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TransEmpregos atinge 2,4 mil empresas e empregou milhares de pessoas trans

Maitê Schneider, cofundadora da agência e da Integra Consultoria, revela caminhos para a construção de ambientes inclusivos e diversos

23 ago 2023 - 06h20
(atualizado às 15h46)
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Maitê Schneider
Maitê Schneider
Foto: Divulgação

O currículo de Maitê Schneider é extenso. A credencial mais conhecida talvez seja a de cofundadora da TransEmpregos ou a de primeira mulher transgênero a ser LinkedIn Top Voice. Mas ela também é formada em Artes Cênicas; tem MBA em gestão, inovação e conhecimento; fez cinco períodos do curso de Direito; estudou Letras e alemão; fundou a Integra Consultoria em Inclusão e Diversidade; é embaixadora na Rede Mulher Empreendedora, palestrante, colunista, professora. Mas a definição que melhor lhe cabe foi dada pela advogada, ativista e amiga de longa data Márcia Rocha: Maitê é querosene. Ela alimenta um fogo que está em você, adormecido, e te atiça para a transformação.

"O que eu mais conheço nessas palestras que eu dou" - e sobre "nessas palestras que eu dou" leia-se 723 em 2022 - "são pessoas querendo mudar o mundo. Querendo mudar sua empresa. E daí eu pergunto: 'e mudar você?'", revela Maitê. Nesse momento o interlocutor se apequena, dizendo que é apenas uma boa e fraca pessoa enclausurada em um forte e hostil planeta. Eis a trava dos justos e impotentes, que ela própria teve de destravar.

Uma pequena digressão

Se você me permitir uma digressão, interrompo este texto com uma ousada análise  que pela minha formação como jornalista é totalmente inadequada e portanto não deve ser tida como verdade. Vejo que, como sociedade, cometemos duas violências contra minorias: a primeira é a exclusão e a marginalização, uma das formas mais primitivas de demonstração de medo e insegurança. A segunda, mais elaboradora, vem enfeitada de simpatia: nos abrimos para ouvir a triste história de superação, colocando a pessoa na prateleira das exceções e atribuindo-lhe como único papel o de nos educar sobre um novo olhar. O acordo, tácito, é de que essa prateleira é sua nova jaula. Se a minoria afoitar-se em romper o invólucro da folclorização para atingir  um lugar de poder, de realização, de mudança, o angu desanda. Exemplos como o de Chico Mendes mais ao passado de nossa história, yalorixá Maria Bernadete Pacífico mais ao presente e Marielle Franco no meio não me deixam mentir.

E como megafones do pensamento social, nós, jornalistas, caímos na desgraça de reforçar esse estereótipo. Fortalecemos o ícone, a simbologia, nos aproveitamos do que há de mais pesado na narrativa daquele que perfilamos com o desejo sincero de sensibilizar e de ganhar audiência (ops). Então compartilho contigo a angustiante tarefa de não iconizar Maitê nas próximas linhas.

Voltemos a ela.

A mudança do eu

Maitê mesma já se sentiu vitimizada pela sociedade. A faculdade de Direito, por exemplo, não foi abandonada por falta de vocação. Uma das melhores alunas da sala, ela espalhou seu currículo entre os 20 principais escritórios de Curitiba quando chegou o momento de estagiar. Enquanto colegas cisgêneros menos capacitados conseguiam oportunidades, ela, transgênero, não teve o mesmo destino. Se revoltou.

"Eu tive sorte de ser uma mulher branca, nascida em Curitiba, classe média, passar por ótimas faculdades, os melhores colégios e nunca tive uma carteira de trabalho assinada. Se eu - que tenho tudo isso - não consegui furar essa bolha, então não existe isso, sabe? Não existe empregabilidade para pessoas trans", disse, durante entrevista para o podcast Vale do Suplício. Mas esse pensamento é datado, de uma Maitê de 20 anos atrás. Ela mudou. E essa mudança não seria possível sem Márcia Rocha.

