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'Associar autonomia policial a golpe em 2022 é histeria', diz presidente de associação de delegados

Proposta de limitar a livre nomeação e demissão do delegado-geral de Polícia Civil e do comandante-geral da PM consta em minutas dos projetos de lei orgânica das polícias

13 jan 2021 - 20h01
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BRASÍLIA - O delegado Rodolfo Queiroz Laterza, presidente da Associação de Delegados de Polícia do Brasil (Adepol), considera uma "histeria" associar a proposta de dar mais autonomia às polícias Civil e Militar ao "golpismo", como sugeriram alguns governadores. A proposta de limitar a livre nomeação e demissão do delegado-geral de Polícia Civil e do comandante-geral da PM consta em minutas dos projetos de lei orgânica das polícias, reveladas pelo Estadão.

Com cerca de 9 mil associados, a Adepol é co-autora da proposta com a Cobrapol (Confederação Brasileira de Trabalhadores Policiais Civis), entidade das demais carreiras. Apesar de admitirem tratar do projeto com o governo federal, os delegados rejeitam viés pró-Jair Bolsonaro e afirmam que a intenção é blindar a polícia de "interesses partidários" dos governadores.

"A histeria criada, chegando a levantar que o Brasil, com as leis gerais das Polícias Civis e Militares, caminha para um possível golpe em 2022, é uma insanidade tamanha que chega a ser difícil de crer que tal sandice adveio de alguma ingenuidade ou equívoco", disse Laterza ao Estadão. "Somos policiais acima de tudo, prestamos juramento em prol da legalidade e da Constituição Federal. Ademais, as forças policiais possuem dentre seus milhares de integrantes uma pluralidade de opiniões e pensamentos, não há milícias ao estilo freikorps (paramilitares alemães) nas Polícias Civis. Causou revolta entre os delegados de polícia tal associação imprudente."

O temor rechaçado por Laterza aumentou depois de Bolsonaro insinuar que, em 2022, poderia haver no Brasil um "problema pior que nos Estados Unidos", declaração entendida como "ameaça" por parte da classe política e autoridades dos demais poderes. O presidente se referia à invasão do Congresso norte-americano, estimulada pelo presidente não reeleito Donald Trump, de quem é aliado. Cinco pessoas morreram na ocasião.

Os paralelos com uma possível reação violenta de grupos armados em caso de derrota eleitoral de Bolsonaro foram imediatos. Autoridades dos EUA vão apurar a postura das forças de segurança durante a tentativa de tomar o Capitólio. O presidente-eleito, Joe Biden, falou em insurreição e questionou condescendência de policiais em Washington com apoiadores de Trump. Imagens mostraram que não houve contenção imediata dos manifestantes marchando contra o parlamento e que as grades foram abertas pelos policiais. No País, a oposição também costuma acusar que há mais tolerância por parte de policiais que patrulham manifestações bolsonaristas e truculência em protestos contra o presidente.

Uma das principais inovações propostas pela categoria a afetar as prerrogativas dos governadores é que o delegado-geral de polícia passe a ter mandato de dois anos e só possa ser demitido de forma justificada, com aval da maioria dos deputados estaduais ou distritais. Essa proposta incomodou governadores, que rapidamente se mobilizaram para barrar qualquer chance de aprovação no Congresso. O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), rival político de Bolsonaro, considerou a articulação uma forma de o presidente "intimidar" os governadores.

A minuta será apresentada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, que pediu às entidades que chegassem a um consenso. A proposta será um substitutivo a outro projeto de lei orgânica da Polícia Civil, de iniciativa do Executivo, que já está pronto para apreciação em plenário. Elaborado em 2007, pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva, o texto original é considerado defasado. O novo relator deve ser o deputado João Campos (Republicanos-GO), que é delegado e tem bom trânsito junto à categoria. Ele também é pastor evangélico, tendo influência nessas duas alas da Câmara, além de ser abertamente governista.

"Qualquer tentativa de conexão entre um tema técnico e necessário com politicagem é um cenário lamentável e digno de repúdio", disse o presidente da Adepol. "Então, as outras versões e minutas de Lei Geral das Polícias Civis produzidas e discutidas em governos anteriores foi com a mesma finalidade de 'achincalhamento' de governadores? Tal premissa é tão sem sentido que se perde com um mínimo de racionalidade."

Associação. Em "manifesto à nação" após o Estadão revelar o conteúdo da proposta, a Adepol disse que apreciar a lei orgânica "não é favor ou concessão política" do governo Bolsonaro e sim um dever previsto na Constituição de 1988. Maior associação do País, a entidade rejeita suspeitas de especialistas em segurança Pública, governadores e parlamentares sobre uma "conspiração política" e de "descontrole" social sobre um braço armado do Estado. A associação frisou que não faz proselitismo: "Nada mais vergonhoso e populista que atrelar de forma arbitrária o pensamento político de integrantes de forças policiais a esta ou aquela ideologia, quando vive-se em uma democracia e a complexidade e pluralismo político são por óbvio vigentes em qualquer agremiação ou instituição".

