Em mais uma queda de braço com o Congresso, ministros do Supremo julgam inconstitucional proposta que limita direito a reconhecimento e demarcação a terras ocupadas por indígenas em 1988.O Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria na noite de quarta-feira (17/12) para derrubar o chamado marco temporal . A tese, contestada por povos indígenas e entidades de defesa do meio ambiente e encampada por grande parte do agronegócio, define que os territórios indígenas devem ser reconhecidos com base em sua ocupação em 1988, ano na promulgação da Constituição.
Até a noite de quarta-feira, seis ministros haviam votado pela inconstitucionalidade dessa definição, incluindo o relator, Gilmar Mendes . O julgamento no plenário virtual continua nesta quinta, faltando cinco votos.
Esse foi mais um episódio do vai e vem das negociações sobre o tema envolvendo o Congresso e o STF. A corte já havia considerado o marco temporal inconstitucional em 2023, mas o Congresso aprovou uma lei no mesmo ano estabelecendo a tese. Na época, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva vetou parte do texto, mas os congressistas derrubaram o veto .
O julgamento em curso no STF analisa quatro ações que envolvem essa lei. No entanto, na semana passada, o Senado aprovou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) sobre o mesmo assunto. A nova ofensiva legislativa ainda precisa passar pela Câmara.
Ao decidir, por maioria, derrubar o marco temporal, o STF mantém o entendimento, avalizado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, de que a Constituição brasileira garante aos povos indígenas o direito à propriedade coletiva com base nos laços tradicionais com seus territórios, e não em uma data específica.
A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) será a responsável por apresentar uma lista de antiguidade das reivindicações, de acordo com os votos apresentados até o momento. Os ministros concordaram com um prazo de 10 anos para a finalização dos procedimentos de demarcação pendentes.
De acordo com dados da Funai apresentados no voto do relator, ministro Gilmar Mendes, há 231 processos administrativos em curso para demarcação de terras indígenas, sendo 158 pedidos de demarcação.
"Nossa sociedade não pode conviver com chagas abertas séculos atrás que ainda dependem de solução nos dias de hoje, demandando espírito público, republicano e humano de todos os cidadãos brasileiros (indígenas e não indígenas) e principalmente de todos os Poderes para compreender que precisamos escolher outras salvaguardas mínimas para conduzir o debate sobre o conflito no campo, sem que haja a necessidade de fixação de marco temporal em 5 de outubro de 1988, situação de difícil comprovação para comunidades indígenas que foram historicamente desumanizadas com práticas estatais ou privadas de retirada forçada, mortes e perseguições", escreveu Gilmar Mendes.
Agronegócio na defesa do marco
A Constituição garante aos indígenas "os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam". No centro da disputa sobre o marco temporal está a definição dessa ocupação.
Os defensores da tese alegam que estabelecer um marco temporal claro, que é a promulgação da Constituição, dá certa segurança jurídica.
"Essa emenda não visa negar o direito dos povos indígenas às suas terras, mas, sim, oferecer uma base sólida para a demarcação, evitando conflitos e incertezas que prejudicam tanto as comunidades indígenas quanto outros setores da sociedade", diz a justificação da proposta, de autoria do senador Dr. Hiran (PP-RR).
O agronegócio é a principal força de apoio à tese, representada no Congresso pela Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), que dá suporte à bancada ruralista. A frente diz que o marco "garante a estabilidade das relações sociais, econômicas e territoriais no país".
Para o governo, a tese tem o efeito oposto, de retrocesso e violação de direitos fundamentais .
"A lei [aprovada em 2023] colide frontalmente com a tese constitucional consolidada, segundo a qual o direito indígena decorre da ocupação tradicional e não de critérios de posse civil ou de marcos cronológicos arbitrários. Essa contradição institucional cria um estado de insegurança jurídica sem precedentes, pois duas ordens normativas agora coexistem: uma constitucional e consolidada pelo STF e outra infraconstitucional, que a contradiz frontalmente", defendeu, em nota, o Ministério dos Povos Indígenas.
O ministério destaca ainda que a instabilidade gerada pelo marco temporal "abriu brechas para atos de violência que têm os indígenas como as principais vítimas". "A norma desestabiliza parâmetros mínimos de previsibilidade jurídica e funciona como vetor de legitimação de discursos e narrativas anti-indígenas", afirma o órgão.
Críticas ao STF
Em seu voto, o ministro Gilmar Mendes manteve alguns tópicos da lei que define o marco temporal, como um prazo de 10 anos para a União concluir processos demarcatórios. Ele autoriza a exploração econômica nas terras indígenas pela própria comunidade e assegura ao posseiro a permanência na área até o pagamento das indenizações devidas.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) citou alguns pontos do relatório, como a possibilidade de "compensação" às comunidades indígenas com a concessão de "terras equivalentes às tradicionalmente ocupadas".
"A medida remete às remoções forçadas promovidas pelo antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e é incompatível com a Constituição Federal de 1988. Além disso, o texto não define de forma objetiva o que caracterizaria essa suposta impossibilidade de demarcação", afirma a entidade, em nota.
"O voto amplia as possibilidades de exploração econômica dos territórios indígenas, permitindo atividades como turismo e cooperação ou contratação de terceiros não indígenas, sem vedar expressamente práticas de alto impacto ambiental, como pecuária e agricultura extensiva, atualmente proibidas", pontua a Apib.
sf/md (Agência Brasil, OTS)