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Por amor ao esporte e proteção à terra, aldeias organizam 1ª Copa Indígena de Futebol

Competição batizada de Kwá Yepe Turusu Apisáwa reúne oito comunidades do sul da Bahia

26 out 2021 - 10h11
(atualizado às 14h43)
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Na língua Tupi, Kwá Yepe Turusu Apisáwa significa: "Esse é um grande jogo". Foi este o nome escolhido para batizar a primeira Copa Índigena de Futebol, que vai acontecer entre os dias 30 de outubro e 15 de novembro no estado da Bahia. O torneio vai reunir oito times formados por jogadores das etnias Tupinambá, Pataxó e Pataxó Hã-Hã-Hãe que entrarão em campo para disputar o inédito título e ganhar, como prêmio, a oportunidade de jogar uma partida amistosa contra a equipe de futebol profissional do Bahia, um dos apoiadores do evento.

As equipes inscritas são o Água Vermelha, Aktxurá Eoató Coroa Vermelha, Barra Velense, Caramuru, Juventude da Aldeia Igualha, Mamão Juventude, Sagitárius e Serra do Padeiro. Todas oriundas de comunidades localizadas no sul e extremo sul do Estado.

A competição será disputada no esquema de mata-mata e em jogos únicos, se iniciando pelas quartas de final, nos dias 30 e 31 de outubro. Os quatro vencedores desta primeira fase avançam à semifinal, que vai ser jogada em 6 de novembro. A final, marcada para o dia 15, será sediada na Cidade Tricolor, centro de treinamento do Bahia. O ex-jogador Juninho Pernambucano e o jornalista Bob Fernandes serão os comentaristas da partida, e todos os jogos terão transmissão ao vivo pelo YouTube.

Para não expor os jogadores e torcedores aos longos deslocamentos e ao perigo de contaminação da covid-19, o convite ficou restrito somente aos oito times, que são nativos de aldeias próximas. Pela mesma razão, a maior parte dos jogos vai ter sede única, o estádio Silveirão, na cidade de São José da Vitória. Mesmo com todos os índios praticamente imunizados, o que prevaleceu foi a cautela por parte dos organizadores.

Um deles é Teite Tupinambá. Aos 43 anos, Teite estava escalado em uma posição fora dos gramados e jogaria para a equipe da organização do campeonato. Mas, faltando menos de uma semana para o início da Copa Kwá Yepe Turusu Apisáwa, ele receebu o convite para ser o atacante do Serra do Padeiro, time que carrega o nome da comunidade onde vive, localizada em uma região que abrange as cidades de Una, Buerarema, São José da Vitória e Ilhéus.

"Eu tenho 43 anos e nunca tive uma oportunidade de ser visto. Agora, nós vamos ter essa oportunidade", diz otimista sobre a possibilidade de jovens indígenas serem observados por olheiros e terem a chance de construir uma carreira no futebol profissional. "Essa copa pode mostrar para o povo que tem muitos índios craques", afirmou.

Uma das oito equipes do campeonato, o Serra do Padeiro é um time que já existia desde quando Teite era criança. Para ele, é difícil conseguir dizer com precisão há quanto tempo existem, mas garante que há mais de 30 anos. Porém, mesmo sendo longevo, estar em um torneio de longa duração é uma novidade para a história do time. "Antes, a gente tinha dificuldade para jogar por conta do deslocamento. Nós íamos a pé, andávamos 25, 30 quilômetros para jogar um torneio que durava um dia. A gente saía cedo, passava fome, mas nunca desistimos do esporte", conta Teite.

Hoje, a situação já está mais confortável para os atletas tupinambás. Os moradores da comunidade possuem carro e moto, e a aldeia já acomoda o campo dos Craveiros, onde o time joga e se prepara para a Copa Indígena

Desde maio, quando o torneio começou a ser idealizado, o Serra do Padeiro tem treinado de três a quatro vezes por semana. O técnico é Agnaldo Pataxó, que gosta de armar a equipe de forma mais ofensiva. Quem conta esses detalhes à reportagem é o zagueiro do time, Airan Souza Lima. "Nós estamos com uma expectativa muito grande com a Copa, mas todos vão querer ganhar", afirma ele.

Demarcação

Contudo, a primeira Copa Indígena não está sendo tratada apenas como um evento esportivo. Para os índios, que convivem com a realidade de ter a própria existência ameaçada, uma competição de futebol se transforma na oportunidade de reforçar o alerta sobre a violação dos direitos que os seus povos sofrem.

