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Mulheres marcam registros de ruas nas periferias de BH

Em busca dos nomes femininos que presente em ruas e bairros de Belo Horizonte, reportagem encontra histórias de lutas

28 jan 2022 - 08h00
(atualizado em 4/2/2022 às 14h36)
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Rua Izidora, na ocupação Esperança
Rua Izidora, na ocupação Esperança
Foto: Isabelle Chagas/ANF

Quem percorre o mapa de Belo Horizonte encontra poucos vestígios das mulheres que fizeram e ainda fazem parte de sua história. Das 12.507 ruas que costuram esse tecido urbano, apenas 17% têm nomes femininos, segundo levantamento da Gênero e Número, de 2017, realizado a partir da base de logradouros dos Correios – a média nacional é de 20%. Dentro dos limites da Avenida do Contorno, que demarca a região central e o desenho original da cidade planejada, há apenas duas: Bárbara Eliodora e Marília de Dirceu. E uma delas precisa carregar a contradição de ser a personagem criada por um poeta, o mineiro Tomás Antônio Gonzaga.

Os bairros não fogem à regra. Segundo levantamento próprio desta reportagem, 82 dentro de um universo de 487 marcam a presença de figuras históricas femininas, representando 16,7%. Destas, pelo menos 24 fazem menção direta a referências católicas. Mas um curioso contraste salta aos olhos, na contramão do apagamento.

Enquanto a regional Centro-Sul presta homenagem às mais diferentes santas no batismo de seus bairros, é na Norte onde o nome de mulheres “comuns” se impõe, tornando-a a unidade administrativa da cidade com o maior número desses registros: Clóris, Etelvina Carneiro, Jaqueline, Juliana, Maria Teresa, Mariquinhas, Marize, Zilah Sposito. A estes, somam-se as ocupações urbanas que, nas últimas duas décadas, vêm imprimindo suas lutas protagonizadas por mulheres no registro institucional da capital. Helena Greco, Rosa Leão, Esperança, Vitória e Izidora são alguns destes nomes, cujas histórias inspiraram nossa busca.

UM LEGADO DE LUTA E MILITÂNCIA

No extremo norte da cidade, o bairro Zilah Spósito homenageia uma personagem pouco conhecida da família Figueiredo Souza, eternizada no nome de seus “três irmãos de sangue”, o sociólogo Betinho, o cartunista Henfil e o músico Chico Mário. “Antigamente, aqui se chamava Jaqueline A. Após a morte da Zilah, as moradoras correram atrás para rebatizar o bairro, que é marcado pela construção de conjuntos habitacionais para famílias removidas de todos os cantos da cidade”, relembra Josimar das Dores Coelho, a Josy. Dos seus 43 anos recém-completados, mais de trinta foram vividos na região.

Foto de Zilah Sposito no Centro Cultural que leva seu nome
Foto de Zilah Sposito no Centro Cultural que leva seu nome
Foto: Isabelle Chagas/ANF

É com orgulho que Josy conta dos muitos momentos, na infância, em que presenciou Zilah atuando com sua mãe, Maria das Dores de Souza Coelho, que foi uma das lideranças comunitárias pioneiras do bairro. “Ela sempre esteve na linha de frente da luta pela moradia com a gente”, explica. Apesar dos poucos registros, sabe-se que Zilah Souza Spósito nasceu em Bocaiuva, em 1928, e inspirou os irmãos na militância pelas lutas sociais. Ajudou a fundar a Ação Católica, e trabalhou na Receita Federal até pouco antes de falecer, aos 64 anos. Algumas de suas cartas enviadas para Betinho durante o período em que ele esteve no exílio, disponibilizadas pelo acervo da Fundação Getúlio Vargas, demonstram a preocupação que tinha com a democracia e os rumos do país na época, como a ligação com o Movimento Feminino pela Anistia em Belo Horizonte.

Outra figura importante do ativismo pelos direitos humanos e contra a ditadura militar na capital foi Helena Greco, e que é homenageada pela ocupação liderada por Josy há mais de uma década. “A gente estava preocupada com a questão do nome, foi quando conhecemos a Bizoca [Heloiza Greco], filha da Dona Helena, que veio nos ajudar no despejo ilegal realizado pela polícia, em 2009. Ela, então, contou a história da mãe, que eu já conhecia um pouco, e fez a sugestão. É um privilégio tê-la em nossa comunidade dessa forma”, conta Josy.

Natural de Abaeté, Helena Greco foi uma das fundadoras do Partido dos Trabalhadores, responsável pela criação da primeira Comissão Permanente de Direitos Humanos da Câmara de Belo Horizonte em seu exercício como vereadora, além de ter idealizado e participado de diversas frentes, como Movimento Tortura Nunca Mais e o Movimento Feminino pela Anistia em Minas Gerais. O Instituto Helena Greco de Direitos Humanos e Cidadania é responsável por conservar um importante acervo dessa história.

Ao contrário da maioria dos “batismos”, que destacam a trajetória de pessoas já falecidas (conforme prevê a Lei nº 6.454/1977, que dispõe sobre a denominação de logradouros, obras serviços e monumentos públicos, e dá outras providências), Helena Greco recebeu a sua homenagem dois anos antes de sua morte, que aconteceu em 2011, aos 95 anos.

