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Quem foi Nair de Teffé, primeira-dama do Brasil e pioneira na caricatura mundial

Nair de Teffé quebrou moralismos na arte e combateu preconceitos com sua posição privilegiada.

12 mai 2021 - 13h49
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De família aristocrata, Nair de Teffé quebrou moralismos na arte e se tornou uma das primeiras caricaturistas do mundo. Na foto, posa para o pintor francês Giraud de Scevola
De família aristocrata, Nair de Teffé quebrou moralismos na arte e se tornou uma das primeiras caricaturistas do mundo. Na foto, posa para o pintor francês Giraud de Scevola
Foto: Reprodução/Arquivo Celso Unzelte / BBC News Brasil

Nair de Teffé era filha do Brasil Império e foi primeira-dama durante a Primeira República (1889-1930), mas viveu sob seu próprio tempo. Uma das primeiras caricaturistas mulher das quais se tem registro no mundo, combateu preconceitos com arte e com sua posição privilegiada.

Seu pai, o Barão de Teffé, era uma figura proeminente, graças ao seu posto de herói da Guerra do Paraguai (1864-1870). Nascida em 1886, em Petrópolis, no Rio de Janeiro, Nair foi educada na França, onde teve contato com diversas formas de expressão artística.

De volta ao Brasil, em 1906, Nair renasce como Rian, pseudônimo sob o qual publicou caricaturas de personagens da alta sociedade. A primeira delas foi a da artista francesa Réjane, na revista Fon-Fon!, em 1909.

Primeira caricatura publicada de Nair retrata a artista francesa Réjane, que passava uma temporada no Brasil
Primeira caricatura publicada de Nair retrata a artista francesa Réjane, que passava uma temporada no Brasil
Foto: Revista Fon-Fon!/Museu Histórico Nacional / BBC News Brasil

Isso tudo ainda antes de se tornar primeira-dama do Brasil, em 1913, ao casar-se com Hermes da Fonseca. No posto, escandalizou a classe política ao trazer música popular para o Palácio do Catete, antiga sede do governo federal no Rio de Janeiro.

"O que é mais incrível na Nair é a sua capacidade de subverter o que era esperado das mulheres", diz Camila Hildebrand Galetti, socióloga e pesquisadora da UnB (Universidade de Brasília) que estudou a vida de Teffé, em entrevista à BBC News Brasil. "Ela entendeu que podia utilizar as artes, ensinadas às garotas de elite como ela, para dizer o que pensava".

E como as rebeldias de Nair passavam incólumes?

Era uma "menina prodígio, fruto de uma família aristocrática, criada como princesa, a quem as excentricidades eram perdoadas e justificadas", escreve Natânia Nogueira, especialista em História do Brasil, pela UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora), em seu trabalho Rian: Caricatura e Pioneirismo Feminino no Brasil.

Mesmo quando assumiu posição oficial, Teffé foi capaz de dobrar as regras.

Antes do casamento, disse a Hermes da Fonseca: "olha, você é presidente da República. Isso é muito bonito e eu admiro muito, mas vou lhe pedir uma coisa: para não me impedir que eu faça arte", conforme contou em entrevista ao Museu de Imagem e Som, do Rio, em 1969.

"Ele disse: 'Absolutamente o contrário. Eu levarei a sua caixa de pintura. Farei tudo'".

Homens presos, mulheres livres

No começo, Nair de Teffé fez caricaturas para rir de seus desafetos: a primeira delas, aos nove anos, foi de Madame Carrier, uma senhora idosa que visitou a sua família — e de quem ela não era muito fã.

No Brasil, publicou em importantes revistas da época, como Binóculo, Careta, O Malho e Fon-Fon!. Também colaborou com publicações francesas. No entanto, nunca recebeu pelos seus trabalhos: o Barão permitia a colaboração com a imprensa, mas não que Nair ganhasse dinheiro.

O pai proibia também a maior paixão de Nair, o teatro, como ela mesma conta em seu livro de memórias, A verdade sobre a revolução de 22, publicado em 1975. Mesmo assim, em 1912, ela atuou em uma peça escrita especialmente para ela: Miss Love, de Coelho Neto. Nair também fundou sua própria trupe, a companhia Rian, que usava para obras sociais.

Também em 1912, teve sua primeira exposição: mais de 200 trabalhos foram exibidos na Rua do Ouvidor, uma das mais elegantes do Rio do começo do século, e conferidos por ninguém menos que o presidente Hermes da Fonseca.