"A gente tem uma questão emblemática por conta do marco temporal e o Projeto de Lei 490. Todos os esforços que a gente fez é pensando na melhor forma de avançar contra esses retrocessos", afirma Karkaju Pataxó, que atua na coordenação dos jogos nacionais e mundiais dos povos indígenas, além da coordenação dos jogos indígenas pataxós. Karkaju vive na aldeia Coroa Vermelha, localizada na cidade de Santa Cruz Cabrália, terra do time Aktxurá Eoató Coroa Vermelha.

"A Copa é uma forma também de quebrar esses muros invisíveis que, muitas vezes, existem entre a comunidade indígena e a comunidade não indígena. E, através do esporte, a gente consegue estreitar esses laços", completa Karkaju.

Teite Tupinambá, da Serra do Padeiro, segue na mesma linha de Karkaju. Ele afirma que a demarcação das terras daria maior garantia e segurança aos indígenas para organizar mais campeonatos esportivos nas aldeias. Para ele, o intercâmbio entre comunidades que a competição vai proporcionar a partir da aproximação das aldeias pode ajudar no fortalecimento das lutas indígenas. "Essa Copa é mais um reforço para essa briga pela terra, pela demarcação, e para o povo perceber que a gente depende disso", realçou.

Assegurada pela Constituição Federal de 1988, a demarcação de terras indígenas é a garantia dos direitos territoriais dos índios e vista como primordial na preservação da cultura e identidade dos povos originários, uma vez que protege as terras de invasões praticadas por não índios.

O marco temporal é uma tese jurídica que contesta a constitucionalidade da demarcação de terras e afirma que um território indígena só pode ser demarcado e protegido se tiver a comprovação de que os índios ocupavam o referido espaço na data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988. Significa que, se os grupos indígenas não conseguirem comprovar que ocupavam o território na época — muitos foram expulsos por outros grupos —, podem perder o direito de viver naquela terra.

Em setembro, o STF deu início ao julgamento do marco temporal, mas o processo está suspenso. No entanto, como citado por Karkaju, a medida foi introduzida pela bancada ruralista no Projeto de Lei (PL) 490/2007, que altera o Estatuto do Índio e estabelece que as terras indígenas devem ser demarcadas por meio de leis. Porém, o texto ainda não foi à votação no plenário da Câmara.

Raízes de Garrincha

Quebrar estereótipos é outro objetivo dos indígenas com a realização da Copa. Um deles é de que o índio não pratica esporte ou que a prática esportiva é algo ausente nas aldeias.

Teite Tupinambá acredita que a falta de visibilidade atrapalha os jovens das tribos que almejam ter uma carreira no futebol profissional. Para justificar essa invisibilidade, ele se apoia na trajetória de um dos maiores jogadores da história do Brasil. "Garrincha morreu e era Fulni-ô. Quantas vezes foi falado na televisão que ele era índio?", questionou.

Karkaju Pataxó também alertou sobre a tímida abordagem da imprensa sobre as raízes indígenas de Garrincha, e lembrou que as origens do Índio, ex-jogador do Corinthians e campeão Mundial em 2000, também não foram devidamente debatidas.

Para ele, de etnia pataxó, viver em Santa Cruz Cabrália, e ter um time da região tida como o local do descobrimento do País, é muito significativo. "É para marcar que estamos bem antes do marco temporal e que essa resistência e luta são constantes. Estamos firmes para mostrar que não estamos extintos."

Apoio

O projeto está sendo erguido com o suporte do Bahia, clube que possui um programa estruturado de responsabilidade social e que há anos demonstra, publicamente, apoio às pautas indígenas; e também com a ajuda do Instituto Latino-americano para Justiça Coletiva (Ilajuc), criado para promover a proteção e justiça coletiva de grupos minoritários por meio de pesquisas e projetos.

Segundo Tiago César, coordenador do Núcleo de Ações Afirmativas do Bahia, é importante para os índios que um time da elite do futebol brasileiro esteja ao lado das causas indígenas. "Os times de futebol profissionais precisam se aprofundar sobre como querem debater e colaborar com os problemas da sociedade", afirma Tiago.

Além de sediar a final, o Bahia vai ajudar com a hospedagem dos atletas e com a transmissão do jogo. O clube também tem colaborado com a criação do regulamento do campeonato e vai fornecer os uniformes para as oito equipes que vão disputar a copa.

Para a advogada e diretora do Ilajuc, Marina Coutinho, o instituto abraçou a ideia do projeto por acreditar que "através do esporte e do empoderamento dos povos indígenas, a justiça social pode ser mais disseminada no nosso país." Ela espera que essa seja a primeira de muitas copas que devem ser organizadas nos próximos anos.

Estadão
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