Matéria-prima de mulheres ribeirinhas em Belém está ‘sumindo’ em meio a crise climática e turismo predatório

Mulheres que se uniram para resgatar cultura da andiroba na Ilha do Combu relatam transformação de vida e temor pela escassez da semente

10 nov 2025 - 09h23
Foto: Beatriz Araujo/Terra

Na casa dos 50 anos, Rosineide Trindade precisou ser convencida a fazer parte da Associação das Mulheres Extrativistas do Combú (AME), na Ilha do Combu, em Belém. O grupo foi criado com o intuito de resgatar a cultura da andiroba, semente com múltiplos usos benéficos para a saúde. Ela via o projeto como perda de tempo e sentia que "já tinha muita idade" para aprender algo tão complexo e totalmente novo. 

Mas deu uma oportunidade e acabou se apaixonando pelo trabalho, que não larga mais. O lado ruim é que agora ela convive com o medo de perder essa matéria-prima tão importante, que está cada vez mais escassa devido à crise climática e num contexto de turismo predatório na comunidade.

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É com a semente da andiroba que elas extraem um óleo e, com ele, conseguem fazer uma série de produtos que são vendidos tanto a pessoas que visitam a sede da AME, quanto de forma online para todo o Brasil. Atualmente são 14 associadas responsáveis por todo o processo, desde a coleta das sementes até a elaboração dos produtos. Quem segue na ativa recebe uma diária fixa de R$ 50, com o pagamento sendo bancado pelo que a associação recebe com seus trabalhos. Para além da preservação e do dinheiro, a atividade também tem aumentado a autoestima das mulheres ribeirinhas, que se orgulham do que fazem.

E tudo isso está ameaçado. Elas não estão mais conseguindo encontrar sementes de andirobas na Ilha do Combu e só não paralisaram os trabalhos porque tem um estoque guardado. Se alguém da comunidade encontra as sementes, também traz para elas. Em um dos últimos dias, um conhecido precisou se "enfiar na mata" para conseguir trazer um punhado e ajudar as extrativistas. O motivo, para elas que vivem na floresta, é claro: "As mudanças climáticas estão afetando muito tudo”, aponta Rosineide.

O problema não é só sobre quantidade. Nas últimas coletas, mesmo se encontradas sementes, estão conseguindo extrair pouco óleo dos materiais. Não está mais sendo como antes. Rosineide teme os rumos que essa história pode tomar, e diz ter pensado muito sobre isso ultimamente. O que faz é tentar passar os conhecimentos de preservação para as gerações mais novas, o que é difícil quando o que a pauta é o retorno financeiro do trabalho.

Matéria-prima de comunidade ribeirinha em Belém 'some' com crise climática: ‘Sem apoio para preservar’
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Na AME tudo era feito apenas na base do amor e da luta. E a luta foi grande, conta a ribeirinha. Desde que a associação foi criada, há cerca de cinco anos, incentivada por um grupo da Universidade do Estado do Pará (UEPA), a maioria das associadas ficou pelo caminho e principalmente por conta da falta de lucro com o trabalho --principalmente porque, visto que a Ilha do Combu vive em meio a um turismo predatório, é possível receber em torno de R$ 100 a R$ 150 a diária para trabalhar em restaurantes que lotam as margens do rio.

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Com esse ganho nos estabelecimentos, trabalhando cinco vezes por semana, quatro semanas ao mês, o ganho mensal é de R$ 3 mil, bem superior ao que hoje se recebe com o trabalho em torno da andiroba. Com a "tentação", ela reconhece que muitas vezes os moradores acabam pensando mais no retorno em dinheiro e acabam esquecendo do cuidado com onde moram.

No caso de Rosineide, ela passou a ver como missão o cuidado com a andiroba e persistiu, até que neste ano tomou a decisão de focar totalmente na AME e deixou de fazer diárias em restaurantes, trabalho feito por boa parte da comunidade --mesmo que apenas para integrar a renda.

Foto: Beatriz Araujo/Terra

Além da falta de interesse de parte da comunidade, Rosineide ainda aponta falta de apoio da prefeitura em preservar esses tesouros do território: “A gente espera que alguém venha enxergar quem cuida de verdade, venha apoiar quem cuida de verdade. Dar um suporte, um incentivo, que a gente sente muita falta disso. Porque a gente está aqui, a gente não só pega o fruto ou a semente para benefício, para um lucro. A gente está aqui cuidando também. Se a gente não cuidar, como é que a gente vai ter retorno da natureza? Ela precisa de cuidado”.

Os apoios que recebem costumam vir mais por meio de projetos do que pela prefeitura de Belém, em si. Recentemente, por exemplo, eles foram contemplados pela Associação de Apoio à Economia Popular da Amazônia (AmazonCred) em um edital do Rock in Rio voltado à preservação da Amazônia, no nicho de apoio ao empreendedorismo local a partir do turismo de base comunitária em Áreas Protegidas. E, com isso, ganharam uma obra na sede e uma cozinha de alvenaria para os trabalhos com a andiroba.

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Foto: Beatriz Araujo/Terra

Como uma coisa leva a outra, com a visibilidade que conseguiram, foram contempladas por uma obra do governo do Pará para a construção de uma cisterna aos fundos da sede, onde será captada água da chuva e disponibilizada para consumo humano. O projeto é primordial, visto que na Ilha do Combu não há água potável.

No caso, a iniciativa faz parte do Programa Regulariza, do governo do Pará, em parceria com a prefeitura de Belém, empresas e o Instituto de Desenvolvimento Florestal e da Biodiversidade do Estado do Pará (Ideflor-Bio). Segundo nota do governo, estão sendo instaladas dez cisternas do tipo na ilha e a previsão de entrega era agora em outubro. A que será na AME, porém, segue em construção e a expectativa é que seja entregue durante os dias da COP30.

