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'Só queremos voltar para casa': os marinheiros que são abandonados em navios

Cerca de 3,1 mil marinheiros foram abandonados em navios em 2024.

24 ago 2025 - 12h21
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Tripulante indiano do navio cargueiro Anka está abandonado em um porto ucraniano desde abril
Tripulante indiano do navio cargueiro Anka está abandonado em um porto ucraniano desde abril
Foto: BBC News Brasil

O indiano Manas Kumar — o nome foi alterado para proteger sua identidade — foi abandonado em um navio cargueiro em águas ucranianas em abril.

O marinheiro integrava uma tripulação de 14 pessoas que transportava pipoca de Moldávia para a Turquia, quando a embarcação foi interceptada no dia 18 de abril, enquanto descia o rio Danúbio, que divide a Ucrânia e a Romênia.

A Ucrânia alegou que o navio, Anka, fazia parte da frota "fantasma" da Rússia, e estaria sendo usado para vender grãos ucranianos saqueados para outros países.

Mas Kumar, que é o oficial-chefe do Anka, disse que o cargueiro navegava sob a bandeira da Tanzânia e era operado por uma companhia turca.

Não está claro, contudo, a partir dos documentos fornecidos pela tripulação — composta por Kumar, outros cinco cidadãos indianos, além de dois azerbaijanos e seis egípcios — quem exatamente é o proprietário do navio.

Cinco meses depois da interceptação, todos ainda estão a bordo, apesar das autoridades ucranianas terem informado, segundo Kumar, que eles estavam livres para partir, já que não estão sendo investigados.

O problema é que desembarcar significa para a tripulação — pelas regras de seus contratos — perder seus salários, que somavam US$ 102,828 (R$ 550 mil) até junho, de acordo com um banco de dados conjunto de navios abandonados mantido pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e pela Organização Marítima Internacional (OMI).

Tripulação do navio Nirvana foi abandonada e ficou sem comida adequada
Tripulação do navio Nirvana foi abandonada e ficou sem comida adequada
Foto: BBC News Brasil

A BBC entrou em contato com a administração e os proprietários do navio usando as informações fornecidas pela tripulação.

Segundo Kumar, os tripulantes não tinham conhecimento do passado do navio quando aceitaram o trabalho. Agora, o grupo está preso em uma situação que foge de seu controle, e busca por uma resolução rápida.

Kumar afirma que o proprietário e as autoridades marítimas indianas continuam pedindo "mais um dia" para resolver a crise, mas nada de concreto foi feito até agora.

"Isso é uma zona de guerra. Tudo que nós queremos é voltar para casa rápido", disse à BBC.

Razões para o abandono

A Índia é o segundo maior fornecedor de marinheiros e tripulações de navios comerciais no mundo.

Mas também lidera a lista de tripulantes conhecidos como "marinheiros abandonados", um termo usado em 2006 pela Convenção de Trabalho Marítimo para descrever a situação em que os armadores rompem os laços com a tripulação e deixam de garantir sua repatriação e salários regulares.

De acordo com a Federação Internacional dos Trabalhadores em Transportes (ITF, na sigla em inglês), que representa os trabalhadores marítimos em todo o mundo, 3.133 marinheiros foram abandonados em 312 navios em 2024, sendo 899 cidadãos indianos.

Para muitos, deixar o navio sem receber o salário não é uma opção — especialmente se eles já tiverem pago quantias elevadas a agentes para conseguir o emprego ou obter certificados de treinamento, disse à BBC Mohammad Gulam Ansari, ex-marinheiro que auxilia na repatriação de tripulantes indianos de outras partes do mundo.

A razão principal para o abandono é a prática generalizada de registrar navios — chamada bandeira de conveniência — em países com regras de navegação frágeis, de acordo com o ITF.

As normas marítimas internacionais permitem que um navio seja registrado ou use a bandeira em um país diferente daquele de seus proprietários.

"Um país pode criar um registro e cobrar taxas dos armadores enquanto mantém padrões reduzidos de segurança e bem-estar da tripulação, e frequentemente não cumpre as responsabilidades de um verdadeiro Estado de bandeira", afirma o site do ITF.

Esse sistema, segundo o grupo, também dificulta a identificação dos proprietários verdadeiros, o que facilita que proprietários duvidosos operem os navios.

Dados do ITF mostram que, em 2024, cerca de 90% dos navios abandonados navegavam sob bandeira de conveniência.

