Ciência versus Fanatismo em 'Ágora', com Rachel Weisz
A última vez que vi Rachel Weisz num cenário egípcio, ela interpretava Evelyn Carnahan, uma bibliotecária séria que vira arqueóloga, em
A Múmiae
O Retorno da Múmia. Em
Agora, seu último filme, ela retorna ao Nilo para interpretar outra mulher de inclinação acadêmica ¿ mas é aí que termina qualquer similaridade com a série astutamente cômica e aterrorizante de
A Múmia.
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Agora, que estreia em Nova York na sexta-feira, é um épico romano de duas horas de duração e grande orçamento, com Weisz como Hipátia, a filósofa neoplatônica, astrônoma e matemática que é considerada por alguns a inventora do hidrômetro e do astrolábio plano. Em vez de se passar no século 20 entre as tumbas e templos de faraós, como A Múmia, a maior parte da história acontece na Alexandria do século 5, quando a fé cristã em ascensão desafiava agressivamente os ensinamentos e valores greco-romanos tradicionais.
"O tema do momento hoje em dia é o fundamentalismo islâmico", Weisz disse recentemente enquanto bebia chá num restaurante em East Village, perto de sua casa. "Mas em Agora, os cristãos é que são os fundamentalistas", cujo fanatismo os leva a destruir uma das bibliotecas de Alexandria, talvez o maior centro de conhecimento do mundo antigo.
Algumas dessas cenas evocam as estátuas de Buda demolidas pelo Talibã no Afeganistão em 2001. Weisz, nascida e educada em Cambridge, disse que esses paralelos eram propositais. Em outra cena, um véu é colocado sobre a cabeça de Hipátia, "e o roteiro dizia que isso deveria lembrar uma burca", ela conta.
"A primeira coisa que pensei quando li o roteiro foi que essa história falava de hoje, uma história muito contemporânea do século 21", ela disse. Ela mencionou a oposição à pesquisa de células-tronco e ao ensino da teoria da evolução como exemplos de ¿uma barreira entre a ciência e a religião¿ que ainda persiste, e então concluiu seu pensamento: "O fato de ainda estarmos matando pessoas em nome de Deus é primitivo, mas verdadeiro."
Agora, cujo título se refere à ágora, praça pública e mercado onde ideias eram debatidas no mundo grego antigo, é dirigido pelo cineasta chileno-espanhol Alejandro Amenabar, que escreveu o roteiro com Mateo Gil. Ele originalmente imaginou um filme sobre a história da astronomia, de Aristóteles a Einstein, mas mudou de direção quando sua pesquisa o levou a Hipátia e ao período que precedeu a Idade das Trevas.
"Ela foi um mulher excepcional, uma intelectual casta que conseguiu se impor como uma figura importante, uma referência na vida filosófica e política de Alexandria durante uma época crucial", Amenabar disse. "Estamos acostumados a ver leões devorando cristãos em filmes, mas não a transformação dos cristãos de um grupo perseguido a outro poderoso e armado."
Para Amenabar, Agora também representa uma mudança notável de estilo. Os dois filmes pelos quais ele é mais conhecido, Os Outros e o ganhador do Oscar Mar Adentro foram obras intimistas que se passavam em pequenos espaços. Agora, por sua vez, exigiu a construção de praticamente uma cidade inteira em Malta para a filmagem no início de 2008 e também possui um elenco amplo, cosmopolita e poliglota, incluindo atores da Grã-Bretanha, França, América Latina, Israel e do mundo árabe, com cristãos, muçulmanos e judeus.
"Esse set de filmagem foi um presente maravilhoso, porque todos nós imediatamente sentíamos como se estivéssemos num mundo e numa época diferentes a partir do minuto em que chegávamos para trabalhar a cada dia", disse Max Minghella, que interpreta Davus, o jovem escravo de Hipátia. "A maioria dos atores hoje em dia precisa atuar numa tela verde" em vez de num cenário real, "mas não tivemos que nos esforçar tanto para acreditar em todas as coisas que estávamos fazendo. E eu estaria mentindo se dissesse que não houve uma quantidade razoável de debate religioso no set de filmagem, o que foi muito estimulante.
