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A crise que está levando jovens médicos a desistir da residência

5 dez 2025 - 18h30
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Longas jornadas, assédio moral, baixa remuneração são alguns dos problemas estruturais da especialização médica. Situação pode impactar atendimento à população no futuro."Uma vez cheguei a chorar, pois não via a luz do dia por duas semanas". Esse é o relato de Silvia (que teve o nome alterado pela reportagem), de 29 anos, especialista em cirurgia geral, que concluiu a residência no primeiro semestre deste ano, em São Paulo.

Embora não seja obrigatório realizar residência para ser médico, ela é necessária para a formação como especialista
Embora não seja obrigatório realizar residência para ser médico, ela é necessária para a formação como especialista
Foto: DW / Deutsche Welle

Ela prefere manter o anonimato por medo de represálias, diante do aumento do número de casos de assédio moral e jornadas exaustivas sofridas pelos médicos residentes em todo o Brasil. "Já cheguei a trabalhar mais de 100 horas por semana. Incontáveis vezes somos humilhados em cirurgias ou até mesmo na frente dos pacientes", diz a jovem. Diante da pressão exagerada, ela pensou em desistir diversas vezes ao longo dos três anos de especialização.

Ela não é a única a se queixar de um ambiente cada vez mais hostil na residência médica. Em 2022, residentes do primeiro ano em ortopedia e traumatologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) pediram demissão coletiva. Em carta, eles afirmaram que as condições de trabalho e a carga horária semanal, além do número reduzido de residentes, "tornaram nosso trabalho humanamente impossível de ser realizado".

Embora não seja obrigatório realizar residência para ser médico , ela é necessária para a formação como especialista. O treinamento ocorre em hospitais, combina prática assistencial e atividades teóricas, sempre sob supervisão, e varia de dois a cinco anos, dependendo da área.

Esse percurso, porém, tem esbarrado em problemas estruturais. Segundo Lucas Faidiga, presidente da Associação Nacional de Médicos Residentes (ANMR), parte das vagas seguem ociosas enquanto a pressão aumenta sobre quem está nos programas. Hoje, apenas cerca de 70% das vagas disponíveis estão preenchidas, segundo ele.

Segundo dados da Demografia Médica no Brasil 2025 (DMB), realizado pelo Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e instituições parceiras, em dezembro de 2024, o Brasil tinha 353.287 médicos especialistas, cerca de 59% do total de profissionais registrados. Os outros 244.141, ou 41%, eram médicos formados, mas sem título de especialista.

Equilíbrio entre vida pessoal e profissional

Formado há dois anos em medicina, Renato (nome alterado pela reportagem) preferiu não fazer residência por conta da pressão e pouca qualidade de vida que a especialização oferece ao residente. Ele afirma que a relação médico-paciente vem se deteriorando e os ambientes de trabalho estão se tornando cada vez mais difíceis.

Devido às queixas de muitos colegas que seguiam na residência, ele optou por não se especializar em uma área e preservar sua saúde mental. Ele acredita que não seja o único que a fazer essa ponderação. Segundo o médico, trata-se de um movimento geracional que vem ganhando força nos últimos anos, levando em consideração a necessidade de mudanças em antigas estruturas já tradicionais e consolidadas, mas que se encontram desatualizadas.

"Ainda existe uma percepção popular de que o médico deve seguir uma jornada de altruísmo e abdicação, com um certo fator místico, mas que, na sociedade de hoje, é uma percepção que não se sustenta", complementa.

Salários baixos e denúncias desencorajadas

Embora haja inúmeros relatos de assédio e jornadas exaustivas em residências médicas, Nicole Dittrich, residente de Radiologia e Diagnóstico por Imagem na Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), diz que sua experiência tem sido diferente.

"A minha residência é bem respeitosa. Todos os chefes são muito respeitosos e a relação entre os colegas é muito boa. Nunca ouvi nenhum relato disso na minha residência. Já ouvi relatos de colegas de outras especialidades, mas eu não presenciei essas cenas", conta.

Apesar disso, ela observa que a exposição e o desafio para mulheres continuam sendo maiores em qualquer carreira, inclusive na medicina. "As mulheres têm mais dificuldade de inserção, de terem suas opiniões com a mesma validação que um homem tem. Então, nesse sentido, acaba sendo mais desafiador para as mulheres", afirma Dittrich, que também atua como representante dos residentes de Radiologia.

Ela também critica a remuneração e as condições de trabalho. "O valor da residência médica não é condizente com a carga horária que um médico está trabalhando. É um trabalho médico especializado, e o valor que se recebe é muito abaixo do valor de mercado de um médico generalista recém-formado. Isso prejudica até na própria residência, porque o tempo que deveria ser usado para se capacitar é usado para complementar a renda", afirma.