Tripulantes do navio foram repatriados após meses no mar, mas continuam esperando seus salários
Tripulantes do navio foram repatriados após meses no mar, mas continuam esperando seus salários
Foto: BBC/ITF / BBC News Brasil

As complicações também surgem devido à natureza globalizada da indústria marítima, com proprietários, gerentes, bandeiras e tripulações dos navios vindo de diferentes países.

No dia 9 de janeiro de 2025, o capitão Amitabh Chaudhary — o nome foi alterado para proteger sua identidade — conduzia um cargueiro do Iraque para os Emirados Árabes quando o mau tempo o obrigou a fazer um pequeno desvio.

Minutos depois, o navio Stratos, com bandeira da Tanzânia, atingiu rochas submersas e danificou seu tanque carregado de petróleo, forçando uma parada não planejada próximo a porto de Jubail, na Arábia Saudita.

A tripulação, composta por nove indianos e um iraquiano, tentou várias vezes fazer a embarcação flutuar, mas não conseguiu.

Presos, eles esperaram por ajuda por quase seis meses até que o navio voltasse a flutuar.

Enquanto isso, o proprietário iraquiano do navio se recusou a pagar os salários dos tripulantes, alegando ter sofrido perdas por causa do naufrágio, segundo Chaudhary.

A BBC entrou em contato com os proprietários do navio para obter uma resposta a essas alegações, mas eles não responderam.

'Só queremos voltar para casa'

Marinheiros frequentemente culpam a agência reguladora marítima indiana, a Diretora-Geral (DG) de Navegação — responsável por verificar as credenciais dos navios, seus proprietários e agências de recrutamento — pela fiscalização branda dos envolvidos.

A DG não respondeu ao contato da reportagem.

Outros, contudo, afirmam que a tripulação também precisa ser mais vigilante.

"Quando você é contratado, tem tempo suficiente para informar à DG [sobre discrepâncias no contrato]", disse Sushil Deorukhkar, representante do ITF que atua em defesa do bem-estar dos marinheiros.

"Uma vez que você assina os papéis, você fica preso e precisa bater de porta em porta para conseguir uma solução."

As coisas podem se complicar até mesmo para a tripulação de navios cujos proprietários são indianos e que operam dentro das águas do próprio país, por uma série de razões.

O capitão Prabjeet Singh trabalhava no Nirvana — um petroleiro de propriedade indiana com bandeira de Curaçao — junto com outros 22 tripulantes indianos.

O navio havia sido vendido recentemente para um novo dono, que pretendia desativá-lo, e o pagamento dos salários estava em disputa entre o novo e o antigo proprietário.

No início de abril, Singh levava o navio a um porto no Estado de Gujarat, no oeste da Índia, para ser desmantelado, quando um tribunal indiano ordenou sua apreensão "por falta de pagamento da tripulação", segundo dados da OIT-OMI.

Tripulação que estava a bordo do navio Stratos conseguiu fazer o navio voltar a flutuar, após meses presa no mar
Tripulação que estava a bordo do navio Stratos conseguiu fazer o navio voltar a flutuar, após meses presa no mar
Foto: BBC News Brasil

Em poucos dias, a tripulação percebeu que havia sido abandonada.

"Ficamos sem comida. O navio tinha pouco combustível e estava completamente escuro."

Contratado em outubro de 2024, Singh tinha esperança de garantir uma vida decente com esse emprego e, por isso, deixar o navio sem receber salário não era uma opção viável.

A tripulação conseguiu finalmente desembarcar no dia 7 de julho, depois de uma ordem judicial. Mas, segundo os dados da OIT-OMI, os salários da tripulação ainda não foram pagos, apesar da decisão.

De volta ao Golfo, a tripulação do Stratos disse que seu maior medo era que o buraco no fundo do navio fizesse a embarcação afundar.

Mas o principal desafio que eles encontraram foi a fome.

"Por dias, tivemos que comer apenas arroz ou batatas porque não havia suprimentos", disse Chaudhary à BBC na semana passada.

Após quase seis meses, a tripulação finalmente conseguiu fazer o navio flutuar de volta, mas o acidente deixou o leme danificado, tornando-o inapto para navegar.

Os tripulantes ainda permanecem a bordo, esperando seus salários serem pagos.

"Continuamos no mesmo lugar, na mesma situação. A mente parou de trabalhar, não conseguimos pensar no que mais deveríamos fazer", afirmou.

"Será que conseguimos alguma ajuda? Só queremos voltar para casa e encontrar nossos familiares."

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