Como Agora é um empreendimento comercial, ele também inclui um subenredo romântico. Embora Hipátia nunca tenha se casado e, em certa ocasião, tenha mostrado em público um tecido com sangue menstrual para argumentar contra as atrações do amor carnal, um episódio reproduzido em ¿Agora¿, o filme a coloca no centro de um triângulo amoroso não correspondido: tanto Davus quanto um aluno admirador que se torna o governador imperial de Alexandria desejam Hipátia em vão.
Weisz, que ganhou em 2006 um Oscar de melhor atriz coadjuvante por seu papel em O Jardineiro Fiel, se descreve como "extremamente apaixonada pelo que faço" e inicialmente achou a racionalidade fria de Hipátia difícil de compreender. No início do trabalho, conta, ela sugeriu "meio que brincando" uma cena na qual Hipátia se masturba, mas Amenabar rejeitou a ideia.
"Meu medo era que ela fosse um cérebro andante, e isso não é interessante de assistir", Weisz explicou. "Minha esperança era que ela fosse apaixonada, emotiva e cheia de sentimento, embora isso não estivesse sendo canalizado para a esfera sexual, pessoal e humana. Ela era apaixonada pela ciência, pelo conhecimento. Isso a excitava; foi a única coisa na qual eu consegui pensar."
Lacunas no registro histórico permitiram que os produtores tomassem outras liberdades para criar efeito dramático. Amenabar trouxe um consultor histórico britânico, Justin Pollard, autor de The Rise and Fall of Alexandria: Birthplace of the Modern Mind, e um astrônomo espanhol ao set de filmagem, mas também simplificou ou se esquivou dos fatos quando isso servia aos seus propósitos. A Hipátia histórica, por exemplo, pode ter morrido muito mais velha do que a idade sugerida em Agora. O filme também mostra a personagem teorizando sobre nosso sistema planetário ser heliocêntrico mais de um milênio antes de Copérnico e Galileu argumentarem que a Terra não era o centro do universo, mas o registro histórico, embora cheio de referências ao brilhantismo de Hipátia, não elabora muito esse ponto.
"Como há muitos buracos na história, temos um grande escopo para colocar nosso próprio drama", Pollard disse. "Nenhum trabalho de Hipátia sobreviveu. Sua história é contada em fragmentos escritos por vários autores em pequenos trechos de outros livros hoje perdidos, traduzidos para o árabe e que então retornaram ao Ocidente. Por isso, temos que adicionar uma pitada de sal."
O filme também ignora algumas distinções entre a biblioteca e o museu de Alexandria, fundado no século 3 a.C., e o que aconteceu aos mesmos no final. Crônicas da era romana, bem como obras posteriores, sugerem que pelo menos parte da biblioteca foi destruída quando Júlio César invadiu o Egito em 48 a.C., e que os cristãos foram responsáveis apenas pelos danos causados a uma biblioteca secundária na época de Hipátia, local que também pode ter sido atacado por conquistadores muçulmanos no século 7 d.C.
"Sempre existe licença artística", Amenabar disse quando perguntado sobre seu foco nas depredações cristãs. "Mas em comparação ao cinema hoje, tentamos ser muito rigorosos e fieis à realidade."
Na Europa, onde Agora foi lançado no ano passado e se tornou o campeão das bilheterias de 2009 na Espanha, a representação do fanatismo cristão provocou polêmica. Para evitar conflitos com o Vaticano, a distribuidora italiana do filme, por exemplo, convidou membros do clero católico romano para uma pré-exibição do filme, mas descreveu a reação deles como "tensa". E, temendo ataques à minoria cristã cóptica no Egito, o país restringiu a exibição de Agora, segundo relatos da imprensa.
"Fundamentalmente, esse é um filme muito cristão sobre a vida de uma mártir", Amenabar disse. "Ele denuncia a intolerância e presta uma homenagem às vozes que defendem a serenidade e o diálogo. Jesus não teria aprovado o que aconteceu a Hipátia, e é por isso que eu digo que nenhum bom cristão deve se sentir ofendido por esse filme."