Ainda cantava — inclusive em pontos boêmios da capital carioca do começo do século, como o Bar do Jeremias — e tocava diversos instrumentos. Conforme foi construindo sua fama de caricaturista, passou a ser temida nos salões de baile: a elite temia ser retratada por sua pena mordaz.

"O espírito perspicaz e criativo de Rian soube perfeitamente usar e abusar da noção completa de espelho: foi fiel na retratação da sociedade, mas com olhar crítico e criativo revelou seus tipos, suas damas, seus ideiais e gostos burgueses", escreve Maria de Fátima Hanaque Campos em Nair de Teffé: artista do lápis e do riso.

Durante a década de 1910, Rian publicou três séries de caricaturas na imprensa carioca. As primeiras delas, a Galeria das Elegâncias e a Galeria das Damas Aristocráticas, se dedicaram às mulheres. Com o exagero dos adereços da moda, por exemplo, Rian expunha a ostentação das elites.

As mulheres de Teffé tinham acessórios extravagantes, mas eram retratadas em movimento na vida social
As mulheres de Teffé tinham acessórios extravagantes, mas eram retratadas em movimento na vida social
Foto: Revista Fon-Fon!/Museu Histórico Nacional / BBC News Brasil

Já com a Galeria dos Smarts, voltada aos gentlemen, Nair não destaca apenas os vestuários, mas faz graça com traços da fisionomia dos políticos, artistas, militares e outros homens públicos que retratou.

Os homens de Nair: menos movimento e postura mais rígida
Os homens de Nair: menos movimento e postura mais rígida
Foto: Revista Fon-Fon!/Museu Histórico Nacional / BBC News Brasil

Segundo Hanaque, as mulheres sob a pena de Nair são ricas em expressão: "elas sentem, agem, modificam". "Quanto aos homens, ao contrário, são sérios e parecem presos a regras maiores". As personagens femininas mais livres, esboçaram movimento e faziam atividades, fogem do estereótipo da época.

Mais tarde, a artista continuaria a devotar sua atenção a políticos — principalmente aos adversários do marido. Depois de um hiato entre os anos 1920 e 1940, ela retoma sua produção nos anos 1950 a convite de Herman Lima, um crítico de arte.

É nessa época, que produz caricaturas de figuras como Juscelino Kubitscheck, presidente entre 1956 e 1961, Fidel Castro, líder da revolução cubana, e Carlos Lacerda, jornalista e político.

Algumas ilustrações do período fazem parte do acervo do Museu Nacional e foram lançadas online em parceria com o Google Arts no início de abril.

Caricatura de Juscelino Kubitscheck
Caricatura de Juscelino Kubitscheck
Foto: Reprodução/Museu Histórico Nacional / BBC News Brasil

Cura para a urucubaca

O noivado entre Nadir e Hermes da Fonseca teve pompa e circunstância, com os anúncios oficiais pedidos pelo posto do noivo, que tinha enviuvado em 1912. Além da polêmica sobre a diferença de idade, com o presidente de 58 anos desposando uma jovem de 27, esperava-se que a imagem da noiva, mais moderna, pudesse aliviar a do governante.

Apelidado de "Dudu da Urucubaca", Fonseca foi o mais satirizado da República Velha com sua fama de azarado.

A música Ai, Philomena, de de José Carvalho de Bulhões, mais famosa das marchinhas contra o presidente, dizia que "se Dudu sai a cavalo/o cavalo logo empaca".

E foi graças a um acidente de equitação que o presidente se aproximou de Nair. Depois de um encontro na estação de trem de Petrópolis, reduto de veraneio dos ricos da época, Fonseca convidou o Barão de Teffé para um passeio a cavalo.

"Saíamos (...) em companhia de papai, em direção ao bairro Caxambu, onde meu selim virou e eu caí de pé. Estava na frente do grupo, distanciada de todos", escreveu mais tarde Nair em suas memórias. O presidente se adiantou para ajudar a jovem e falar longe do grupo.

"Tive um sonho, mas acho quase impossível a sua realização. Não devo dizer-lhe.'", disse Hermes. "Emparelhamos os nossos cavalos e insisti para contar-me o sonho (...) E ele, encabulado, olhando para o chão, falou-me: 'Estou encantado com a beleza de mademoiselle. Queria fazê-la minha esposa'."

Teffé e Fonseca casaram-se em dezembro de 1913
Teffé e Fonseca casaram-se em dezembro de 1913
Foto: Reprodução/Arquivo Celso Unzelte / BBC News Brasil

Foi uma noite 'prafrentex'

Um violão, uma música nova e uma primeira-dama: essa foi a receita para a noite do Corta-Jaca, escândalo que marcou a estadia de Nair de Teffé na residência presidencial.