Questionado se espera o apoio de Bolsonaro e da base de governo a seus pleitos, o delegado diz que as entidades buscarão convencer todo o espectro político e a Presidência da República. "Não se trata de uma questão corporativista, mas de uma necessidade para a sociedade brasileira. Ninguém aguenta mais polícias civis sucateadas deliberadamente e, pior, forças policiais tratadas no Brasil como guardas pretorianas de ocupantes do poder. Polícia investigativa é assunto técnico e que exige controle social, transparência e adequação ao Estado Democrático de Direito. A omissão inconstitucional criou uma bagunça federativa caótica. Sem que a União tenha cumprido seu poder-dever de regulamentar as Polícias Civis, conforme exigido pela Constituição Federal, produziu-se estragos institucionais e sociais inimagináveis."

O delegado afirma que a tônica da história das polícias civis, vinculadas aos Estados e sem uma lei orgânica de âmbito nacional é de interferência e direcionamento político, além de perseguições: "É notório que as interferências de cunho político para vincular investigações a determinados interesses ocasionais e represálias às atuações das Polícias Civis em inúmeras circunstâncias criaram crises institucionais locais e prejuízos severos ao desenvolvimento de sua atividade-fim. Além disso, remoções arbitrárias e sequer fundamentadas, sucateamento deliberado de unidades policiais e outras interferências indevidas por fatores políticos infelizmente são realidades visíveis e facilmente detectáveis em inúmeras reclamações realizadas por entidades de classe e por setores diversos da sociedade. Ressalvados alguns exemplos louváveis, essa foi a tônica de sua história".

Assembleias

Laterza afirma que a ideia da "homologação" pelas Assembleias Legislativas da demissão do delegado-geral antes do fim do mandato de dois anos foi inspirada nos procedimentos relativos a dirigentes de agências reguladoras e do Ministério Público. Uma ideia adicional, admitida pelo delegado, embora não expressa no projeto, seria instituir uma espécie de sabatina para aprovar o indicado, como ocorre no exterior e com embaixadores no Senado.

Esse crivo político, segundo ele, não significa desvincular a Polícia Civil dos governadores, algo debatido no meio policial, porque seria inconstitucional. Ele nega que as entidades tenham o objetivo de garantir a federalização das polícias civis, vinculando-as à União, e rejeita também a ideia de que o novo PL proposto abra caminho para que os policiais pleiteiem uma uniformização de salários com base nos mais bem pagos nacionalmente, entre eles delegados de Mato Grosso e Goiás e policiais de Amazonas e Distrito Federal. Ou até mesmo a equiparação com a Polícia Federal.

"Não há subtração de poderes de decisão de governadores, apenas aperfeiçoamento dos mecanismos de controle para maior profissionalização. Nossa proposição é justamente definir condicionantes mais objetivas e aferíveis, como apresentação obrigatória de um planejamento estratégico ao mesmo tempo em que se permite um melhor sistema de freios e contrapesos para a sociedade, com a participação da Assembleia Legislativa e, por conseguinte, da sociedade", afirmou.

Para a Adepol, o ideal é desatrelar cada vez mais a Polícia Civil de programas de governo e reforçar a atuação técnica, sob o argumento de que "forças policiais guiadas por interesses políticos geram descontinuidade de programas". A maior autonomia, segundo a entidade, "em nada se choca" com o controle externo do Ministério Público, tampouco com a "soberania estratégica" dos governadores.

O delegado afirma que o projeto prevê o compartilhamento integrado de dados entre as polícias civis de todo o País e a Polícia Federal, que desempenham funções similares de investigação e política judiciária, além de um afastamento das operações de inteligência do controle político de secretários de Segurança Pública. A ideia é institucionalizar em todo o País as Unidades de Inteligência que terão um "Departamento Central de Inteligência", responsável pelas interceptações telefônicas, de informática e telemática. Isso, segundo ele, ajudaria a blindar o uso de grampos contra adversários políticos do governo. A padronização do treinamento nas Escolas Superiores de Polícia Civil também melhoraria a formação.

O projeto prevê, nacionalmente, a exigência de nível superior para ingresso nas carreiras da Polícia Civil, algo que não existe em todos os Estados. Não há previsões de qual seria o impacto na prática, a longo prazo, nas finanças dos Estados, já que os concursos de nível superior são para salários mais altos que os de nível médio. O PL, de uma forma geral, reorganiza os cargos dentro das polícias, mas não aborda em nenhum momento a previsão de remuneração. A ideia é que as diversas nomenclaturas no País, como investigador, agente, inspetor, escrivão, papiloscopista, entre outros, sejam padronizados. A proposta prevê apenas três carreiras: oficial investigador, perito e delegado.

"Embora as distorções salariais entre os entes federados criem enormes desequilíbrios recorrentes nos Estados com remunerações defasadas, pelo fato de o Brasil ser uma Federação, cada Estado possui autonomia orçamentária e administrativa para definir suas políticas remuneratórias, devendo haver uma proposta de Emenda à Constituição que crie um piso salarial unificado para as polícias, algo que não pode ocorrer por lei", afirmou o delegado.

Estadão
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