Como mergulho na 'mente radical' é usado no combate ao avanço do extremismo
Iniciativas como a Exit Noruega tentam explorar as razões psicológicas que levam as pessoas a se juntarem a grupos neonazistas e fascistas em vez de confrontar a ideologia por trás dessas organizações - abordagem que já surtiu efeito na luta contra outras formas de extremismo, como o terrorismo islâmico.
O medo em relação ao avanço da extrema-direita e de organizações neonazistas e fascistas tem aumentado nos últimos anos.
Acontecimentos como a marcha defendendo a supremacia branca em Charlottesville, nos Estados Unidos, em 2017, as manifestações de rua de neonazistas em Chemnitz, na Alemanha, em 2018, e o ataque terrorista em Christchurch (Nova Zelândia) neste ano levaram muitos a se questionar: o que podemos fazer para interromper o avanço dessas ideologias extremistas?
Um pequeno número de organizações está ganhando terreno nessa área explorando as causas sociais e as razões psicológicas que levam algumas pessoas a se engajarem em grupos extremistas.
É assim que opera, por exemplo, a Exit Noruega.
Estabelecida em 1997 por dois pesquisadores da Faculdade da Academia de Polícia Norueguesa, a organização tem três objetivos principais: estabelecer redes locais para apoiar os pais de crianças integradas a grupos racistas ou violentos, capacitar jovens para que consigam se desligar desses grupos e desenvolver e disseminar conhecimento metodológico para profissionais que trabalham com jovens associados a grupos violentos.
A Exit trabalha apenas com aqueles que já estão motivados a deixar os grupos radicais. A maioria faz inclusive o primeiro contato com a organização para iniciar o processo.
Todo o processo é confidencial, normalmente conduzido por antigos integrantes de organizações de extrema-direita - que podem atuar como referência para os novos voluntários -, e está baseado no não-confrontamento.
A metodologia pode parecer contraintuitiva, mas ela se aproxima a evidências encontradas em estudos relacionados a outras formas de extremismo, incluindo o terrorismo islâmico - e já se espalhou por outros países da Europa.
"A base para todo o nosso trabalho é a iniciativa voluntária. As pessoas têm que vir até nós, elas têm que nos telefonar ou nos enviar um e-mail ou algo assim, e nós precisamos verificar o quão motivada a pessoa está", diz Fabian Wichmann, da Exit Alemanha.
"Não é suficiente que eles estejam buscando apenas uma forma de esconder o passado - eles precisam demonstrar remorso e dedicação para mudar de rumo."
Depois das entrevistas iniciais, a Exit tenta identificar como pode ajudar os voluntários a deixar os grupos dos quais viraram membros.
A ideia é vencer gradativamente uma série de barreiras - sociais, psicológicas, emocionais e legais - que geralmente se interpõem até que alguém abandone uma determinada organização.
Ideologias tóxicas
Ao contrário do que se poderia imaginar, o processo de reabilitação não começa com um questionamento à ideologia extremista em si.
Em seu livro Healing from Hate (Cura do Ódio), Michael Kimmel estuda, entre outras, duas iniciativas da Exit - na Suécia e na Alemanha. Ele argumenta que, ao contrário do que se pressupõe inicialmente, a ideologia não é um fator importante para muitos dos jovens que entram em organizações de extrema-direita.
Ele conta que teve dificuldades em conseguir que os participantes ao menos explicassem a ideologia dos grupos de que faziam parte. Muitos preferiam falar sobre a importância de ser "parte de alguma coisa, parte de um grupo".
Kimmel reconhece que a estratégia tem críticos, que argumentam que se concentrar em motivações não-ideológicas para que as pessoas se envolvam com o extremismo permite que elas não assumam a responsabilidade por suas visões e comportamentos, sejam do passado ou do presente.
Mas, se o objetivo é tirar essas pessoas de organizações violentas, diz ele, precisamos ser pragmáticos na estratégia e entender as experiências de integrantes desses grupos para que possamos motivá-los a sair.
Ex-membro de um grupo de extrema-direita, Robert Orell trabalha para a Exit Suécia e passou os últimos anos viajando pela Europa e pelo mundo para promover o modelo e ajudar a construir organizações semelhantes em diferentes países.
