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Dramaturgo e poeta Ariano Suassuna inspira comédia de protesto

Em 'O Auto da Compadecida', em cartaz no Sesc Pompeia, Gabriel Villela utiliza seus melhores recursos para ridicularizar os poderosos

23 ago 2019 - 03h11
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O Brasil que estampa os noticiários dos últimos meses alimenta a sensação de que nada deu certo. Subitamente, deixamos de ser o país do futuro. Somos agora o povo que retorna, a passos largos, ao mais amargo de seu passado. Nesse cenário de desesperança, a versão de Gabriel Villela para O Auto da Compadecida, em cartaz no Sesc Pompeia, faz mais do que trazer com correção e propriedade a obra de Ariano Suassuna. Ao contar a já conhecida história de Chicó e João Grilo, consegue a proeza de reconciliar o brasileiro com a própria imagem. 

Mestre do teatro popular, Suassuna se utiliza de tradições nordestinas, mas escapa da perspectiva regionalista. Em suas criações, reelabora formas como o cordel e transfigura modelos como o dos autos religiosos. Nessa, que é a obra mais afamada do autor, homens e mulheres confessam suas misérias e atitudes mais mesquinhas. Assim como demonstram sua criatividade, seus saberes e sua humanidade profunda. Aqui, a inteligência vence a riqueza. A compaixão tem mais força que a vingança. 

Uma das características da peça é sua grande capacidade de comunicação com a plateia. Aspecto que Gabriel Villela compreende e utiliza a seu favor. À vontade com o texto e com a proposta do encenador, o grupo Maria Cutia, de Belo Horizonte, consegue dar conta da narrativa ao mesmo tempo  que adiciona uma porção extra de reflexão à cena. Explorados por seus patrões, João Grilo e Chicó irão à forra com suas invencionices: para fazer com que o cachorro da mulher do padeiro seja enterrado com direito à missa e honrarias cristãs, criam um testamento canino, confundem o coronel local e vendem um gato que 'descome' dinheiro. 

Com larga experiência em teatro de rua, a companhia mineira abraça a proposta circense trazida pela direção: trazem os rostos pintados, adentram o palco em cortejo e executam toda a trilha ao vivo. Estão distantes, porém, do território da ingenuidade. É com muita argúcia que seus intérpretes fazem funcionar os jogos de humor que são próprios da dramaturgia de Suassuna. E, enquanto o espectador se diverte com o triunfo da esperteza dos mais simples sobre os poderosos, outras dimensões do texto vão se mostrando pertinentes ao desalento atual. 

É assim, por exemplo, que os corruptos bispo, padre e sacristão não representam a hipocrisia apenas da religião católica, mas também dos políticos "terrivelmente cristãos" que andam na berlinda. Da mesma maneira, as armas do cangaceiro fazem ecoar a crescente sede de justiça com as próprias mãos. O talento cômico da trupe ajuda a fazer com que os comentários sobre política exponham o atual governo ao ridículo.

Sabe-se que a proposta é perigosa. Poderia facilmente descambar para um escracho sem limites, mas se segura de pé por saber dosar o veneno. O riso aqui não é o do alívio. Ao zombar dos poderosos, cumpre quase uma função pedagógica. Lembremos que, para os gregos, o humor tem justamente o intuito de apontar aquilo que deve ser superado.

Como costuma ocorrer nos espetáculos do diretor, impressiona a direção de arte. Neste caso, contudo, não chama atenção apenas por sua exuberância, mas pela capacidade de criar contrastes com os tons terrosos do sertão. Mostra-se capaz ainda de inspirar imagens de grande carga simbólica, como é a do bispo que devora a pomba do Espírito Santo. 

Outra marca registrada de Villela é seu apreço pela música. Suassuna dá a deixa nas rubricas e o diretor aproveita para construir mais uma camada de significados. A inteligência e a graça das personagens poderiam sugerir ao espectador a simples satisfação com sua autoimagem. De sabor tropicalista, a trilha sonora mina qualquer chance de apaziguamento. As palavras de Sérgio Sampaio, Caetano Veloso e João do Vale são um convite à rua e ao protesto. Reiterado pela competente execução do grupo. 

Gabriel Villela experimenta um momento particularmente feliz de sua carreira. Em Boca de Ouro e Estado de Sítio, ambos textos escritos há mais de 60 anos, encontrou um meio eloquente de dialogar com o presente. Ao escolher montar O Auto da Compadecida (também lançado no final dos anos 1950), ele envereda por caminho semelhante, mas dobra a aposta. Faz da barbárie um motivo para seguir adiante. 

Estadão
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