A ONG que ajuda mulheres a terem acesso ao aborto legal no Brasil
Fundada em 2019, Milhas pela Vida das Mulheres presta assessoria a mulheres que têm o direito ao aborto legal negado no país.Uma pipa voa livre pelo ar. Quem olha de longe enxerga um losango cortando o céu. Quem repara melhor vê o desenho de uma vulva estampada no papel de seda. VoaVulva, obra da artista plástica Viviane Cardell é um de 14 trabalhos da campanha Arte Substantivo Feminino, que vende obras de arte para arrecadar fundos para uma ONG que ajuda mulheres a terem acesso ao aborto legal no Brasil.
São mulheres como Maria (que teve o nome alterado pela reportagem), que tinha direito incontestável ao procedimento por lei: havia sofrido estupro. Ela procurou a ONG Milhas pela Vida das Mulheres (ou simplesmente Milhas, como é conhecida), que a orientou a buscar atendimento na Fundação Santa Casa de Misericórdia de Belém, referência no atendimento de aborto legal na capital paraense.
Após receber o atendimento, o pedido de Maria foi aceito, e o aborto foi agendado. Porém, foi cancelado de véspera, após o anestesista declarar objeção de consciência para realizar um aborto. Esse é um direito de profissionais de saúde, que, então, devem ser substituídos. Mas o procedimento não foi remarcado, e Juliana Reis, fundadora da Milhas, orientou Maria a fazer uma denúncia no Ministério Público (MP) do Pará.
"Ao saberem que o MP estava investido no caso, a Santa Casa começou o 'deixa disso', procedeu com a internação e fez sua obrigação", conta Reis. "Só que não."
Maria foi internada e sedada para o procedimento. Depois, recebeu alta médica. Voltou para casa, aliviada. Mas, nas semanas seguintes, continuou se sentindo mal. Tinha enjoo, vômitos, sentia a barriga estufada. Depois de semanas, procurou um médico. Fez ultrassons que revelaram: ainda estava grávida. Agora, de 12 semanas.
Maria voltou ao hospital com sua família e todo o seu histórico de exames e documentos. Foi internada no mesmo dia. Desta vez, o aborto foi realizado de fato. Porém, devido ao avanço da gestação, pela via mais dolorosa, fazendo a indução do parto e a curetagem.
"Foi a pior experiência da vida de Maria", relata à Reis. Maria não quis conversar com a reportagem, por não querer relembrar tudo que passou. Mas autorizou que a DW contasse o seu caso. Para Reis, a história "épica, para não dizer trágica", oferece um panorama do abismo de cidadania enfrentado por muitas mulheres no Brasil.
A DW entrou em contato com a Secretaria de Comunicação da Santa Casa do Pará, mas não obteve resposta até o fechamento da matéria.
Obstáculos a direitos
De acordo com a Pesquisa Nacional do Aborto (PNA, 2021), uma em casa sete mulheres no Brasil fez pelo menos um aborto antes de chegar aos 40 anos, e mais da metade delas (52%) fez o primeiro aborto na juventude, até os 19 anos de idade.
A prevalência contrasta com a criminalização do aborto no país, que empurra muitas mulheres para vias clandestinas, gerando risco às suas vidas. Mas mesmo quem tem o direito assegurado por lei encontra muitas pedras pelo caminho, como uma rede insuficiente e atendimento extremamente desigual.
A legislação brasileira prevê três situações em que mulheres têm direito ao aborto: em casos de gravidez decorrente de estupro; de risco de vida para a mulher; ou de anencefalia fetal. Na prática, porém, mesmo gestantes que se enquadram na lei enfrentam inúmeros obstáculos para acessar esse direito.
Mulheres que buscam se informar sobre o seu direito muitas vezes são julgadas, culpabilizadas ou recebem informações incorretas de profissionais de saúde - exigindo, por exemplo, que apresentem boletins de ocorrência após um caso de estupro, o que não é mais necessário desde a Lei do Minuto Seguinte.
A saída pelo meio legal
Alice (que teve o nome alterado pela reportagem), mãe de uma jovem de 14 anos que engravidou após ser abusada por um funcionário de sua escola, no Ceará, percebeu essas barreiras ao levar a filha para fazer a primeira ultrassom. Disse à técnica que não queriam escutar o batimento cardíaco do feto, porque pensavam em interromper a gestação. Ouviu de volta que seria muito difícil encontrar um profissional que fizesse o procedimento; e a menina deveria deixar o filho para adoção.
Dias depois, recebeu uma notificação do Conselho Tutelar a convocando junto com filha para comparecerem perante a autoridade judicial. "Eu acredito que foi o próprio serviço de saúde que me denunciou. Não quero acusar, mas não consigo imaginar outro caminho."
Alice seguiu procurando caminhos, e já estava pensando em comprar medicamentos abortivos pela internet quando uma amiga a encaminhou para a Milhas - que a ajudou a agendar um procedimento em Salvador.
"Se não fosse pela ONG, a gente ia fazer de forma clandestina, tendo que entrar em contato com pessoas perigosas", conta.
Luta, luto e retomada
A Milhas pela Vida das Mulheres nasceu em 2019, durante o governo de Jair Bolsonar o, em um cenário proibitivo para discussões sobre a descriminalização do aborto no Brasil. Reis, que é cineasta, fez uma postagem no Facebook no começo daquele ano propondo a doação de milhas pra mulheres fazerem abortos fora do Brasil, em países onde era permitido por lei. Em meia hora, recebeu mais de cinco mil respostas.
