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'Bolsonaro tem visão colonial dos indígenas'

Único padre indígena a colaborar como especialista no Sínodo da Amazônia diz que a exploração de riquezas em terras demarcadas só será feita se imposta por vias autoritárias

31 ago 2019 - 05h29
(atualizado às 14h29)
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BELÉM - Originário do povo tuyuka, o padre Justino Sarmento Rezende, de 58 anos, disse que o presidente Jair Bolsonaro tem tem uma "visão colonial" sobre os índios e diz que a exploração de riquezas em terras indígenas só será feita se for por via autoritária. "Espero que nossos governantes não cheguem a isso. Hoje em dia é muito difícil aceitar assim de forma ingênua", afirma. Padre há 25 anos, é formado em Filosofia e Teologia, mestre em Educação e cursa doutorado em Antropologia Social na Universidade Federal do Amazonas (UFAM).

Padre Justino, que vive em São Gabriel da Cachoeira (AM), foi o único indígena a colaborar como especialista na elaboração de documentos do Sínodo da Amazônia. Também integrou a comitiva que viajou ao Vaticano para reunião de conselho do sínodo com o papa Francisco. Ele concedeu entrevista ao Estado durante a reunião de bispos da Amazônia brasileira, na capital paraense.

A seguir os principais trechos da entrevista:

O presidente Jair Bolsonaro diz que não vai demarcar mais terras indígenas. O que pensa sobre isso?

Discursos são discursos. Tem a legislação que ampara (a demarcação). Não dá para afirmar que vai fazer isso. Tem a Constituição, as leis estaduais, os Ministérios Públicos que vão, junto às comunidades, questionar e tentar superar esses problemas.

E se o presidente tentar mudar a lei?

Só se for autoritário. Aí pode fazer. Mas espero que nossos governantes não cheguem a isso. Hoje em dia é muito difícil aceitar assim de forma ingênua. Todos os indígenas hoje estão informados do que está acontecendo, se articulam, colocam em questão, em discussão. As autoridades tem que dialogar com os indígenas para definir suas políticas internas.

O presidente e governadores aliados dizem que os indígenas querem sair da pobreza e produzir, defendem exploração econômica das terras.

Isso é uma visão muito colonial. A pobreza e a riqueza são vistas de várias maneiras. Nós indígenas não fomos ricos em matéria, riqueza, de acúmulo. Para nós, a riqueza são nossos trabalhos cotidianos, ter sua roça, fazer seu beiju, ter lugar de pesca e caça, a vida comunitária, a partilha com todos. Alguns indígenas com ambição, como toda sociedade tem, vêm com esses discursos de que estão morrendo em cima das riquezas. Em geral são pessoas que não estão na área trabalhando e fazem esses discursos que parecem representar as vozes dos indígenas. Se você olhar bem os nomes nesses vídeos de circulam diz 'liderança indígena'. Mas aí você pergunta nas bases: Quem delegou a ele para falar em nosso nome? Muitas vezes não têm representatividade nenhuma, estão a expressar seu próprio pensar.

O governo usa essas lideranças para tentar convencer a sociedade sobre uma visão que lhe interessa?

É bem provável. Tem também necessidade de promover um trabalho mais organizado, que ajude a viver melhor. (Mas) a manipulação, a compra de liderança sempre teve em toda sociedade. No Brasil também tem essas pessoas que se deixam usar para fortalecer uma ideia, como a mineração, a exploração da terra, da madeira. São vozes isoladas. Em muitas regiões no Brasil estamos trabalhando as consultas prévias, livres e bem informadas. Justamente para que essas vozes não tenham amparo comunitário. Que está falando fala em nome próprio. Só que como é interesse governamental, eles pegam essas vozes como se fossem as vozes dos povos indígenas. Que fique bem claro que não representam os povos indígenas, em sua maioria.

O que acha do trabalho das ONGs na Amazônia. O governo acusa interesses...

Eles têm sua argumentação. Eu não posso comprovar isso. As ONGs, civis e religiosas, estão presentes com seus projetos de atendimento às populações aonde o governo não chega a implementar sua política pública. Por isso, quando se quer retirar, fica o vazio, o desamparo total às necessidades dos lugares mais difíceis.

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O Sínodo registra preocupação com a expansão das igrejas evangélicas na Amazônia. Por quê?

Tem mesmo. O maior receio é que não haja respeito às culturas e tradições aonde eles chegam. Essa é a crítica que se faz. Se eles fossem mais respeitosos com as culturas, dialogar com os povos indígenas para fazer o trabalho, vejo que não teria. Mas vejo que vai mudar. Nós no passado também fomos assim, hoje em dia a gente tem outra visão da evangelização.

