Eventos climáticos extremos desafiam infraestrutura brasileira
Multiplicação de ciclones extratropicais, apagões e prejuízos bilionários expõem a vulnerabilidade da infraestrutura brasileira diante da escalada de eventos climáticos extremos.Quando os radares da Defesa Civil captaram a possibilidade de temporal sobre Santa Catarina na última semana, o governo do estado tomou uma decisão drástica: suspender as aulas. Foi a primeira vez que mais de 520 mil alunos de escolas estaduais foram orientados a ficar em casa naquele 9 de dezembro como medida de prevenção a desastres. Estudantes da rede municipal em diversas cidades e universidades também cancelaram as atividades.
A chuva e os ventos fortes eram trazidos por um ciclone extratropical que já ganhava o selo de atípico. Ele se formou no Paraguai, atravessou o Rio Grande do Sul e se intensificou na costa entre esse estado e Santa Catarina, detalha Marcelo Seluchi, do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). Uma família, incluindo um bebê de cinco meses, morreu dentro de um carro arrastado pela correnteza na Grande Florianópolis.
Um dia depois, as mesmas rajadas sopraram na cidade de São Paulo. Os ventos chegaram a 100 quilômetros por hora, afetaram transformadores de energia, cancelaram voos, derrubaram placas de trânsito e paralisaram a vida em pelo menos dois milhões de imóveis. Alguns deles, uma semana depois, ainda estavam sem eletricidade.
A contagem dos prejuízos está em andamento. A estimativa mais recente da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP) calcula perdas de pelo menos R$ 2,1 bilhões no comércio e no setor de serviços.
Um mês antes, outro ciclone extratropical formado sobre o Sul do país foi o estopim para uma calamidade no Paraná. Nuvens pesadas ajudaram a formar três tornados que atingiram 11 cidades e arremessaram carros, derrubaram prédios, tombaram caminhões. O fenômeno destruiu 80% de Rio Bonito do Iguaçu e deixou seus 14 mil moradores em choque.
"Nós não estamos preparados para isso. Nós não estamos adaptados para enfrentar esses eventos climáticos extremos", avalia José Marengo, coordenador-geral de pesquisa do Cemaden, em entrevista à DW.
Não raros, mas fortes
Os ciclones extratropicais são um fenômeno conhecido na meteorologia. Na América do Sul, eles se formam próximo ao Sul do Brasil até o sul da Argentina e precisam de um ingrediente-chave: o calor que vem do Equador encontrando o frio que sai do polo.
O Instituto Nacional de Meteorologia, Inmet, não tem um banco de dados que contabilize os ciclones extratropicais ocorridos no Brasil, informou o órgão à DW. Mas a pesquisa feita por Rosmeri Porfírio da Rocha, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas, IAG, da Universidade de São Paulo (USP), revela que de três a quatro ciclones se formam nesta região, em média, por mês e "saem" para o Atlântico.
Os ciclones, explica a cientista, têm um papel fundamental de auxiliar no transporte de calor do Equador para o polo e do frio no caminho contrário. "E quando fazem isso, geram ação, rotação, formam nuvem, tempestade, a pressão muda muito no espaço, os ventos se aceleram", cita Rocha.
A diferença do caso mais recente foi que ele se intensificou dentro do continente - e não no mar, como costuma ser. No monitoramento feito por Seluchi, o sistema chegou a 2 mil quilômetros de extensão e gerou efeitos desde a Argentina até o Rio de Janeiro.
Em Florianópolis, estado exposto a este evento climático por sua posição geográfica, Regina Rodrigues vivenciou três ciclones em 2025 no quintal de sua casa. Professora na Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC, ela é uma das brasileiras de um grupo internacional que investiga a conexão de eventos climáticos extremos com as mudanças climáticas.
"A força motriz dos ciclones é a diferença de temperatura. Quanto maior for esta diferença, mais violento ele fica. Está ficando pior porque a parte subtropical e tropical do Brasil está ficando mais quente", afirma Rodrigues à DW.
No estado onde vive, considerado uma zona de "encontros" dessas massas, os ventos chegaram a 109 km/h na semana passada. Sem energia elétrica e internet em casa, Rodrigues viu pela janela telhados e toldos voando.
Uma conta cada vez mais cara
O despreparo para enfrentar ciclones mais fortes e outros eventos climáticos extremos é visível até na metrópole mais rica do país. Para moradores, comércios e indústrias na Grande São Paulo, ventanias e tempestades têm sido sinônimo de dias sem eletricidade.
"Isso mostra toda a vulnerabilidade do sistema elétrico, com postes e fios aéreos — e que estão perto das árvores", comenta Marengo.
