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'Linguicídio'? Holanda, o país que está 'expulsando' sua própria língua das universidades

Disseminação do inglês nas instituições de ensino superior do país preocupa grupos de acadêmicos.

2 nov 2018 - 05h36
(atualizado às 05h45)
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Em diversas universidades da Holanda, praticamente nenhum curso é ministrado em holandês nos níveis mais avançados de ensino
Em diversas universidades da Holanda, praticamente nenhum curso é ministrado em holandês nos níveis mais avançados de ensino
Foto: Utrecht university / BBC News Brasil

Os estudantes tiram o casaco e o cachecol enquanto o professor abre uma apresentação em power point e se prepara para começar a aula - inteiramente em inglês.

A língua é uma escolha da universidade, diz o professor Frank van Rijnsoever, da Universidade de Utrecht, na Holanda.

A disseminação do inglês é tão abrangente nas universidades holandesas que um grupo de professores prevê um "linguicídio" iminente e pede ao governo que institua uma medida que proíba as universidades de criar cursos adicionais em inglês até que seja realizada uma análise oficial de impacto.

Sessenta por cento dos programas de mestrado oferecidos na Universidade de Utrecht são em inglês. Nos níveis mais avançados de ensino, praticamente nenhum curso é ministrado em holandês.

Assistir a todas as aulas em inglês é um desafio para alguns dos alunos holandeses da Universidade de Utrecht
Assistir a todas as aulas em inglês é um desafio para alguns dos alunos holandeses da Universidade de Utrecht
Foto: Utrecht university/Maarten Nauw / BBC News Brasil

"Não me importo. A maior parte da literatura é em inglês", diz Van Rijnsoever.

"Então, para mim, como professor, não é um grande problema, porque também fazemos pesquisas em inglês. Para os alunos, você vê que eles precisam atravessar uma certa barreira para se expressar adequadamente".

A Holanda tem um dos mais altos níveis de proficiência em inglês do mundo entre os países que não são nativos na língua, perdendo apenas para a Suécia, de acordo com o mais recente Índice de Proficiência em Inglês da EF.

"É algo que aprendi ao longo dos anos, principalmente ao fazer meu doutorado em inglês acadêmico", explica o professor.

Para Oskar van Megen, que se formou em desenvolvimento sustentável, fez sentido escolher um mestrado com orientação internacional em inglês, uma vez que o tema ultrapassava as fronteiras da Holanda.

"Tive uma certa desvantagem. Demorei muito mais tempo para entender e me concentrar nas aulas, para interpretar os textos e escrever meus próprios artigos", pondera.

Oskar van Megen está satisfeito de ter feito mestrado em inglês, mas encontrar trabalho na Holanda tem sido difícil
Oskar van Megen está satisfeito de ter feito mestrado em inglês, mas encontrar trabalho na Holanda tem sido difícil
Foto: BBC News Brasil

Mas, apesar de se sentir qualificado para uma carreira internacional, ele tem encontrado dificuldade para encontrar trabalho na Holanda.

'Ou você usa, ou perde'

A Universidade de Utrecht não está sozinha.

Algumas universidades holandesas aboliram completamente a língua holandesa do campus. Em Eindhoven, até o nome dos sanduíches na cantina está em inglês - no cardápio lê-se, por exemplo, "cheese" (queijo, em inglês), em vez da palavra holandesa "kaas".

E nem todo mundo está feliz com o crescente anglicismo na universidade.

"A nossa identidade é holandesa", queixa-se Annette de Groot, professora de linguística da Universidade de Amsterdã.

"O que acontece com a identidade de um povo de um país onde a língua nativa não é mais a principal língua do ensino superior?"

"Os holandeses não são tão bons em inglês quanto pensam. Não se deve usar uma língua mais fraca na Educação."

A professora Annette de Groot teme uma deterioração da língua holandesa
A professora Annette de Groot teme uma deterioração da língua holandesa
Foto: BBC News Brasil

"Se você usar o inglês no ensino superior, o holandês vai acabar piorando. Ou você usa, ou perde. O holandês vai se deteriorar e a vitalidade do idioma vai desaparecer. É o chamado bilinguismo desequilibrado. Você acrescenta um pouco de inglês e perde um pouco de holandês."

Embora o inglês possa facilitar a entrada dos estudantes no mercado de trabalho global, muitos acreditam que a sua primazia pode "expulsá-los" de sua terra natal.

E a discussão política em torno do tema está ganhando força, à medida que mais cidadãos do Reino Unido estão se mudando para a Holanda, já que suas empresas desejam permanecer na União Europeia (UE) após o Brexit (decisão do Reino Unido de deixar a UE).

Para De Groot, chegou a hora de fazer um debate honesto.

"Estamos nos deslocando para uma visão de mundo cada vez mais anglo-saxônica. As universidades querem diversidade, perspectivas diferentes. O que você ganha é exatamente o oposto. O anglicismo significa que você acaba tendo um mundo muito mais homogêneo."

A ironia, na opinião dela, é que as universidades holandesas estão apenas competindo por estudantes em uma tentativa de sobreviver.

O campus da Universidade de Utrecht oferece mais de 80 programas de mestrado em inglês
O campus da Universidade de Utrecht oferece mais de 80 programas de mestrado em inglês
Foto: BBC News Brasil

O reitor da Universidade de Utrecht, Henk Kummeling, argumenta que a mudança para o inglês foi um processo orgânico, mas reconhece que, ao competir internacionalmente, faz sentido usar uma língua universal.

"Não é que estamos fazendo publicidade para estudantes internacionais", ele me conta em seu escritório, com vista para o campus cheio de bicicletas.

"A cultura holandesa permanecerá por séculos. Quando falamos entre nós, falamos holandês."

Oskar concorda, dizendo que gosta de fazer amizades com estudantes do Reino Unido, Irlanda e Itália.

"Pessoalmente, não tenho nenhum problema em não falar holandês ou com a cultura holandesa, o que talvez esteja desaparecendo um pouco".

Mas ele diz que precisa haver um limite e afirma que a Universidade de Groningen, no norte, tem recebido estudantes internacionais demais.

"Há tantos que eles precisam armar tendas só para que os alunos possam ter um teto sobre suas cabeças", ressalta.

Segundo ele, o perigo é que as universidades estejam tentando ganhar visibilidade internacional de olho no lucro que os estudantes estrangeiros podem gerar e que acabem fazendo concessões que podem ser prejudiciais no longo prazo.

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