Uma comunidade às margens do igarapé Piraíba, em Belém, enfrenta o colapso ambiental do rio, causado pela poluição industrial, o que resultou na perda do sustento, no êxodo de moradores e em um apelo por ajuda das autoridades.
Por décadas, o igarapé Piraíba foi o sustento e o orgulho de uma comunidade que aprendeu a viver do que o rio oferecia. Ali, às margens de um afluente do Maguari, em Belém (PA), João Batista Dias Pinheiro, hoje com 82 anos, construiu sua casa, criou filhos e se tornou presidente da comunidade Amapi, que, no passado, prosperou com a pesca e o extrativismo.
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Mas a paisagem que ele descreve com saudade não existe mais. Onde antes se viam redes cheias de camarões e peixes, hoje há cheiro forte e silêncio. “Nós vivíamos uma vida boa daqui. Era uma vida de príncipe”, lembra, olhando para o curso do igarapé. “Mas depois que montaram essas empresas aí, como a Curtume, acabou o nosso sossego.”
Segundo ele, a chegada de uma fábrica de beneficiamento de couro e, mais recentemente, de serrarias e de galpões industriais, mudou para sempre a rotina dos moradores. “Aqui dentro do igarapé não se pega mais nada. Pra conseguir algo, tem que ir lá pra baixo, bem longe”, conta. “A água ficou suja, o peixe sumiu e o povo começou a ir embora.”
Marcado pelos impactos da ação humana, o igarapé Piraíba, localizado no distrito industrial de Icoaraci, fica a cerca de 20 minutos do espaço que sedia a Cúpula do Clima das Nações Unidas (COP30). O evento, que teve início na segunda-feira, 10, reúne líderes mundiais para discutir metas e estratégias voltadas à preservação do planeta.
“A gente foi esquecido”
Líder da comunidade, seu João luta há mais de duas décadas para que as autoridades e empresas olhem para a situação do Piraíba. “Todo o tempo estão abusando demais da gente”. Ele lembra de uma tentativa frustrada de negociação com uma das empresas: “O gerente veio aqui e disse que ia dar uma cesta básica de R$ 70 pra cada um. Aí eu perguntei: R$ 70 dá pra uma criança comer por dia? Eu não aceitei.”
Enquanto fala, o tom de indignação cresce. “Eles jogam tudo que não presta no rio. Serraria, curtume, veneno, madeira. Quando chega o inverno, o fedor é de bosta". Seu João afirma que já recebeu a visita de fiscais, autoridades policiais e promotores, mas nada muda.
“Ninguém faz nada pela gente. Nós estamos esquecidos. Nem energia própria nós temos aqui", diz o líder da comunidade Amapi.
Um rio que adoeceu
O tempo em que a comunidade vivia da pesca parece um passado distante. “Quando eu cheguei pra cá, a gente jogava tarrafa e tinha dia que dava 50, 60 tarrafas cheias. Peixe, camarão, tudo. Eu botava 12 matapis de noite e de manhã dava 40 quilos de camarão.”
Hoje, o cenário é o oposto. “Não se pega mais nada. Só vem imundície na rede”. Ele lembra de um episódio que o marcou. “Eu tinha um tanque cheio de peixe, mas duas vezes o veneno entrou e matou tudo. Uma vez botei camarão aí, e o rio amanheceu fedendo, um tapete de camarão podre.”
As consequências ao meio ambiente, segundo o líder comunitário, ainda são maiores do que se parece. “Até pato do mato morreu. Os bichinhos que comiam peixe foram embora. Não tem mais alimento pra eles.”
Casas vazias e o sonho de recomeçar
A degradação expulsou boa parte dos antigos vizinhos, já que o rio, antes fonte de sustento, não oferece mais nada. Hoje, ele e a esposa sobrevivem com o auxílio do governo e com o que conseguem do açaí colhido nas matas próximas. "Se for esperar do igarapé, não tem nada”, desabafa.
É nítido no rosto de seu João o misto do amor por um lugar que guarda sua história e o cansaço de lutar por algo que em não vê mudanças. “Eu tô construindo uma casa em Santa Bárbara, porque uma hora eu largo e abandono isso aqui. Não dá pra viver assim”. Mas a decisão não é simples. “Eu sou o fundador dessa comunidade. Presidente daqui. É triste pensar em sair, mas o que a gente vai fazer?”.
