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Gente com deficiência é um 'perigo' para a Anac e as empresas aéreas

Situação enfrentada por mulher com deficiência, que ficou quase três horas presa em uma aeronave vazia da Latam no aeroporto de Guarulhos (SP), evidencia a aplicação de procedimentos capacitistas, o desrespeito aos direitos das pessoas com deficiência e a omissão da responsabilidade pela acessibilidade. Episódio 206 da coluna Vencer Limites no Jornal Eldorado (Rádio Eldorado FM 107,3 SP).

2 set 2025 - 07h30
(atualizado às 08h57)
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Gente com deficiência, para as companhias aéreas e a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), deixou de ser cliente, foi transformada em um 'perigo' e já é tratada dessa forma dentro dos aviões. Casos sobre cão-guia, cadeira de rodas motorizada, almofadas para cadeirante e outros equipamentos ou serviços se repetem, mostrando como pessoas com deficiência foram reduzidas de seres humanos para um 'problema', sempre com abordagens rudes por parte da equipe de bordo e o silenciamento de quem tem direitos violados.

Situação recente com essa dinâmica foi relatada pela consultora Luciana Trindade, que tem Distrofia Muscular Congênita, usa cadeira de rodas motorizada e aparelho de ventilação mecânica para respiração. Ela publicou vídeos nas redes sociais para mostrar que, junto com o marido, Ancelmo Araújo, ficou quase três horas dentro de um avião da Latam (voo LA3528, Brasília / São Paulo), após o pouso no Aeroporto de Guarulhos na última quarta-feira, 27/8.

A assessoria de imprensa do Aeroporto Internacional de São Paulo/Guarulhos disse que todas as informações sobre o caso devem ser solicitadas à Latam.

Questionada pelo blog Vencer Limites, a Latam respondeu em nota.

"A LATAM Airlines Brasil informa que precisou solicitar apoio da Polícia Federal no voo LA3528 (Brasília-São Paulo/Guarulhos), realizado na quarta-feira (27/08), em função do comportamento indisciplinado do acompanhante da passageira. Nesse sentido, ambos foram informados sobre o acionamento da autoridade e de que o desembarque ocorreria após a chegada das autoridades - razão exclusiva do tempo de espera a bordo. A companhia esclarece ainda que os passageiros aguardaram a chegada da autoridade policial junto da tripulação do voo - que também permaneceu a bordo - e que em nenhum momento houve falta de fornecimento de água aos passageiros ou extravio/retenção da cadeira de rodas. A LATAM reforça que cumpre rigorosamente os padrões de segurança e os regulamentos das autoridades nacionais e internacionais, mantendo o compromisso de garantir uma viagem segura para todos", diz a empresa.

Luciana Trindade e Ancelmo Araújo contaram ao blog Vencer Limites detalhes da situação, confirmaram que fizeram registro da ocorrência na unidade da Polícia Federal do Aeroporto de Guarulhos e que estudam a possibilidade de ajuizar ação na Justiça.

"Seguimos todos os procedimentos exigidos para comprar as passagens e pedir o embarque de pessoa com deficiência e de acompanhante, inclusive sobre o ventilador (modelo Astral 150 da fabricante australiana Resmed), que não precisa ser autorizado por laudo médico ou Medif (Medical Information Form). Em Brasília, entramos no avião e ficamos na fileira de número 10", dizem. Luciana ficou na poltrona do meio e Ancelmo no assento da janela. Também havia um passageiro na cadeira do corredor.

É importante destacar que, até pouco tempo atrás, pessoas com deficiência eram direcionadas à primeira fileira das poltronas dos aviões, onde há mais espaço para manobrar cadeira de rodas e outros equipamentos, também para acomodação de passageiros com restrições de mobilidade, além da movimentação de quem estiver nas cadeiras ao lado, sem comprometer a segurança, especialmente em situações de emergência, mas atualmente a escolha da primeira fileira está sujeita a cobrança de taxa adicional e as pessoas com deficiência ficam em qualquer lugar.

Segundo o casal, os problemas começaram quando a decolagem foi autorizada, a aeronave começou a se movimentar e Luciana colocou a máscara do ventilador. "Duas pessoas da equipe de bordo nos abordaram com muita rispidez, afirmaram que o equipamento deveria ser retirado (o que colocaria a vida de Luciana em risco porque ela precisa do mecanismo para não perder oxigenação por causa da mudança brusca de altura e pressão) ou a passageira deveria ficar na poltrona da janela por causa das normas de segurança, mas como o avião já estava rodando pela pista, perguntamos se era realmente necessário parar tudo e fazer a transferência". De acordo com o casal, a equipe consultou o comando do voo, pediu ao passageiro que estava no corredor para sentar na fileira 21 e mandou que Ancelmo ficasse na cadeira do corredor.

Ancelmo afirma que, em determinado momento do voo, voltou à poltrona da janela para poder dormir, depois usou o banheiro e, quando saiu, foi novamente abordado pela equipe. "Disseram que minha esposa representava um perigo para mim e, se houvesse situação de emergência, eu deveria priorizar a minha segurança, o que me incomodou muito. Estão sugerindo que eu deixe minha esposa para trás, abandone no aviâo, e me salve sozinho? Então, perdi a paciência, falei um palavrão e dei algumas batidas na porta da cabine. Um comissário me mandou voltar para a cadeira".