Ele cresceu no centro de Estocolmo, em um bairro de classe média, e conta que, na adolescência, com a autoestima em baixa, começou a se envolver em brigas e conflitos com gangues do subúrbio, um processo que culminou com sua entrada em uma organização violenta de direita.
O grupo, para ele, explorou de forma bem-sucedida os sentimentos de isolamento que tinha quando era adolescente.
Orell descreve esses sentimentos como "a mentalidade do extremista", que inclui três elementos diferentes.
Primeiro, existe a promoção do tipo de pensamento "preto ou branco". Orell diz que os grupos trabalham de forma a definir uma oposição entre "nós" e "eles" ou "bom" contra "mau".
Nesse caso, o "nós" são as pessoas brancas, e "eles" são qualquer pessoas de pele escura, imigrantes ou judeus.
Isso está ligado ao segundo elemento: um sentimento de superioridade. Ele afirma que grupos extremistas se apresentam como sendo superiores a outros indivíduos ou grupos, primeiramente como uma maneira de permitir que seus integrantes recuperem a autoestima, mas também para que desenvolvam um senso de poder, pertencimento e comunidade.
E, finalmente, grupos extremistas promovem um processo de desumanização. Eles dão aos grupos que se opõem a eles características animalescas (como rotular imigrantes de um "enxame de ratos"). Isso reforça a mentalidade "nós" contra "eles" e também legitima ações violentas.
O sueco pontua que a principal consequência da mentalidade extremista é a criação de um forte senso de pertencimento.
"Nesses grupos você tem um senso bastante forte de propósito e causa. Eu acho que isso vale para uma variedade de grupos, sejam grupos de supremacia branca ou de fundamentalismo islâmico violento ou gangues", destaca.
"O que eu vejo valer para muitas pessoas, essencialmente, é ter feito parte de um grupo onde você tem esse compromisso bastante forte, você sente que tem 'irmãos' que estão dispostos a sacrificar suas vidas por você. Você tem uma causa que é tão importante que está disposto a arriscar a vida por ela. Juntos, esses mecanismos constroem um senso bastante forte de 'nós'".
Então, o que fez com que ele deixasse o grupo? Orell afirma que começou a ver a hipocrisia nos padrões do grupo - o que incluía uma cultura de bebidas, festas e uso de esteroides, apesar de supostamente celebrarem a disciplina.
O distanciamento aumentou quando ele entrou para as Forças Armadas, o que o ajudou a ter a disciplina e o senso de propósito sem a ideologia tóxica. E a distância física - de estar longe dos seus antigos conhecidos por períodos longos - o ajudou a fazer o rompimento.
"As Forças Armadas me deram um senso de competência e autoestima que eu não tinha antes, o que eu vejo que claramente reduziu minha necessidade de me sentir superior, de desumanizar outras pessoas e de ter o poder e o controle que o envolvimento com o movimento me dava", diz ele hoje.
"Ao me abrir cognitiva e emocionalmente, eu comecei a ser menos intolerante e tive diferentes experiências com as pessoas que antes eu odiava."
A história de Orell se encaixa na pesquisa acadêmica sobre as razões que levam as pessoas a abandonar organizações de extrema-direita. Em seu livro Violência Racista e de Extrema-direita na Escandinávia, Tore Bjorgo argumenta que existe uma série de fatores de rejeição e de atração que podem levar pessoas a deixar grupos extremistas.
Fatores de rejeição geralmente incluem uma perda de fé na ideologia da organização, desilusão com a estratégia ou a liderança do grupo e a participação na entidade, enquanto fatores de atração - elementos externos que puxam o integrante de dentro da organização - podem incluir relações íntimas, emprego ou a prisão.
O arco de engajamento
Os pesquisadores John Horgan e Mary Beth Altier escreveram na revista acadêmica Behavioral Sciences of Terrorism and Political Agression (Ciências Comportamentais de Terrorismo e Agressão Política) descrevendo conclusões parecidas.
Eles argumentam que existe uma trajetória - ou um arco - pela qual a maioria das pessoas passa em seu envolvimento com o extremismo violento. Esse arco contém três fases - envolvimento, engajamento e desengajamento. É impossível entender como desengajar pessoas sem primeiro entender os fatores que os levam a se envolver e se engajar inicialmente.