NOMEAR É TAMBÉM NÃO ESQUECER

Entre tantos nomes que fortalecem a sua caminhada e de suas companheiras de luta do presente, e que faz questão de nomear uma por uma (Elizabeth, Andressa, Juliana, Cristiane, Cíntia e Franciele), Josy não deixa de lembrar o de Rosa de Jesus Leão. Importante liderança comunitária do Conjunto Ubirajara, onde chegou após ser despejada da ocupação Sarandi, nos anos 1990, Rosa integrava com bravura o que chamam de “linha de frente das lutas” do bairro Zilah. Mesmo depois de conquistar a casa própria, continuou auxiliando outras pessoas pobres na cidade que ainda não tinham um teto garantido até os seus últimos dias de vida, encerrada por um tiro no rosto, aos 50 anos.

Em 2013, dez anos após o violento episódio que marcou a trajetória de toda a comunidade, surge a ocupação Rosa Leão, que dá início ao povoamento da região da Izidora, da qual também integram as ocupações Vitória e Esperança. Por conta da proximidade territorial, Helena Greco passou a fazer parte do vasto território que, apesar da falta de reconhecimento da administração pública municipal, funciona como um verdadeiro bairro, tanto pela sua extensão, quanto organização.

A região da Izidora, inclusive, até ter sua história pesquisada mais a fundo e recontada, era reconhecida pela variação masculina. “Com o tempo, a gente descobriu que Izidoro, como antes as pessoas chamavam, era, na verdade, uma mulher, que lavava roupa nesse Ribeirão e tinha o sonho de um dia ter uma casa, conquistar a dignidade para a vida dela, como a gente”, conta Edna Gonçalves, conhecida como Edna da Izidora, liderança comunitária da ocupação Esperança.

Edna da Izidora em frente à ocupação Esperança, onde é liderança comunitária
Edna da Izidora em frente à ocupação Esperança, onde é liderança comunitária
Foto: Isabelle Chagas/ANF

PASSOS QUE VÊM DE LONGE

Ao refletir sobre a sua própria trajetória enquanto liderança comunitária, dando continuidade ao legado de tantas mulheres, Josy retoma o que aprendeu com a mãe, Maria das Dores de Souza Coelho. “Eu falo que eu tenho sangue de liderança. Aqui onde estamos, o Centro Cultural Zilah Spósito, foi conquistado pela minha mãe e outras lideranças antigas, que precisavam de um espaço para distribuir o sopão. Quando elas descobriram que era um terreno público, chegaram com a lona, depois ergueram os madeirites, até que a prefeitura construiu um instrumento público para atender a comunidade”, conta.

Assim como Maria das Dores, Josy conta que não consegue ser mãe apenas dos seus cinco filhos. Diante das demandas por serviços essenciais ainda não garantidos à ocupação Helena Greco, como saneamento básico e energia elétrica, ela cumpre dupla jornada ao sair do trabalho, preenchendo cadastros, visitando moradias em risco e auxiliando as outras moradoras no que é preciso. “Eu sou um pouco de tudo, psicóloga, amiga, assistente social”, brinca.

Josy, liderança da ocupação Helena Greco, avista sua casa ao fundo
Josy, liderança da ocupação Helena Greco, avista sua casa ao fundo
Foto: Isabelle Chagas/ANF

“Eu carrego o nome da comunidade no meu com muito orgulho”, conta Luciana da Cruz, de 36 anos, conhecida como Luhh Dandara. Mulher preta, mãe solo, estudante de pedagogia e agente de ação social em uma unidade de acolhimento transitório, ela chegou na ocupação em seus primeiros meses de existência, ainda em 2009. De lá para cá, participou ativamente de todas as frentes para garantir o direito à moradia digna para as mais de cinco mil famílias que compõem a vizinhança.

Dessa intensa participação, Luhh passou a atuar em diversas frentes, e hoje desenvolve projetos como diretora executiva no Instituto de Assessoria a Mulheres e Inovação (Iamí), agente local do projeto Arquitetura na Periferia, que capacita mulheres para a independência de reformar e construir a própria casa, é co-fundadora do cursinho Pré-Enem Dandara e idealizadora do espaço e movimento Aura da Luta, que é um coletivo de mulheres ajudando mulheres.

“A ocupação Dandara foi pensada para acolher as mulheres, principalmente as mães solo, que são, de fato, as que estão à frente da luta por moradia. E nada mais justo que a comunidade receber o nome de uma mulher que preferiu morrer a ter que voltar à escravidão”, conta Luhh Dandara. “A gente não lutava só pela nossa casa, mas para toda a comunidade. Você precisa ter muita força para fazer de forma coletiva, e a ocupação ter esse nome ensinou a gente a ser um pouco Dandara na vida”, complementa.

Dandara é exibido com orgulho em todos os cantos da ocupação. Além de dar nome à Avenida principal, estampa placas de supermercados, pizzarias, açougues, padarias, entre outros estabelecimentos comerciais. Ao circular pelas inúmeras quadras planejadas, também encontramos referências a outras importantes figuras históricas, como nas ruas Maria Diarista, Zilda Arns, Irmã Dorothy Stang e Beatriz e Estefany.

Luhh Dandara em frente à praça organizada pelos moradores
Luhh Dandara em frente à praça organizada pelos moradores
Foto: Isabelle Chagas/ANF
ANF
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