"Para minha geração, é inacreditável", diz Marieta Severo sobre defensores do governo Bolsonaro
Atriz estrela filme 'Aos Nossos Filhos', que resgata a história de uma mulher vítima de torturadores durante a Ditadura Militar no Brasil
Em uma das cenas mais simbólicas de 'Aos Nossos Filhos', filme de Maria de Medeiros que estreia no próximo dia 28, Vera geme em dores de parto, cercada por baratas alvoroçadas dentro de uma cela dos porões da Ditadura. A sequência de uma das protagonistas do longa é mais do que um pesadelo decorrente do trauma vivido pela personagem de Marieta Severo. É uma representação fidedigna de um dos muitos crimes cometidos pelo Regime Militar do Brasil, que durou de 1964 a 1985.
Vera desperta para uma realidade ainda angustiante, já que o filme se passa em 2018 e acaba por se tornar uma radiografia do Brasil das últimas eleições. Mas a personagem está longe de ser apenas um papel de ficção e sem compromisso com a realidade.
"Eu tive amigos e amigas, pessoas que passaram por isso. Eu tenho isso dentro de mim", lembra Marieta Severo, em entrevista ao Terra.
A atriz se tornou um dos rostos do movimento que foi chamado de "Cinema de Retomada", que reuniu a produção nacional de filmes feita entre 1995 e 2002. A história de vida de Marieta se mistura com a do cinema nacional, e com a história do país.
"Eu não achei que eu fosse contar essa história no momento em que o Brasil retrocede tanto, com novamente uma ameaça de ditadura. Isso nunca passou pela minha cabeça" afirma a atriz. "Como podem existir jovens que defendem isso? Que concordam com alguém que tem como ídolo um torturador? Pra minha geração, é inacreditável".
Ficção recheada de realidade
No filme, a personagem de Marieta Severo teve um filho roubado pelos militares que a torturavam. Depois da prisão, Vera refaz sua vida, se casa e tem outra filha. O conflito de geração entre ela e Tânia, interpretada por Laura Castro, sempre parte de uma situação corriqueira para algo maior.
Vera sempre foi uma mulher corajosa e progressista, mas se vê confrontada com o seu passado e suas escolhas quando não consegue aceitar as decisões e o relacionamento homoafetivo de sua filha. É uma obra de ficção que está recheada de realidade.
"O que me seduziu nessa história é a verdade dela, que partia de uma experiência vivida pela Laura, onde há algo de muito real", afirma Maria de Medeiros, que, além de dirigir, assina o roteiro com Laura Castro.
O filme nasceu de uma peça de teatro escrita por Laura. O texto ecoa a vida da própria atriz, mas foi alterado conforme mudava a situação política do Brasil.
"A primeira versão, escrita em 2014, era mais solar. Era um outro momento, antes dessa avalanche que estamos vivendo", observa Laura.
Assista ao trailer:
Censura no Brasil de 2022
Da criação até o lançamento de 'Aos Nossos Filhos', se passaram oito anos. A atriz e roteirista Laura Castro lembra o que passou nesse período para tentar colocar o filme na rua.
"Depois de 2018, foi um soco no estômago do cinema nacional. A gente tinha recurso para finalização que levou dois anos para ser liberado; depois quatro anos para liberar o recurso da distribuição, que só saiu agora, um dia antes da pré-estreia de São Paulo, que nós tivemos que fazer, pois temos um limite de data", explica.
Para ela, o atual sistema de produção de filmes no Brasil é pensado para fazer os longas "não acontecerem". "Eu soube o que 'Marighella' e 'Medida Provisória' passaram (...) É uma espécie de censura, sim", afirma.
Às vésperas da estreia nacional de 'Medida', em março, o diretor Lázaro Ramos explicou o impasse que viveu com a Agência Nacional de Cinema (Ancine) para conseguir liberar o filme. Gravado em 2019, o longa teve estreia adiada duas vezes.
Conforme explicou, decorreu-se um ano de espera pela autorização da Ancine para mudar a empresa responsável pela distribuição do longa. Sem isso, não teria como programar a exibição de 'Medida' nos cinemas brasileiros.
"Tinha mais de um ano que essa assinatura não chegava, e ela chegou numa sexta-feira, seis e meia da tarde, vinda de Brasília – que é um horário que todos sabem que no geral não está em funcionamento", destacou Lázaro.
Para a atriz Marieta Severo, protagonista de 'Aos Nossos Filhos', o que as produções nacionais têm enfrentado hoje pode, sim, se enquadrar em censura.
"É uma censura financeira. A gente sabe que todos os filmes com temáticas que não agradavam a esse pessoal que está aí tiveram uma dificuldade enorme pra chegar às telas", afirma.
Para a atriz, as temáticas abordadas no filme precisam ser vistas por todos, até por mesmo por quem tem pensamentos políticos contrários aos seus.
"Gostaria que essa bolha assistisse, que saísse do seu estado de ignorância e percebesse os perigos que a gente corre", acrescenta.
*Com edição de Estela Marques.