Sarah (nome fictício), uma ex-integrante da uma organização de extrema-direita dos Estados Unidos, explicou a Horgan e seus colegas que seus pais eram extremamente religiosos, mas, ao mesmo tempo tinham um estilo de vida bastante indisciplinado, ambos alcoólatras.
Ela tinha uma relação turbulenta com seu pai, o que a levou, ao menos em parte, a desenvolver em uma série de comportamentos antissociais desde muito jovem.
Adolescente, ela começou a desenvolver um interesse sexual por outras meninas, o que a levou a se distanciar ainda mais de sua família.
Os sentimentos de confusão, raiva e preconceito aproximou-a, no ensino médio, de um grupo de "skinheads".
O processo de Sarah para deixar o grupo foi tanto físico como psicológico. Começou quando ela foi presa por participação em um roubo, o que criou uma distância física de seus antigos amigos.
Ela então tornou-se psicologicamente desengajada quando ficou amiga de mulheres hispânicas e afro-americanas na cadeia, um processo que a levou a questionar suas crenças anteriores. Orell, referindo-se a suas próprias experiências, descreve isso como um "ato inesperado de bondade".
Esses são atos de bondade de pessoas que antes eram vistas como inimigas, atos que podem ajudar as pessoas a encontrar motivação para repensar suas crenças e ações.
Qualquer que seja o gatilho inicial para o processo de abandono de um grupo radical, pesquisadores dizem que é necessária uma distância tanto física quanto psicológica, para remover a pessoa não apenas da ideologia - mas também de todas as outras motivações que a levaram a entrar para o grupo.
Uma trajetória semelhante também pode ser vista em integrantes de outros grupos extremistas, como islamistas radicais.
Em seu livro Jihad and Death (Jihad e Morte), por exemplo, Oliver Roy argumenta que jihadistas modernos, em particular aqueles que participaram de ataques terroristas na Europa, são inicialmente menos motivados por uma ideologia de um islã radical do que por um senso de niilismo: um mal-estar formado a partir do isolamento social, da fantasia e da rebeldia.
Uma saída?
É por todas essas razões que organizações como a Exit preferem examinar as motivações a confrontar diretamente a ideologia.
"Vemos que esse confronto, de entrar em um debate ou apresentar argumentos (sobre a ideologia), raramente leva a alguma mudança, na verdade é o contrário - isso fortalece a necessidade de justificar, explicar e enfrentar as ideias do grupo, o que leva ao oposto do que nós desejamos", diz Orell.
Em vez disso, eles encorajam os voluntários a "pensar sobre e entender como eles se envolveram no movimento, como isso afetou e influenciou suas formas de pensar e raciocinar e como o movimento os ajudou a interpretar tudo que eles viveram por meio de lentes ideológicas, que com o tempo tornaram-se as únicas lentes com as quais viam o mundo".
Em segundo lugar, trabalham para construir novas experiências, especialmente na esfera social. "Isso nos ajuda a criar novas percepções de como se relacionar com o mundo, com diferentes fontes de informação, com outras pessoas e com nós mesmos, vividas por meio de experiências e interpretações de acontecimentos. Dessa forma, nós criamos mais nuances e menos distância, o que reduz a necessidade por ideias extremistas violentas e torna essa necessidade menos atraente."
Por meio do engajamento com grupos como os Exit, nós também podemos aprender outras coisas importantes sobre o extremismo de direita. Em particular, tanto Wichmann como Orell nos alertam a não superestimar a ascensão da extrema-direita violenta nos últimos anos.
Apesar dos acontecimentos de destaque recentes, ambos argumentam que esses grupos não estão, na verdade, aumentando em termos de números de integrantes. Isso não quer dizer que se concentrar nessas organizações não é importante, mas nós não devemos interpretar a cobertura desses acontecimentos pela mídia como um sinal de aumento de participação.
Enquanto lidamos com a realidade das organizações extremistas e violentas de direita, uma coisa que podemos aprender é a necessidade de realmente tentar entender as motivações que levam alguém a se juntar a elas.
Não se trata de minimizar o horror de suas crenças, mas de perceber que reconhecer os fatores complexos por trás de seus comportamentos parece ser a melhor forma de evitar que mais gente siga o mesmo caminho.
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Future.