A Empresa de Pesquisa Energética (EPE) reconhece as lacunas do setor e a necessidade de adaptação diante das mudanças climáticas. Um estudo publicado no ano passado lista os potenciais impactos de tempestades, ventos fortes e enchentes na infraestrutura e no fornecimento de energia. Mas, até agora, as concessionárias não são cobradas por órgãos reguladores para aumentar a resiliência.
Na capital paulista, o aterramento dos fios anda a passos lentos: a prefeitura afirma ter implantado 88 quilômetros de fiação subterrânea. Isso equivale a 0,02% dos 44 mil quilômetros sob concessão da Enel no estado, empresa distribuidora que atende 8 milhões de unidades consumidoras na região metropolitana, incluindo a capital.
Os impactos afetam outros setores da economia. O de seguros, em geral, é um dos primeiros justamente por lidar diretamente com a materialização dos riscos.
"Observa-se um aumento gigantesco no número de sinistros, o que torna o impacto das mudanças climáticas mais evidente", comenta Luciane Moessa, advogada e diretora da ONG Soluções Inclusivas Sustentáveis (SIS).
As seguradoras, afirma Moessa, têm buscado projetar novos cenários e rever suas metodologias de cálculo para enfrentarem os novos tempos. Mesmo que esse setor se adapte, não há garantias de um desfecho positivo: ao recalcular os riscos com base no aumento da frequência e da intensidade dos sinistros, os prêmios podem se tornar muito mais elevados do que são hoje.
"E, com isso, as pessoas podem deixar de contratar seguros simplesmente porque não terão condições de arcar com os custos", complementa Moessa, citando o exemplo do seguro agropecuário.
Adaptação urgente
Em nível nacional, o país acaba de aprovar o Plano Clima Adaptação. A política pública envolve 26 ministérios e busca aumentar a resiliência de estados e municípios diante de eventos extremos e, sobretudo, evitar mortes.
O desafio será implementar as diretrizes nos estados e cidades — onde os impactos das mudanças climáticas se manifestam. Em outra frente, o Ministério do Meio Ambiente vai ajudar municípios a desenvolverem seus próprios planos com foco na proteção de vidas, infraestrutura, transporte, saúde e outros serviços essenciais.
"Um plano de adaptação ideal parte, antes de tudo, do conhecimento profundo sobre onde o território é vulnerável. Por isso, o planejamento precisa ser participativo, envolvendo não apenas o poder público, mas também a sociedade civil e o setor privado", afirma Lincoln Muniz Alves, coordenador-geral do Departamento de Políticas para Adaptação e Resiliência à Mudança do Clima do MMA, à DW, referindo-se ao AdaptaCidade.
Não há uma receita de bolo a ser seguida: a ideia é que cada município, a partir de sua realidade específica, defina suas prioridades. Em muitos casos, os problemas estão associados tanto ao excesso quanto à falta de água, cita como exemplo Alves. Nesta fase inicial, 581 cidades distribuídas por todos os estados participam desse esforço.
Para colocar o plano em prática, o acesso ao financiamento pode ser uma barreira, já que muitos municípios estão endividados ou têm pouca capacidade técnica para elaborar projetos robustos.
"Embora existam recursos disponíveis, a burocracia também é um obstáculo significativo. É necessário que as próprias agências financiadoras reconheçam essas limitações e adaptem seus mecanismos", comenta Alves sobre outra necessidade de adequação.
Lições dos traumas
Pela primeira vez, as equipes de Defesa Civil das 295 cidades de Santa Catarina começam a receber um kit para enfrentar as emergências causadas pelos eventos climáticos extremos. Ele inclui uma caminhonete 4x4, drone, computador, entre outros equipamentos.
"Não adianta emitir um alerta dizendo que vai chover muito em pouco tempo se não tem ninguém para traduzir isso, informar a população sobre a consequência. A depender da área, pode significar muita água entrando na casa das pessoas", diz Mário Hildebrandt, secretário estadual da Proteção e Defesa Civil.
O estado também tem quatro radares próprios que fazem raio-x e trajetória das nuvens num raio de 400 quilômetros. Os dados gerados por eles deram base para a decisão de cancelar as aulas na semana passada.
Ex-prefeito de Blumenau, Hildebrandt diz ter enfrentado nove enchentes e 1.300 deslizamentos sob sua gestão, de 2018 a 2024. A cada enxurrada, diz o secretário, era como se um milhão "escorresse pelo ralo" em gastos públicos para reparar os estragos.
"Essas lições têm sido importantes para a gente aprender e se adaptar, ampliar os serviços e capacitar as defesas civis", afirma às vésperas do verão, quando chuvas intensas são mais frequentes.