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As vidas e a vida de Rosa Egipcíaca: uma santa africana no Brasil

De volta às livrarias após 30 anos, biografia retrata uma das mulheres africana do século 18 das quais mais se tem informações no Brasil, Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz

14 mai 2023 - 08h10
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Ao acaso das circunstâncias, Luiz Mott descobriu na Torre do Tombo, em Lisboa, o processo inquisitorial contra Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz, que, segundo ele, "é provavelmente a mulher africana do século 18 sobre a qual há o maior número de informações biográficas". De fato, não é qualquer informação saber que, em comparação com outras mulheres africanas do período, Rosa Egipcíaca ocupou um lugar de destaque, para não dizer de excepcionalidade. Não fosse a vida que, com o empenho de Luiz Mott, conhecemos em Rosa Egipcíaca: uma santa africana no Brasil, tal mulher, sendo negra em sociedade escravocrata, estaria fadada ao esquecimento.

A biografia volta às livrarias depois de 30 anos da primeira edição. De certo modo, o tempo entre a primeira e a segunda edição parece nos convocar para que olhemos com atenção as mudanças pelas quais o mercado editorial passou. Mudanças ocorreram em 30 anos, certamente, mas particularmente significativas quando se pensa em autores negros, em figuras históricas que, em razão da cor da pele, quedavam invisibilizadas. Como não pensar o livro de Luiz Mott sem considerar que no Brasil é recente a política antirracista no mercado editorial? O autor não deu um passo incomum quando se debruçou sobre a personagem no início dos anos 1980? Considerando o mercado editorial, a publicação do livro em 1993 não foi um ponto fora da curva? Quando a biografia é republicada no ano corrente, em 2023, o momento em que acontece, editorialmente falando, não a torna um gesto de afirmação, e resistência?

Além da historicidade que a trajetória da personagem implica, a saber, o Brasil do século 18, ainda colônia de Portugal, calcado no regime escravocrata, observamos a presença de outra historicidade. Esta, no entanto, corresponde ao objeto em si. O livro é marcado historicamente. Apresenta ele mesmo uma trajetória. Isso posto, os capítulos da biografia de Luiz Mott, embora tenham no centro da discussão a vida de Rosa Egipcíaca, lidam com outras informações, não menos necessárias. Elas dão contexto: ajudam-nos a compreender o período. O que significa abordar o Brasil do século 18? O parâmetro pode ser o mesmo que adotamos habitualmente? O tempo histórico não nos obriga a ler com outros olhos a realidade de então? De fato, o tempo de Rosa Egipcíaca nos exige um modo de apreender a realidade que não pode ser confundido, como ocorre vez por outra em leituras do passado, com o presente da escrita. A mudança de postura é fundamental para que o anacronismo não nos dê rasteiras. Tal comportamento ocorre, por exemplo, na pesquisa de João Adolfo Hansen sobre a poesia atribuída a Gregório de Matos. Para dar prosseguimento ao estudo, o autor de A sátira e o engenho buscou a matéria em todas as fontes do período, mobilizou o universo literário do século 17, sem perder de vista o significado (em seu tempo) do conceito de literatura. Luiz Mott, dado o cuidado que não esconde a cada passo do texto, tem a mesma consciência. Paralelamente à retomada da trajetória de Rosa Egipcíaca, faz o mapeamento do contexto histórico, social, político, econômico, literário - e religioso.

Religião e violência

Embora anunciada no subtítulo do livro, a religiosidade da personagem disputa a atenção do leitor com outro elemento: a violência. Ambas, religiosidade e violência, são por assim dizer as líderes de audiência. Desde os capítulos iniciais, como o primeiro e o segundo, chamados, respectivamente, de "Os primeiros anos no cativeiro" e "Mulher da vida em Minas Gerais", verificamos a centralidade da violência no texto. A narração dos acontecimentos não avança sem que as tensões sejam devidamente abordadas, destacadas, sublinhadas para que o leitor não as perca de vista. Entre outras coisas, verificamos uma tensão entre a aparência que no cotidiano se pretende paradigma da organização da vida, apoiada na ideia de tradição, família, propriedade, mas que, em essência, é marcada pela transgressão a mais cavalar. A frouxidão moral, que Rosa Egipcíaca conheceu desde o primeiro momento na colônia portuguesa, e a licenciosidade do clero, que não era uma exceção à regra, mas a regra em si, são recorrentes. De um lado, a opulência, de outro, a devassidão. A vida em Minas Gerais deixou marcas em Rosa Egipcíaca, que ingressa na vida religiosa, abandonando a prostituição, porque a idade, como sugere Luiz Mott, teria começado a pesar.

Seja como for, a violência não se sobrepõe à biografia. Ela torna mais firmes ou mais realçados os passos de Rosa Egipcíaca, que os deu no sentido de fazer um caminho em que o destino não fosse o cativeiro.

"Supomos que o local onde Rosa Egipcíaca foi encontrada morta, o dito cárcere da cozinha, devia ser uma dessas casinhas, devidamente gradeada e segura, anexa ou próxima à cozinha dos Estaus do Santo Ofício, onde eram alojadas talvez uma dezena ou mais de rés, julgadas por diferentes crimes, nomeadamente feitiçaria, judaísmo, bigamia, embustice, proposições heréticas, sendo algumas dessas mulheres empregadas na preparação da comida que era distribuída aos presos e oficiais de plantão nesse tribunal."

Estadão
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