"Começou um debate enorme de reação ao bolsonarismo, e vimos que a hora era aquela. O Milhas nasceu nessa onda, com a vocação de ir para a janela e dizer, 'o corpo é meu, eu fiz aborto, o aborto existe'. Achamos importante falar a palavra aborto, para deixar de ser um tabu, uma vergonha, um crime. E a adesão foi imediata."
No primeiro momento, a ONG ajudava brasileiras a viajar para países onde o aborto é legalizado , como Colômbia e, depois de 2021, Argentina. Em 2022, entretanto, quando Reis organizava a terceira edição da campanha Arte Substantivo Feminino, teve um acidente de carro que quase levou sua vida.
E tirou a de seu parceiro, o fotógrafo Ricardo Azoury. Reis passou 15 dias em coma, com todos os ossos da face quebrados. Três anos depois, saindo do luto e da reabilitação, encontrou forças para reorganizar, enfim, a terceira campanha de artivismo, após o longo hiato.
"Os tempos não estão tão férteis para o otimismo. Mas a gente faz disso uma razão para poder ir, ou voltar, à luta", afirma, referindo-se à composição conservadora do Congresso - "que virou um âmbito de instituição religiosa" - e ao governo de Luiz Inácio Lula da Silva , cuja eleição trouxe esperança ao movimento pela descriminalização do aborto, mas "se revelou na verdade uma grande frustração" para a causa.
"É como se a gente estivesse cada dia mais longe de atingir uma conquista consistente de direitos sexuais e saúde reprodutiva da mulher no Brasil", considera Reis.
Nesses últimos anos, a Milhas mudou sua forma de atuação, deixando de buscar uma saída no exterior, e passando a assessorar o aborto legal dentro do Brasil. O que ainda envolve viabilizar viagens - agora interestaduais e intermunicipais - para levar mulheres às cidades com centros de referência no procedimento no país, como Brasília e Recife; mas envolve também uma luta para ir ampliando fronteiras, por meio de processos judiciais para tentar criar novas jurisprudências.
Para arrecadar recursos para seu trabalho, que inclui ainda atendimento psicológico e jurídico, a Milhas promove a campanha Arte Substantivo Feminino, que reúne artistas visuais como Aline Bispo, Elaine Fontes, Tina Gomes e Mari Stockler, que doaram trabalhos abordando a sexualidade, o corpo feminino e fazendo críticas sociais. As obras estão à venda até o dia 31 de dezembro.
Risco à vida
Uma das frentes de atuação da ONG tem sido casos em que há risco à vida da gestante. Grávidas de alto risco muitas vezes têm dificuldade de acessar o aborto legal, muito embora este seja um dos três casos previstos por lei.
Adeline Assad, de 39 anos, ouviu de um médico no pré-natal que sua gestação "era de muito alto risco, e que ela provavelmente iria passar a gravidez deitada, talvez internada", relata. "Mas confia em Deus", o médico lhe disse. "Eu tive vontade de dar um soco nele", conta.
Assad tem três filhos, de 10, 11 e 15 anos, e tem anemia crônica. No dia em que descobriu a gestação, precisou de uma transfusão de sangue porque sua taxa de hemoglobina estava muito baixa. Foi a quarta transfusão do ano.
"Eu só conseguia me imaginar morrendo no parto e deixando os meus três filhos e um recém-nascido. Eu estava muito debilitada, tinha febre, cansaço, desmaiava. Eu não tinha dúvida quanto à necessidade de tirar."
Ela começou a procurar vias clandestinas, mas pediu ajuda à médica que a atendeu no pronto-socorro, que se destacara pelo atendimento humanizado quando Assad descobriu a gestação. A profissional indicou a Milhas pela Vida das Mulheres, que então a colocou em contato com a Defensoria Pública de São Paulo.
Assad precisaria de um laudo médico atestando o alto risco de sua gestação. Mas sua antiga hematologista em Ubatuba (SP), onde ela mora, negou categoricamente. Ela então pediu o laudo a um hematologista com quem se trata em outra cidade, e ele concordou. O documento foi peça fundamental para dar entrada no processo.
Há pouco mais de um mês, Assad realizou um aborto legal no Hospital Municipal do Campo Limpo, na zona sul de São Paulo. Mas antes, passou por questionamentos da ginecologista que a atendeu, que lhe deu uma semana para pensar se era aquilo que queria, e lhe ofereceu toda a assistência se decidisse ter o filho e viesse morar em São Paulo com seus três filhos durante a gestação.
Segundo Assad, a médica disse ainda que não recusaria fazer, mas que ela deveria ter consciência de que poderiam procurá-la no futuro e dizer que havia cometido um crime, questionando seu direito ao aborto legal. "Eu agradeci e falei que estava consciente e decidida", conta.
"O procedimento foi rápido. Deu certo. Mas é a pior dor do mundo. As pessoas não têm noção quando falam que, se liberar o aborto, vai sair todo mundo fazendo. É muito traumatizante. Ainda estou lidando com essa questão", emociona-se. "Eu só conseguia pensar nas pessoas que não conseguem esse acolhimento, e que fazem de qualquer jeito."
Por não acreditar que o tema deva ser tratado como um tabu, Assad concordou em usar seu nome na reportagem. "Acontece com mais frequência do que as pessoas imaginam, mas ninguém fala sobre isso. No meu trabalho, eu achei melhor falar, para verem que não sou um monstro por fazer essa escolha. Sou igual aos outros. As pessoas que lidem", afirma. "É para todo mundo essa história. O corpo é meu, a história é minha, mas isso é algo que concerne todo mundo."