Parte do reino da Dinamarca e alvo da cobiça do presidente eleito dos EUA, ilha vê renascer debate sobre quem deve controlar território em meio a aspirações crescentes pró-independência.A Dinamarca convocou o embaixador americano para dar explicações após a decisão do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de nomear um enviado especial para a Groenlândia, informou nesta segunda-feira (22/12) o ministro dinamarquês, do Exterior, Lars Løkke Rasmussen.
Desde que retornou à Casa Branca, em janeiro, Trump retomou uma ideia de seu primeiro mandato de obter o controle da ilha, sem inclusive descartar o uso da força. A Dinamarca e a Groenlândia rejeitam esses esforços.
O presidente dos EUA acredita que a Groenlândia, que é em grande parte autônoma, mas faz parte do Reino da Dinamarca, é estrategicamente importante tanto para a defesa quanto como fonte de riqueza mineral.
Questão de "segurança nacional"
A mais rescente escalada nas tensões diplomáticas se deve ao fato de o enviado especial indicado por Trump, o governador da Louisiana Jeff Landry, ter afirmado em postagens nas redes sociais que seria "uma honra" servir a Trump para tornar "a Groenlândia parte dos EUA".
Rasmussen afirmou que a nomeação de Landry foi totalmente inesperada, e descreveu suas declarações como "completamente inaceitáveis". O ministro afirmou que iria exigir uma explicação do embaixador dos EUA, Ken Howery, o que deve ocorrer ainda nesta segunda-feira ou terça-feira.
Trump anunciou a nomeação de Landry no final do domingo, dizendo em uma postagem em sua plataforma Truth Social que "Jeff entende o quão essencial a Groenlândia é para nossa segurança nacional e defenderá fortemente os interesses do nosso país para a segurança, proteção e sobrevivência de nossos aliados e, de fato, do mundo."
Não ficou imediatamente claro por que Trump nomeou Landry como enviado especial para a ilha. Baton Rouge, a capital da Louisiana, fica a cerca de 4.600 quilômetros a sudoeste de Nuuk, a capital da Groenlândia.
A Louisiana já fez parte da França e foi comprada pelos EUA em 1803 por 15 milhões de dólares, em um negócio que deu aos EUA uma grande faixa de território no sentido norte-sul, de Nova Orleans, no Golfo do México, até Wyoming e Dakota do Norte. Hoje, o território envolvido na compra da Louisiana abrange a totalidade ou parte de 15 estados americanos.
A Groenlândia - a maior ilha do mundo - tem quatro quintos de sua superfície cobertos por gelo e abriga pouco menos de 57.000 pessoas.
Interesse de Trump na Groenlândia não é novo
Os antecessores de Trump costumavam nomear enviados especiais principalmente para negociações difíceis e situações de crise. As relações com aliados, como a Dinamarca, um dos aliados da Otan, são tradicionalmente gerenciadas por embaixadores dos EUA.
A imprensa dinamarquesa tem noticiado que o governo dos EUA vem tentando estabelecer contatos diretos com o governo da Groenlândia. No entanto, é parte dos costumes políticos na Dinamarca ter representantes dinamarqueses e groenlandeses presentes em conversas sobre questões externas, de segurança ou de defesa que possam afetar a ilha.
O primeiro-ministro da Groenlândia Jens-Frederik Nielsen adotou um tom de calma nesta segunda-feira, dizendo que as notícias vindas de Washington "não eram motivo de preocupação".
Em postagem no Facebook, Nielsen disse que a nomeação não mudava o fato de que a Groenlândia controlava seu próprio destino. "Estamos abertos à cooperação com outros países, incluindo os Estados Unidos, mas com respeito e com base em nossos valores e aspirações", escreveu. "Estamos unidos e jamais seremos destruídos."
O interesse de Trump na Groenlândia não é propriamente novo. O republicano já havia manifestado interesse na compra do território em 2019, durante seu primeiro mandato, mas foi ignorado pela primeira-ministra Mette Frederiksen à época, e reagiu cancelando uma visita oficial à Dinamarca.
Após vencer as eleições em novembro de 2024, Trump voltou a insistir no tema. E o timing não parecia exatamente ruim, já que o debate interno na Groenlândia pró-emancipação tem crescido.
O que Trump quer com a Groenlândia
Os Estados Unidos, que fazem fronteira com o Ártico no estado do Alasca, operam desde 1951 uma base aérea no noroeste da Groenlândia. A presença militar americana é respaldada por um acordo de décadas que prevê a presença de tropas e radares na maior ilha do mundo. A anexação significaria um ganho de influência econômica e geopolítica em uma região rica em recursos naturais, onde tensões militares com a Rússia e a China têm crescido.