Entre suas atribuições oficiais, estava cuidar da vida social do casal. "Ao abrir os salões do Palácio do Catete para receber os nossos amigos e parentes, abri-o como se fosse a sala de visitas da nossa casa, gastando o mínimo possível", escreveu ela. Isso incluiu trocar as músicas europeias por ritmos populares que nasciam no Brasil.

O primeiro dos marcantes saraus organizados por Teffé contou com a presença de Catulo da Paixão Cearense, considerado um dos maiores compositores da história da MPB. O segundo e mais famoso teve em sua programação a apresentação da canção Corta-Jaca, de outra pioneira, Chiquinha Gonzaga, a primeira mulher a reger uma orquestra no país.

"Não havia partitura para piano e violão nas músicas de nossos compositores daquela época. Catulo falou com Chiquinha Gonzaga (...) que compôs especialmente para mim o famoso 'Corta-Jaca', com partitura para violão e piano", relembrou Nair sobre o episódio.

Naquela época, o violão era um instrumento popular, associado à vadiagem e que passava longe das festas da elite. O maxixe, ritmo do Corta-Jaca, também conhecido como tango brasileiro, recebeu influências das músicas africanas, trazidas pelos escravizados até 1888 no país.

"Lancei o Corta-Jaca entre aplausos alegres dos convidados. Foi uma noite 'prafrentex'! No dia seguinte, foi aquele Deus nos acuda… ", escreveu Nair de Teffé sobre a ocasião. Em 11 de novembro de 1914, a noitada no Catete foi imortalizada nos anais do Senado com as palavras de Rui Barbosa, que fazia oposição a Hermes da Fonseca.

"Uma das folhas de ontem estampou em fac-símile o programa da recepção presidencial em que diante do corpo diplomático da mais fina sociedade do Rio de Janeiro, aqueles que deviam dar ao país o exemplo das maneiras mais distintas e dos costumes mais reservados elevaram o Corta-Jaca à altura de uma instituição social", discursou Barbosa.

"Mas o Corta-Jaca de que eu ouvira falar há muito tempo, quem vem a ser ele, Sr. Presidente? A mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens, a irmã gêmea do batuque, do cateretê e do samba. Mas nas recepções presidenciais ele é executado com todas as honras da música de Wagner e não sequer que a consciência desse país se revolte, que nossas faces se enrubesçam e que a mocidade se ria".

A resposta de Nair a Rui? Uma caricatura do político e, mais tarde, em suas memórias, ela disse que "as pedras que ele me atirou não me atingiram. Elas (...) só serviram para assinalar a luta que enfrentei contra os preconceitos de então".

Rui Barbosa sob o traço de Teffé: o chapéu estendido em pedido
Rui Barbosa sob o traço de Teffé: o chapéu estendido em pedido
Foto: Reprodução/ Museu Histórico Nacional / BBC News Brasil

Legado

Com o fim do mandato de Hermes da Fonseca em 1914, o casal deixa o Palácio do Catete e passa uma temporada na Europa. De volta ao Brasil em 1920, Arthur Bernardes, Nilo Peçanha e Rui Barbosa buscam o apoio do ex-presidente para as eleições.

Hermes se envolve na revolta do Forte de Copacabana, em 1922, primeiro movimento tenentista na República Velha. Após ser avisado por um amigo que seria preso, ele resolveu partir -- mas não o fez a tempo, e foi detido por ordem do presidente Epitácio Pessoa. Na saída da prisão, adoeceu e faleceu no mesmo ano.

No mesmo ano, Nair participou da Semana de Arte Moderna de 1922, mas, depois de viúva, se mudou para Petrópolis, participando ativamente da vida cultural e política da cidade. Até o fim da vida, envolveu-se nas manifestações de 8 de Março.

Adotou três crianças, e faleceu em 1981, aos 95 anos.

Nas caricaturas, charges e quadrinhos, as mulheres continuam minoria, mas Teffé abriu caminho para outras pioneiras, como Hilde Weber, que se dedicou à charge política na década de 1930.

"A onda neoconservadora que vivemos agora bebe do período no qual Nair estava inserida, do positivismo ortodoxo, e prega o retorno da mulher à esfera do lar", diz a socióloga Camila Hildebrand Galetti. "O que Nair nos ensina, e que vale para os dias de hoje, é multiplicar as estratégias de luta".

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