Foi Márcia quem concebeu a TransEmpregos em 2013. Maitê e a cartunista Laerte Coutinho embarcaram junto da amiga, mas não colocavam fé na empreitada. Essa descrença durou os primeiros três anos da agência de empregos que conecta profissionais transgêneros a contratantes, sejam eles empresas ou pessoas físicas. Maitê, que via o departamento de Recursos Humanos como o tira ruim que a impedia de ingressar em uma empresa, transformou seu olhar ao entender o peso que a área carrega. A empatia abriu um buraco na doma de rejeição. O querosene de Maitê se espalhou, encontrando o fogo de Márcia que, paciente, estava à sua espera. Em 2023, a agência atingiu a marca de 2.475 empresas parceiras e apoiou a contratação de 1.113 pessoas trans apenas em 2022.

Pontes e imposições

Paulo Freire nos ensinou que "se a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor". Alçada à posição de destaque e de poder, não seria de se espantar se a minoria repetisse o padrão daqueles que a açoitaram.  E com a cobrança de investidores e sociedades por inclusão e diversidade nas empresas, é tentador demais baixar regras que obriguem os colaboradores a aceitar o diferente, em uma postura quase imoral de terceirizar para a equipe a resolução do preconceito arraigado nas estruturas mais profundas da nossa sociedade. Mas para ter efeito real, a jornada da inclusão é arte que deve ser conduzida com sabedoria.

"O caminho da diversidade é o caminho de pontes", ensina Maitê.

Se a TransEmpregos facilita o recrutamento e seleção de profissionais transgêneros, a Integra atua como consultora na construção de programas de inclusão. E um dos casos que Maitê conduziu foi em uma indústria no Nordeste do país. Os 9 mil colaboradores do chão de fábrica, de maioria cristã, tinham resistência em aceitar colegas trans. Um dos principais pontos de desconforto era o uso do banheiro. O primeiro passo foi ouvir e acolher os temores dos colaboradores cisgêneros. Depois, desatar as amarras por meio da educação. "Eu disse: sua religião não fala de amor e acolhimento?  Se fosse seu filho uma pessoa trans aqui dentro, você gostaria que ela tivesse dificuldade de ir ao banheiro? Você sabe que 80% dos estupros e da violência contra mulheres não acontecem nos banheiros das firmas, mas nos banheiros das nossas casas, seja pelo pai, por pessoas próximas, por parentes?".

Empatia é fundamental, mas ela não dura sem outro elemento. "Educação é um processo de paciência, é um processo de entender que as pessoas têm tempos diferentes. Construir ponte é muito mais difícil do que cavar buraco mais fundo", admite.

Maitê persegue a utopia de que em um dia muito breve a TransEmpregos, a Integra Consultoria e tantas outras iniciativas correlatas encontrem a falência. Que sejam apenas o componente de uma triste e finda história na qual a igualdade não era uma realidade óbvia. A mudança do eu, portanto, é o prefácio da mudança para esse mundo que ela sonha em viver. "Somos 8 bilhões de pessoas no planeta. São 8 bilhões de verdades. Se ninguém quiser abrir mão, se for a minha verdade e a tua verdade e a gente não tentar achar um lugar de encontro, vamos continuar tendo um mundo com regras que em vez de nos unir enquanto humanos, vai continuar nos afastando enquanto humanidade."

A lição está dada.

(*) Adriele Marchesini é jornalista especializada em TI, negócios e Saúde com quase 20 anos de experiência. Depois de passar por redações de veículos como Estadão, Infomoney, ITWeb e CRN Brasil, cofundou as agências essense e Lightkeeper,  as quais já ajudaram mais de 80 empresas na construção de conteúdo narrativo multiplataforma para negócios. É cofundadora do Unbox Project e coâncora do podcast Vale do Suplício. Criado pelas jornalistas Adriele Marchesini e Silvia Noara Paladino, o podcast Vale do Suplício nasceu como uma contracultura aos empreendedores de palco - os típicos CEOs de MEI, escritores de textões no LinkedIn - para contar a história de empreendedores que falam pouco, mas fazem muito. Ouça no Spotify.

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