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Avaliação perversa da deficiência

ARTIGO: Ana Cláudia Mendes de Figueiredo, idealizadora da Rede-In, alerta para uso estratégico da Lei Brasileira de Inclusão pelo governo Bolsonaro para reduzir políticas públicas e direitos das pessoas com deficiência.

15 ago 2022 - 12h52
(atualizado em 30/9/2022 às 10h02)
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Ana Cláudia Mendes de Figueiredo é advogada, fez parte do Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência e foi representante titular do Conade no Grupo de Trabalho Interinstitucional sobre o Modelo Único de Avaliação Biopsicossocial da Deficiência. É coordenadora da autodefensoria da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down (FBASD) e idealizadora da Rede Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Rede-In). Foto: Divulgação.

Ana Cláudia Mendes de Figueiredo é advogada, fez parte do Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência e foi representante titular do Conade no Grupo de Trabalho Interinstitucional sobre o Modelo Único de Avaliação Biopsicossocial da Deficiência. É coordenadora da autodefensoria da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down (FBASD) e idealizadora da Rede Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Rede-In). Foto: Divulgação.
Ana Cláudia Mendes de Figueiredo é advogada, fez parte do Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência e foi representante titular do Conade no Grupo de Trabalho Interinstitucional sobre o Modelo Único de Avaliação Biopsicossocial da Deficiência. É coordenadora da autodefensoria da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down (FBASD) e idealizadora da Rede Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Rede-In). Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.</strong> / Estadão

A nova avaliação da deficiência: nem tudo o que reluz é ouro

Ana Cláudia Mendes de Figueiredo*

A regulamentação do artigo 2º, §§ 1º e 2º, da Lei nº 13.146/2015 (Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência - LBI), que trata da avaliação biopsicossocial da deficiência, desencadeará para as pessoas com deficiência significativa retirada de direitos, porque não vem sendo orientada para assegurar equidade, inclusão e participação social dessa população ou a efetivação dos seus direitos, mas para atender a uma lógica governamental meramente econômica.

Em face dos impactos negativos que a regulamentação da nova avaliação, tal como vem sendo conduzida, imporá a essa população, é imprescindível que pessoas com deficiência, suas organizações representativas, familiares e profissionais que atuam na área se aproximem mais do tema.

O artigo 2º da LBI dispõe ser pessoa com deficiência aquela que "tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas", reafirmando o Modelo Social de Deficiência gravado na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), que é um capítulo da Constituição Federal.

Diz ainda o mencionado artigo que a avaliação da deficiência, quando necessária, será biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar.

A avaliação será necessária para permitir o acesso das pessoas com deficiência às políticas públicas reservadas a essa população, como é o caso da reserva de vagas em concurso público, da aposentadoria baseada na Lei Complementar nº 142/2013 ou do Benefício de Prestação Continuada da Assistência Social (BPC).

Quando a pessoa, então, pretender acessar alguma das várias políticas públicas destinadas às pessoas com deficiência, precisará, segundo a LBI, ser submetida à avaliação biopsicossocial, ou seja, a uma avaliação que considerará:

- os impedimentos que a pessoa tem no corpo;

- os aspectos sociais e ambientais em que ela vive, trabalha, estuda, circula, bem como os fatores psicológicos e pessoais;

- a limitação que tem para realizar suas atividades e

- a diminuição da sua participação na sociedade.

Essa avaliação mais ampla e relacional da deficiência será realizada por uma equipe composta por pessoas de diferentes profissões e de distintas áreas do conhecimento, não apenas por médicos, como acontece hoje na maioria dos casos.

Para assegurar que a avaliação da deficiência fosse realizada nos moldes estabelecidos pela LBI, especialistas e acadêmicos criaram um instrumento, o Índice de Funcionalidade Brasileiro Modificado (IFBr-M), que foi debatido por mais de 7 anos, aplicado em mais de 8 mil pessoas, validado cientificamente pela Universidade de Brasília e considerado, pelo Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência (Conade), como o instrumento adequado para avaliar a deficiência (Resolução nº 1/2020).