O casal conta que a aeronave pousou em São Paulo às 16h40, todos os passageiros e tripulantes dssembarcaram, mas a cadeira de rodas usada por Luciana só foi devolvida às 19h. "Ficamos aguardando, sem qualquer explicação, Luciana teve um pico de pressão alta, 16 por 9, e a temperatura estava tão baixa que ela ficou com os lábios roxos. Telefonei para a Polícia Federal, para a assessoria de imprensa da Latam e para vários conhecidos. Em certo momento nós percebemos uma movimentação e fui até a porta do avião, onde estavam três agentes da PF e vários funcionários da Latam. Eu perguntei se a PF havia dado ordem para reter a cadeira e um dos agentes afirmou que eles nunca fazem isso. Então, um comissário confirmou que a Latam mandou prender a cadeira de rodas até a Polícia Federal chegar", diz Ancelmo Araújo.

"Havia outra pessoa com deficiência na fileira de número 10, nas poltronas do lado oposto ao nosso. E vimos que três cadeiras da primeira fileira ficaram vazias durante todo o voo. Por que não fomos acomodados nesses assentos?", questiona Luciana.

O blog Vencer Limites pediu informações à unidade da Polícia Federal no Aeroporto de Guarulhos. "Após o pouso de um voo doméstico, policiais federais foram acionados pelo comandante da aeronave para intervir em um caso de mal comportamento a bordo. Um passageiro, que acompanhava uma pessoa com necessidades especiais em uso de aparelho para respiração dirigiu-se de forma agressiva a um integrante da tripulação, proferindo palavras de baixo calão e ameaças. O fato ocorreu após a comissária de bordo solicitar, por questões de segurança, a mudança de poltrona da passageira acompanhada. O homem foi submetido a desembarque compulsório e todos os envolvidos foram ouvidos na delegacia da PF para os devidos registros. A autoridade policial apurou que não houve crime", declarou a PF.

Vai piorar - Há um movimento velado que está expulsando a população com deficiência das aeronaves comerciais ao ampliar as dificuldades para embarque e a permanência dos 'passageiros com necessidade de assistência especial' nos voos.

Essa situação tende a piorar com a atualização da Resolução nº 280, de 11 de julho de 2013, "sobre assistência especial e acessibilidade de passageiros com necessidade de assistência especial ao serviço de transporte aéreo". A consulta pública a respeito dessa atualização (n° 2/2025), aberta em janeiro e encerrada em maio, teve 625 contribuições, segundo o sistema 'Participa + Brasil', do governo federal. Uma audiência pública foi feita em 13/3, com participação de instituições que representam as pessoas com deficiência. "As contribuições recebidas durante a consulta e a audiência pública realizada em março estão atualmente em fase de análise", disse a Anac.

Dois pontos da proposta se destacam: a alteração do conceito sobre quem é esse passageiro com necessidade de assistência especial, chamado de PNAE, e a permissão à empresa aérea de decidir de maneira unilateral qual pessoa com deficiência tem autonomia e independência para viajar sozinha.

Conceito - A resolução estabelece que (artigo 3) "passageiro com necessidade de assistência especial (PNAE) ao serviço de transporte aéreo é entendido como qualquer pessoa que, por alguma condição específica, tenha limitação na sua autonomia ou mobilidade como passageiro e que requeira assistência especial", ou seja, toda e qualquer pessoa que se apresente com essas características.

É fundamental ressaltar aqui que a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (n° 13.146/2015) considera pessoa com deficiência (artigo 2) "aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas". Isso significa que, para a atual legislação brasileira, a pessoa com deficiência tem direito garantido à acessibilidade que garante a sua cidadania e não é responsável pela construção e oferta desses recursos.

Contraditório - No trecho que trata da autonomia e da independência do passageiro com necessidade de assistência especial, a proposta da Anac é, no mínimo, preocupante, além de contraditória.

A resolução afirma que esse passageiro com necessidade de assistência especial (artigo 14) "possui autonomia e livre arbítrio acerca de seus próprios cuidados pessoais, cabendo-lhe a decisão de viajar desacompanhado ou acompanhado", (artigo 15) "o transportador aéreo não pode restringir o transporte desacompanhado sob alegação de incapacidade dos próprios cuidados pessoais, podendo ser exigida autodeclaração assumindo plena responsabilidade por esses cuidados", e a pessoa (artigo 17) "com condição severa de limitação de autonomia ou mobilidade é impedida de viajar desacompanhada por avaliação do transportador aéreo sempre que, (item III) em virtude de limitação motora severa, não esteja apto a participar fisicamente da sua própria evacuação da aeronave em caso de emergência".

Como isso funcionaria na prática? Uma pessoa paraplégica que usa cadeira de rodas, por exemplo, pode ter autonomia para fazer tudo sozinha, inclusive entrar em sair do aeroporto e do avião pelos meios de acessibilidade exigidos por lei, fazer a própria movimentação entre a cadeira de rodas e a poltrona do avião, e não precisa de nenhum acompanhante. Alguém com amputações e que usa, ou não, próteses, também pode ser plenamente capaz de se cuidar sozinha. Um indivíduo que se locomove apoiado em muletas também pode ser independente. Então, quais seriam os critérios para determinar essa "limitação motora severa"?

Nesse sentido, a sequência da resolução estabelece que (artigo 19) "o passageiro é responsável pela informação prévia ao transportador aéreo acerca de sua aptidão e saúde física e mental para realização de voo", mas esse passageiro pode ter o embarque impedido se (item IV) "causar perigo ou desconforto a outros passageiros devido sua condição física ou comportamental".

Especialmente neste trecho, a proposta da Anac mostra-se capacitista e discriminatória. Qual "perigo ou desconforto" uma condição física pode gerar a outros passageiros?

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Estadão
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