Como o tarifaço de Trump desarticula a cadeia de produção das multinacionais presentes no Brasil
Conglomerados que têm parcerias estreitas com operações nos EUA, como a Voith Hydro no Brasil, veem estrutura entrar em xeque com taxação de 50% sobre produtos brasileiros
Foi da fábrica da alemã Voith Hydro em São Paulo, que saíram, na década de 70, equipamentos que permitiram à Itaipu gerar energia. Também foram feitas lá as primeiras máquinas de Três Gargantas, a maior usina hidrelétrica do mundo, que fica na China. Além das de Guri, na Venezuela, Palo Viejo, na Guatemala, e Caculo Cabaça, em Angola, entre muitas outras. "A unidade brasileira é a maior do grupo na área de energia", diz Hans Poll, presidente da Voith Hydro América Latina.
Mesmo com essa importância, a subsidiária é apenas parte de um quebra-cabeça produtivo. Como em toda multinacional, a Voith estruturou sua operação de modo que cada país tivesse uma especialização e um papel dentro do conglomerado, aprimorados e estruturados ao longo de anos. O tarifaço de 50% aos produtos brasileiros, imposto pelo presidente dos EUA, Donald Trump, porém, "quebrou as pernas" desse esquema.
"A unidade dos Estados Unidos, por exemplo, também é bastante grande, mas eles têm uma especialização diferente e nós complementamos a produção deles", diz Poll. "Temos muito orgulho dessa relação que se estabeleceu há mais de 30 anos: os EUA são um mercado altamente exigente e temos produção de altíssima qualidade que os atende."
Poll diz, inclusive, ser comum que os clientes americanos peçam para que determinados equipamentos sejam feitos no Brasil — e venham aqui acompanhar a execução, já que as máquinas podem levar até dois anos para ficarem prontas. "Eles gostam dos produtos brasileiros e há uma proximidade cultural que nos ajuda", diz ele. "Ainda não recebi nenhuma carta dizendo: 'cancele o pedido', mas como esses produtos serão embarcados mais à frente, se a tarifa se mantiver, será uma situação muito complicada."
Mundo crescerá menos
A Voith Hydro não é a única multinacional a coordenar a produção entre diferentes países. Segundo Maria Cristina Zanella, diretora executiva de competitiva economia e estatística da Associação Brasileira de Máquinas e Equipamentos (Abimaq) boa parte das exportações brasileiras são feitas entre companhias de um mesmo grupo industrial. No setor de construção civil, o porcentual de exportações do Brasil para empresas do mesmo grupo chega a 80%.
Lucas Ferraz, coordenador do Centro de Negócios Globais da FGV, diz que essa integração intra-industrial envolve não só os interesses dos próprios conglomerados, como também cadeias de fornecimento globais. "Todo o arranjo produtivo que envolve os EUA tende a ser afetado com as tarifas de Trump — e não só com o Brasil", afirma.
Para ele, o mundo vem se fragmentando lentamente entre dois blocos: um sob influência de EUA e Europa e outro de China e Rússia. "É difícil prever onde isso vai parar, mas as empresas já estão se reorganizando por critérios que deixam de ser exclusivamente baseados em eficiência econômica e passam a ter maior peso da geopolítica", afirma Ferraz.
Outro efeito é no fluxo de caixa. Como muitos contratos de fornecimento no País são antigos e feitos com estatais antes de privatizações, os recebimentos não favorecem a empresa. "Nos contratos americanos, é diferente", diz Poll. "Quando um produto é entregue, já recebemos 70% do valor, o que cria um fluxo de caixa extremamente atrativo."
Além disso, as encomendas norte-americanas representam entradas em moeda forte, que criam uma espécie de proteção para insumos dolarizados.
"A comparação com a suspensão dessas encomendas é mais ou menos como a pessoa que vai à academia: se ele deixa de fazer os exercícios por um tempo, vai ficar menos eficiente", diz ele. "É o mesmo de uma fábrica, já que a partir do instante em que você perde um turno de máquina, manda uma mão-de-obra muito qualificada embora, cria um efeito em cascata que impacta também nos contratos nacionais."
Com 1,2 mil funcionários, a Voith Hydro não enxerga demissões no radar por enquanto. "Temos uma mão-de-obra muito qualificada que, depois, é difícil recuperar", diz Poll. "Mas se tivermos pedidos interrompidos, com o cliente sem condições de arcar o custo, aí vejo demissões." Segundo ele, no ano fiscal que está se encerrando, a operação brasileira evitou cortes exatamente com encomendas provenientes dos EUA.
Opção pela negociação
Para as multinacionais, o pacote de auxílio do governo federal anunciado na semana passada tem pouco ou nenhum impacto. As operações locais são mantidas com os lucros gerados no próprio país e qualquer investimento mais pesado é financiado pela matriz. "O governo precisa é negociar", diz Poll.
Para ele, uma das ferramentas poderia ser a inclusão do Brasil no Trade American Act (TAA), tratado que dá prioridade a transações entre determinados países com empresas americanas, e do qual o Brasil não é signatário. Sem ela, a Voith local, inclusive, não consegue participar de negócios pesados com aquele país.
"O que pode acontecer é, se uma situação dessa se perdurar e não houver recuperação no mercado brasileiro, teremos de defender a produção no Brasil junto à matriz", diz ele. "Hoje a situação não está crítica, mas é uma questão discutida de tempos em tempos, que parece mais difícil à frente."