É o que argumenta Marc Jacobsen, professor no Royal Danish Defence College: "Se olharmos para os inimigos primários dos EUA neste momento, temos grande competição com a China por poder. E se principalmente a Rússia enviasse mísseis aos EUA, a rota mais curta seria pelo Polo Norte, por cima da Groenlândia."
Jacobsen também aponta que a Groenlândia tem "enormes quantidades" de terras raras, minerais "extremamente importantes" para fabricação de todo tipo de tecnologia, desde equipamentos militares até geradores de energia eólica e smartphones, cuja mineração é hoje dominada pela China.
Um outro fator de interesse é que numa era de aquecimento global e derretimento das geleiras nos polos do planeta, o gelado e imenso território da Groenlândia abre novas possibilidades para rotas comerciais marítimas.
Professor de política internacional e externa na Universidade de Colônia, Thomas Jäger vê ainda um outro motivo para o interesse de Trump na Groenlândia: "É possível que Trump queira se alinhar à tradição de presidentes que expandiram o território americano. No século 19, quando os EUA cresceram em direção ao oeste, depois compraram o Alasca - isso seria algo que faria dele realmente um grande presidente", disse em entrevista ao canal alemão NTV.
Colonização ainda é ferida aberta na Groenlândia
E como tem reagido a classe política na Groenlândia às aspirações de Trump e ao nervosismo dos dinamarqueses?
Em 2024, o premiê groenlandês Múte Bourup Egede exigiu "passos importantes em direção a um país independente". "O futuro e o país pertencem a nós!", frisou Egede. "Não estamos e nunca estaremos à venda. Não podemos perder nossa longa batalha pela liberdade."
"Não quero ser uma peça no tabuleiro dos sonhos loucos de Trump de expandir seu império e envolver nosso país nisso", postou no Facebook à época a deputada groenlandesa e pró-independência Aaja Chemnitz.
Habitada pelo povo inuit (popularmente conhecidos como esquimós), a ilha de 57 mil habitantes foi colonizada no século 18 pela Noruega e a Dinamarca, e está há 600 anos sob domínio dinamarquês. E embora após a Segunda Guerra Mundial a Groenlândia tenha oficialmente deixado de ser uma colônia, conquistando a autonomia em 1979, mulheres da ilha foram submetidas a controle obrigatório de natalidade e tiveram seus filhos raptados e levados para a Dinamarca.
Os horrores daquele período - e as continuidades remanescentes nos dias de hoje - estão sendo reexaminados criticamente a passos lentos e reforçam em muitos groenlandeses o desejo de se libertarem da Dinamarca de uma vez por todas. E desde 2009, isso já é possível mediante referendo.
Dinamarca não quer abrir mão do território
À CNN, um funcionário da Defesa dinamarquesa confessou que o país teme que uma Groenlândia independente exponha a ilha a turbulências políticas, tornando-a mais vulnerável também à influência russa e chinesa. A emancipação também implicaria, ao menos num primeiro momento, que a ilha deixaria de fazer parte da Otan, a aliança militar do Ocidente, que a Dinamarca integra.
"Reconhecemos totalmente que a Groenlândia tem suas próprias ambições. Se elas se materializarem, a Groenlândia se tornará independente, mas dificilmente com a ambição de se tornar um estado federado dos Estados Unidos", disse o ministro Rasmussen no início do ano.
Hoje, a Groenlândia recebe o equivalente a cerca de 550 milhões de euros (R$ 3,49 bilhões) da Dinamarca todos os anos. O valor, que responde por aproximadamente um terço do Orçamento, é usado por críticos da independência como argumento de que a separação seria inviável.
E a Dinamarca dificilmente vai querer abrir mão do território devido aos seus recursos naturais e importância geoestratégica. Tanto que pouco depois da oferta de Trump à Groenlândia, o ministro dinamarquês da Defesa, Troels Lund Poulsen, divulgou uma lista de investimentos em infraestrutura militar na ilha.
Ao mesmo tempo, a monarquia dinamarquesa mudou seu brasão, ampliando o urso que representa a Groenlândia e o carneiro que designa as Ilhas Faroé.
"Devemos ficar juntos", disse o rei Frederik em 2024. A ressonância da mensagem entre os groenlandeses deve continuar sendo tema de campanha. Se independência, anexação aos EUA ou permanência sob a autoridade da Dinamarca (possivelmente em troca de mais verbas públicas): a valorização geopolítica de um Ártico em degelo joga a favor da Groenlândia.
Com informações de David Ehl.
rc/ra/bl (DW, AFP, Reuters, ots)