sinalizar possível trajeto de rejeitos da barragem Sul Superior, da mineradora Vale
Foto: CRISTIANE MATTOS/O TEMPO / Estadão

Pároco do Santuário São João Batista, o padre José Antonio de Oliveira, de 67 anos, diz estar cada vez mais preocupado com os fiéis em Barão de Cocais. "Na Semana Santa, muitos falaram em depressão durante a confissão", afirma. Segundo ele, medidas preventivas, como simulados de evacuação ou sobrevoo de helicópteros que monitoram o perímetro, acabam causando efeito colateral. "O pessoal fica ainda mais assustado."

Construído no século 19, o Santuário é de arquitetura barroca, ostenta uma escultura atribuída a Aleijadinho e está localizado em área considerada segura. À sombra da igreja, dois veículos, equipados com sirenes, passam a maior parte do dia estacionados, mas prontos para rodar a cidade, alertando sobre o rompimento.

O Santuário também passou a abrigar obras sacras da Igreja Nossa Senhora Mãe Augusta do Socorro. Construída em 1737, esta paróquia é a mais velha de Barão de Cocais e organiza a principal festa da cidade, que dura nove dias, em homenagem à padroeira do Socorro. "O vilarejo é histórico e muito antigo. Dizem que o povoamento de Barão de Cocais começou por lá e veio descendo pelo Rio São João", diz o padre José Antonio.

Centro seria uma das áreas mais atingidas

Na previsão adotada pela prefeitura de Barão, se romper a mina de Gongo Soco, a lama também deve seguir pelo curso do rio e percorrer cerca de 18 quilômetros. Neste caso, outros nove bairros seriam inundados, atingindo 3 mil casas e 6 mil pessoas. Em alguns pontos, o cálculo é que leito chegue a sete metros de altura.

Foi para indicar os locais com risco de inundação que a prefeitura pintou de laranja o meio-fio de ruas que podem ser atingidas. Entre elas, está a Getúlio Vargas - a principal via, apinhada de comércios -, agências bancárias, o coreto do município e o fórum. Já os prédios da prefeitura e da Câmara, além do hospital, estariam a salvo.

Por margear o rio, o Centro seria uma das áreas mais afetadas. Entraram na zona de risco, ainda, os bairros adjacentes Sagrada Família, Ponte Paixão, São Vicente, Vila Regina, Viúva e parte do Capim Cheiroso e da Vila São Geraldo. Mais afastados, também correm risco São Benedito e João Paulo.

Nesta hipótese, a barragem despejaria 73% dos rejeitos - e não 100%, conforme foi considerado no último dam break, divulgado nesta quinta-feira, 23. "As áreas demarcadas levam em conta o pior cenário possível, do rompimento da barragem associado a uma chuva decamilenar", diz o prefeito Décio dos Santos (PV). "Infelizmente, estamos preparados para o pior."

Com o laranja nas calçadas, o comércio viu o movimento cair bruscamente. "Moço, é só passar uma viatura que todo mundo sai com medo achando que a barragem estourou, inclusive a gente", diz a vendedora Carla Ferreira, de 25 anos. "Tem muito comerciante procurando trocar o ponto para outra área."

A vendedora Josiana Alves, de 30 anos, confirma o mau momento. "As pessoas também estão com medo de gastar, seja porque é funcionário da Vale e acha que pode ser demitido, seja porque está se preparando para a cidade ficar desabastecida", afirma.

"Se estourar, a cidade acabou, sô. Como o comércio consegue se reeguer de um trem desse?", diz Lucas Aguiar, de 22 anos, que vive há 3 anos em Barão de Cocais. "Eu morava em Bento Rodrigues. Quando a barragem da Samarco rompeu, meu irmão ficou um dia desaparecido. Graças a Deus encontraram ele com vida", conta. "Se a história se repetir, eu pego minhas coisas e saio da cidade."

Por várias ruas, há placas sinalizando rotas de fuga e pontos de encontro escolhidos pela Defesa Civil. Um deles fica ao lado da Escola Municipal José Maria dos Mares Guia, região alta do município, onde estudam cerca 350 criança do maternal ao 9° ano.

"Estamos preparados para ficar presos na escola", afirma a vice-diretora Liliane Gonçalves, de 47 anos. Segundo ela, o colégio não será atingido pela lama, mas perderia todos os acessos à cidade. "Se acontecer, a gente fica ilhado", diz. "Ninguém disse quanto tempo pode levar, mas imagino no máximo uma noite. Com certeza, o estoque da merenda é suficiente para alimentar todo mundo."

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