E como isso afeta os indígenas?

Eles não deixam mais praticar suas culturas, seus rituais, suas cerimônias. É a imposição da vida cristã. Nesse sentido é que não favorece. No Brasil e na América Latina temos trabalhado a questão do fortalecimento da língua indígena, das nossas religiosidades, de nossas teologias. Quando uma igreja chega impondo, impedindo é muito difícil para nós compreendermos. Tem indígena que aceita. Ninguém vai dizer para ele não aceitar. Cada um é livre com sua própria história.

Qual a importância da participação dos indígenas na discussão do Sínodo?

O papa Francisco quis ouvir diretamente os povos amazônicos, uma mudança enorme estrutural dentro da Igreja, uma grande conversão no nível eclesial. Porque os povos indígenas, os empobrecidos sempre estiveram à margem da compreensão para elaboração de grandes documentos, sempre era a partir de especialistas, teólogos. Ele fez um gesto grande, visível para toda a igreja, para toda a sociedade, quando em 19 de janeiro de 2018 foi a Puerto Maldonado, no Peru. Ele viu os povos indígenas de perto, sentiu o cheiro dos povos indígenas, de suas pinturas, que tem cheiro de urucum, de plumas, os adornos... É uma mudança profunda ouvir os povos indígenas falarem do jeito próprio as reivindicações para que o papa fosse um avô. Uma expressão muito boa que eles usam é para que o papa fosse um avô. Outra é que o papa deveria ser um pai. 'Pai papa Francisco'. Essa sintonia com a atitude do papa dá abertura para ele ouvir nossos sonhos, nossos medos.

O representaria uma conquista para os indígenas no Sínodo?

A coisa mais relevante de todas as histórias de colonização, de contato com o homem branco e da Igreja, é o reconhecimento dos indígenas como seres humanos, como pessoas com suas qualidades e suas fragilidades também. Serem vistos como pessoas humanas. As grandes mudanças internas na Igreja e na sociedade só vão acontecer quando olharem o indígena como pessoa, na sua dignidade. Enquanto não houver essa igualdade do ser humano, vai sempre ser uma visão de superior e inferior, pior e melhor. Esse deve ser o grande ganho: a Igreja está tentando fazer esse trabalho de compreensão do outro. Não é fácil. Tenho 58 anos, 25 anos de padre, faço estudos, estou terminando meu doutorado em Antropologia Social. Eu percebo, entre meus professores, pesquisadores que são antropólogos e deveriam entender muito melhor os povos indígenas. Quando chega esse ponto de entender o outro, é muito complicado. Também para os indígenas. Tem alguns que não tem tanta compreensão da sociedade. Temos nosso estilo de vida, de trabalho, nossas convivências religiosas, cerimônias de festa e de rituais, para nós é fácil compreender quando estamos juntos. Mas quando a gente se depara com outro, aí existe uma grande diferença. As cerimônias, ritos, a cultura dele é melhor e a nossa parece não ter tanto valor. A gente se sente diminuído.

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Ainda se sentem?

Sim, claro.

A resistência aos índios e aos seus costumes ainda é forte na Igreja Católica?

Sim. Por isso o desafio do papa Francisco. Antes já teve outros papas, outras encíclicas que falavam da inculturação. Quando a Igreja chega numa determinada cultura, deve entrar ou se encarnar naquela cultura, ser acolhido por aquela cultura e a partir disso, como forma de reconhecimento de grandes valores fundamentais para aquela cultura, assumir, deixar que essas riquezas linguísticas, as celebrações, as pinturas, que fazem parte das solenidades para nós, permitir que passem a entrar nas celebrações eucarísticas, o uso da língua na liturgia. Eu já fiz essa experiência, mas muitas vezes os outros padres, bispos não confiam nas traduções. Dizem que temos de traduzir bem, não trair o conteúdo. Não traduzimos qualquer coisas, nós também estudamos teologia, filosofia. Quando o papa diz vamos pensar numa igreja com rosto indígena, amazônica, ele está falando na inculturarção. Para fazer esse trabalho quem vai ser o protagonista, os atores principais, somos nós padres indígenas, religiosos e religiosas que conhecemos a nossa cultura e a vida cristã. Podemos fazer uma aproximação cruzada, nem totalmente rito romano nem totalmente nossa liturgia indígena. Deveria haver um encontro. Se a gente não fizer fica parado. Mas o papa quer algo mais original para nós, ele gostaria que nós vivêssemos com nossas tradições, como também os quilombolas.

Estadão
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