Silvia confirma que as diferenças de gênero aparecem com mais frequência em áreas com alta pressão, como cirurgia geral e ortopedia. "Na cirurgia geral ainda há bastante preconceito, inclusive de chefes que deixam os residentes homens fazerem cirurgia e as mulheres não, ou diferença de tratamento entre homens e mulheres", diz.

Segundo a médica, essas especialidades mantêm hierarquias rígidas e perpetuam as mesmas ações ao longo de anos. Ela também afirma que situações de assédio moral não são levadas para setores responsáveis. "As denúncias são, sim, subnotificadas e desencorajadas por chefes. Se souberem que você denunciou, provavelmente sofrerá retaliação. Na maior parte das vezes, a denúncia não leva a nenhum desfecho", diz. Em momentos de pressão ou desrespeito, ela conta que boa parte da equipe lida sozinha com o problema.

Saúde mental e futuro dos profissionais

Nesse contexto, Alcindo Cerci Neto, representante do Conselho Federal de Medicina na Comissão Nacional de Residência Médica, afirma que combater o assédio moral e psicológico deve ser prioridade. Para ele, o residente precisa ser reconhecido como profissional em formação, e não como mão de obra barata. Isso requer ambientes seguros de aprendizado, relações de respeito e clareza sobre as regras que regem a residência médica.

Cerci Neto também aponta limites no modelo brasileiro, centrado em carga horária e não em competências. Segundo ele, mesmo as 60 horas previstas em lei só são compatíveis com a preservação da saúde mental quando há descanso adequado, limites pós-plantão e acesso a apoio psicológico - algo ainda distante da realidade de muitos serviços.

Especialistas apontam que, antes de discutir evasão ou desinteresse dos recém-formados, o país precisa rever a lógica que sustenta a formação especializada e a atuação do médico em diferentes regiões.

Para Faidiga, a remuneração atual é um dos principais entraves. Ele lembra que o valor líquido recebido por grande parte dos residentes não passa de R$ 3,6 mil e pode ficar em R$ 3 mil dependendo do local da bolsa.

Para o presidente da ANMR, a má distribuição de especialistas é consequência direta da falta de infraestrutura, salários baixos em cidades pequenas e ausência de apoio estatal. Uma das soluções defendidas é a criação de um plano de carreira nacional, nos moldes do que já existe para outras profissões.

Cerci Neto reforça que o problema também está no desenho das políticas de formação. Ele aponta que o país forma mais médicos do que consegue absorver na residência, mas que muitas vagas seguem sem candidatos por falta de atratividade ou estrutura adequada. Especialidades consideradas estratégicas pelo SUS, como Medicina de Família e Comunidade ou Patologia, continuam com vagas ociosas mesmo após políticas de incentivo.

Um ponto crítico é a diferença entre a bolsa da residência e a remuneração de outras políticas públicas. "Enquanto um bolsista do Programa Mais Médicos recebe cerca de R$ 12 mil para uma jornada de 30 horas, o médico residente recebe pouco mais de R$ 4 mil, mesmo cumprindo o dobro da carga horária", diz.

Impacto também nos pacientes

A pressão crescente dentro dos programas de residência tem reforçado um alerta que já vinha sendo discutido por entidades médicas e pesquisadores: o impacto direto do ambiente de formação na saúde mental dos futuros especialistas. Jornadas longas, hierarquias rígidas e dificuldade para relatar abusos formam um conjunto que deixa residentes mais vulneráveis ao adoecimento.

As consequências desse contexto aparecem de forma recorrente nas pesquisas e no cotidiano dos hospitais. O psiquiatra Marcel Fúlvio Padula Lamas, coordenador da Psiquiatria do Hospital Albert Sabin (HAS), afirma que o adoecimento dos residentes se concentra em três eixos: carga horária excessiva, cultura institucional hostil e falhas organizacionais.

A privação de sono e o desgaste físico, diz ele, diminuem a capacidade de enfrentar adversidades e, quando somados ao medo de retaliação, levam o residente ao isolamento. Esse conjunto aumenta o risco de burnout, depressão , ansiedade, ideação suicida e abandono da residência.

Lamas enfatiza que a solução passa por mudanças estruturais. Garantir descanso adequado, reduzir tarefas administrativas que não contribuem para a formação, qualificar preceptores e criar canais independentes de denúncia compõem, segundo ele, um conjunto mínimo de medidas. Programas de saúde mental acessíveis e sigilosos também são fundamentais, assim como o acompanhamento contínuo de indicadores, como taxas de desistência e prevalência de burnout.

Os efeitos dessa situação se estendem além da residência. "Ambientes hostis no início da carreira aumentam o risco de erros, reduzem empatia e comprometem a relação médico-paciente", diz. Para o médico, falar sobre saúde mental na formação é discutir o futuro da assistência oferecida à população.

Deutsche Welle A Deutsche Welle é a emissora internacional da Alemanha e produz jornalismo independente em 30 idiomas.
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