Foto: Beatriz Araujo/Terra

A vida em meio ao turismo na Ilha Combu

A energia elétrica chegou à Ilha do Combu em 2011. Antes não tinham geladeiras e era preciso abastecer caixas térmicas com gelo semanalmente para preservar os alimentos e conseguir tomar uma água geladinha em meio ao calor de Belém. Quem tinha um freezer, precisava arcar com os altos custos de um gerador --que costumava permanecer ligado apenas durante a madrugada. Já a iluminação das casas, feitas de madeira, era à base de lamparinas. Esses são apenas dois exemplos, mas refletir sobre seus impactos no dia a dia já mostra como tudo era diferente.

A luta foi grande para conquistarem a rede de energia elétrica. Moradores contam que precisavam ir a longas reuniões com autoridades e empresas, que às vezes duravam dias inteiros, e até ficavam sem comer durante o dia para não deixarem o posto. Insistiam, mas não acreditavam que um dia, realmente, iriam apertar um botão e ter luz. Até que tudo deu certo, e a festa foi grande. Agora, contam que se acontece atualmente de ficarem alguns momentos sem energia por algum motivo, a agonia vem e nem se recordam de como viveram tantos anos sem luz.

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A festa, porém, não veio acompanhada apenas de alegrias. Ao mesmo tempo em que esse passo foi muito importante para o desenvolvimento e bem-estar da comunidade ribeirinha da Ilha do Combu, também foi um marco de transformação no turismo local, relatam moradores.

A Ilha do Combu é uma Área de Proteção Ambiental (APA) e por ser um “paraíso” da Amazônia próximo à Belém tem alguns restaurantes tradicionais que recebem turistas há anos. Mas o que dava para se contar no dedo, saiu do controle. Mesmo que sem água potável, com a procura de turistas, começaram a ser criados dezenas de restaurantes pelas margens da ilha. Moradores que vivem lá a vida toda dizem não ter mais noção nem da média de quantos empreendimentos existem.

Foto: Beatriz Araujo/Terra

Para chegar à Ilha de Combu é preciso pegar uma lancha em Belém a partir do Terminal Hidroviário Ruy Barata, na Praça Princesa Isabel. A viagem ida e volta custa R$ 24, valor que pode ser paga em dinheiro, débito ou Pix. No domingo, 9, pré-COP30, a travessia estava movimentada de brasileiros e gringos, e havia diversas pessoas na entrada do local entregando panfletos de propagandas que sugeriam restaurantes aos visitantes.

Os restaurantes querem captar os clientes desde o início porque são muitas as opções. E a pessoa precisa dizer, já ao embarcar na lancha, para qual ponto específico ela quer ir --e lá ela será deixada pelo barco. As propostas dos locais têm ficado cada vez mais mirabolantes para atrair os clientes, indo de shows a estruturas em estilo de resort com piscinas --mesmo que os estabelecimentos fiquem, literalmente, no rio.

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A maior parte dos restaurantes tem uma espécie de atracadouro próprio que recebe lanchas de hora em hora. E, conforme contaram moradores, o fluxo é alto todo fim de semana, não só durante a COP.

Foto: Beatriz Araujo/Terra

A busca por uma fatia desse público tem feito pessoas desmatarem áreas e construírem empreendimentos irregulares pela ilha, denunciam os ribeirinhos. Além disso, não são todos os estabelecimentos que se preocupam com os resíduos e os impactos ambientais gerados pelo turismo intenso.

Antes, além da força do açaí e do cacau, os ribeirinhos da Ilha do Combu se alimentavam do peixe e camarões que pescavam, o que tem ficado mais difícil a cada ano. Os animais estão aparecendo em cada vez menos quantidade. No ano passado, por exemplo, moradores contam que o camarão “sumiu” do rio. Não sabem se pela poluição, se por os peixes se incomodarem com a agitação das águas devido ao fluxo intenso de lanchas e jet skis, ou se pela crise climática, em si. Ou, até mesmo, se pela junção dos fatores. O que sabem é que sentem o impacto disso.

A segurança também não é mais a mesma. Moradores relatam que os roubos aumentaram na região --como os de lanchas inteiras, com motores que custam o preço de carros populares. Essa insegurança tem restringido o livre circular dos ribeirinhos, que agora precisam ponderar algumas ações que antes eram tomadas com total liberdade.

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Foto: Beatriz Araujo/Terra

O Terra acionou Belém e o governo do Pará em busca de informações sobre quantos estabelecimentos estão ativos na Ilha do Combu, em funcionamento em meio às moradias ribeirinhas, e sobre casos de desmatamento, infrações ambientais e outros crimes atrelados à expansão do turismo na região. A reportagem também questionou sobre a realidade hídrica da comunidade, e o atraso da entrega da cisterna. O espaço segue aberto e será atualizado em caso de retorno.

Em outubro a Prefeitura de Belém deu início a um “ciclo de fiscalização e orientação em restaurantes da Ilha do Combu” justamente com foco no combate ao descarte irregular de resíduos e de esgoto nos rios. A ideia é que as fiscalizações sejam mantidas em frequência mensal a fim de proteger os recursos hídricos e a biodiversidade da ilha.

“Nos três restaurantes visitados inicialmente, a equipe de fiscalização encontrou irregularidades, como a falta de tratamento adequado de água e esgoto, com ausência de fossas apropriadas e até o descarte direto de água de piscina com cloro nos rios”, escreveu a prefeitura em nota publicada em outubro, informando ter intimado os estabelecimentos a prestarem esclarecimentos.

Foto: Reprodução/GoogleMaps

*A repórter Beatriz Araujo viajou a Belém com apoio do ClimaInfo.

Fonte: Portal Terra
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