“Nem a água a gente pode mais usar”
A falta de estrutura básica agrava a sensação de abandono. “Aqui não tem energia, não tem posto de saúde. A água não presta. A gente compra água mineral pra beber", diz ele. Antes, as cacimbas da beira do rio forneciam água limpa. Hoje, elas são só lembrança.
“Não tem como uma pessoa tomar banho nessa água. Tá poluída. As crianças nem podem mais entrar. A gente só quer que alguém faça alguma coisa. Que olhem pra gente, que ajudem. Porque do jeito que tá, não dá pra viver", diz João.
O olhar de uma mãe que viu os filhos irem embora
Se o marido fala com o tom cansado de quem luta há anos por socorro, Maria Dalva Bentis dos Santos Pinheiro fala com o coração apertado de uma mãe que viu os filhos crescerem --e partirem-- por causa da destruição do lugar onde nasceram. Aos 72 anos, ela vive às margens do igarapé Piraíba com seu João, onde juntos criaram os filhos. Foi mais de duas décadas de uma vida simples, mas feliz.
“Quando nós viemos pra cá, as crianças tomavam banho no rio. A água era limpa, saudável. A gente botava rede e pegava muito peixe, muito camarão. Dava pra vender, pra comprar o almoço, o jantar, o café”, lembra, sorrindo de leve, antes que o rosto se feche. “Mas isso acabou. O homem destrói a natureza.”
Segundo ela, a poluição começou há cerca de 20 anos, mas agravou-se nos últimos três. “Agora é todo dia. Eles derramam veneno, sebo, tudo no rio. As crianças não podem mais tomar banho, e o alimento da gente acabou", afirma ao mostrar o neto e o tataraneto. À beira do igarapé, até as árvores estão morrendo.
“Os açaizeiros estão morrendo nas beiras do rio. A natureza acaba. "Nosso Pará não era para ser assim. Era para ser um Pará maravilhoso, mas o povo e o governo não olham para quem precisa. O governo só olha para os deles.”
Maria conta que, mesmo morando em Belém, vive como se estivesse esquecida dentro da própria capital. O que mais dói, ela diz, é ver as gerações que ali se vendo forçadas a partir. Enquanto fala, aponta para as casas que um dia pertenceram à sua família e hoje estão vazias. Pela primeira vez, os olhos dela se enchem de lágrimas. “Eu criei minhas filhas e meus netos aqui. Quando vim, minha filha tinha sete anos, hoje tem 32. Minha caçula é casada, tem dois filhos. Eu terminei de criar elas aqui, na cabeceira desse igarapé. Eles pegavam peixe, pegavam camarão. Dava piracema de camarão que você gostava de ver!”. Mas hoje, só resta o vazio.
“Isso dói. Tiraram o sustento de muita gente. Minha filha foi embora, minha neta foi, outra filha também. Um filho vendeu a casa e foi embora. As casas estão vazias. Aqui, a gente tinha o peixe, o camarão, o açaí. Aqui, a gente era feliz de verdade", relata, emocionada.
Apesar de tudo, dona Dalva ainda fala com esperança. “Eu tenho esperança que venha energia pra nós, que façam uma coisa melhor pra comunidade, pra recuperação do rio. Até quando Deus quiser, nós vamos lutar. Depois que nós formos, ficam nossos filhos, nossos netos, tataranetos.”
O que dizem os envolvidos
Em nota, a Curtume Ideal afirmou "que a empresa possui as melhores práticas de engenharia ambiental, seguindo rigorosamente as legislações nacionais e internacionais aplicáveis, a fim de garantir a adequada operação ambiental de sua produção". A empresa também acrescentou que dispõe de uma Estação de Tratamento de Efluentes Industriais (ETE), devidamente licenciada e autorizada, "que realiza o tratamento adequado da água antes de seu lançamento no leito do rio, conforme Outorga nº 5929/2021. Portanto, são inverídicas as alegações apresentadas por terceiros".
Além disso, a companhia alegou que suas práticas estão em conformidade com as exigências legais e ambientais, com o objetivo de preservar o meio ambiente e assegurar o cumprimento das normas vigentes.
A Secretaria de Meio Ambiente, Clima e Sustentabilidade do Pará (Semas) informou que realiza com frequência fiscalizações no distrito citado, e que não foi notificada sobre o caso.
O Terra também entrou em contato com o Ministério Público do Pará e a Prefeitura de Belém, mas não obteve resposta até a última atualização desta reportagem.
*A repórter viajou a convite da Motiva, idealizadora da Coalizão pela Descarbonização dos Transportes.