A implementação da avaliação biopsicossocial da deficiência é bastante esperada pelas pessoas com deficiência, tanto porque o prazo para sua regulamentação já foi ultrapassado em mais de 4 anos (LBI, artigo 124), quanto porque a ausência de um instrumento - único e justo - desencadeia inúmeros entraves para o acesso às políticas.

Embora seja indiscutível o anseio por tal regulamentação, o entendimento que tem prevalecido entre parcela significativa da população que tem acompanhado o debate é o de que a regulamentação que está para ser publicada não concretizará o Modelo Social de Deficiência consagrado na CDPD e na LBI e nem garantirá direitos a todas as pessoas com deficiência que necessitam efetivamente da assistência do Estado, como é o caso, por exemplo, de requerentes do BPC, ou que precisam apenas do reconhecimento da deficiência para acesso a políticas que não dependem de aporte de recursos do governo.

O entendimento referido decorre da constatação de que a proposta aprovada pela maioria do Grupo de Trabalho Interinstitucional sobre o Modelo Único de Avaliação Biopsicossocial da Deficiência (GTI) não tem a ver com o instrumento validado pela UnB (o IFBr-M), aprovado pelo Conade e aperfeiçoado pela Secretaria Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência (SNDPD).

A proposta de instrumento aprovada pelo GTI - que será considerada na redação do Decreto que regulamentará o artigo 2º da LBI - foi elaborada pela Secretaria de Previdência, Ministério da Cidadania e Instituto Nacional do Seguro Social, com apoio do Ministério da Economia, Ministério da Saúde e Advocacia Geral da União, tendo sido pautada por razões exclusivamente orçamentárias. Em outras palavras, o objetivo de construir essa proposta alternativa à proposta da SNDPD foi o de reduzir as despesas com as políticas públicas destinadas às pessoas com deficiência e não o de garantir direitos a esse segmento da população.

Fazem parte do debate sobre o instrumento de avaliação e a elaboração do citado Decreto outras tantas contrariedades à CDPD e à LBI:

- a não participação das pessoas com deficiência no processo, como determina o artigo 4, item 3, da CDPD;

- o sigilo que o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH) impôs aos debates no GTI e às atas das reuniões desse Grupo e dos Grupos Técnicos Especializados que o apoiaram;

- o fato de não ter constado da proposta vencedora um instrumento de avaliação propriamente dito, mas apenas menções a partes do IFBr-M e do instrumento de acesso ao BPC, com prevalência desse último, o que determinará uma avaliação predominantemente médica e não de natureza biopsicossocial como manda a LBI;

- a existência de várias perguntas não respondidas sobre a pesquisa que, encomendada à Universidade de Marília, pelo Ministério da Economia, baseou a proposta vencedora.

Todas essas razões - entre outras que o espaço deste artigo não permite detalhar - demonstram a gravidade do momento e a necessidade de todas as pessoas envolvidas na causa da deficiência se engajarem no debate.

Tal envolvimento pode evitar que a sociedade acredite no discurso governamental de que a nova avaliação será uma grande "entrega" do atual governo e conferirá mais justiça para pessoas com deficiência. Pode também evitar que receba como "presente" uma avaliação cuja perversidade só será percebida quando a necessidade de buscar a concretização de alguma política lhe bater à porta. Somente nesse momento as pessoas com deficiência perceberão que nem tudo o que reluz é ouro.

*Ana Cláudia Mendes de Figueiredo é advogada, fez parte do Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência e foi representante titular do Conade no Grupo de Trabalho Interinstitucional sobre o Modelo Único de Avaliação Biopsicossocial da Deficiência. É coordenadora da autodefensoria da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down (FBASD) e idealizadora da Rede Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Rede-In).

Estadão
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