1ª africana a ocupar cena principal de Avignon, Marlene Monteiro Freitas desconstrói 'Mil e Uma Noites' sem concessões

Com um espetáculo físico e radical, a coreógrafa cabo-verdiana Marlene Monteiro Freitas apresenta no Festival de Avignon 2025 a criação Nôt, no Palácio dos Papas. Inspirado de forma livre em Mil e Uma Noites, o trabalho provocou fortes reações do público e dividiu a crítica. É a primeira vez que uma artista da África lusófona assume o principal palco do maior festival de teatro do mundo.

9 jul 2025 - 12h08
(atualizado às 12h41)

Com um espetáculo físico e radical, a coreógrafa cabo-verdiana Marlene Monteiro Freitas apresenta no Festival de Avignon 2025 a criação Nôt, no Palácio dos Papas. Inspirado de forma livre em Mil e Uma Noites, o trabalho provocou fortes reações do público e dividiu a crítica. É a primeira vez que uma artista da África lusófona assume o principal palco do maior festival de teatro do mundo.

Imagem do espetáculo "Nôt", de Marlene Monteiro Freitas, apresentado no Festival de Teatro de Avignon, em 5 de julho de 2025.
Imagem do espetáculo "Nôt", de Marlene Monteiro Freitas, apresentado no Festival de Teatro de Avignon, em 5 de julho de 2025.
Foto: Christophe Raynaud de Lage - Christophe Raynaud de Lage / RFI

Márcia Bechara, enviada especial da RFI a Avignon

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Uma explosão de corpos em convulsão, ruídos, máscaras e gestos dissonantes: é com essa gramática própria que Marlene Monteiro Freitas apresenta Nôt no Festival de Avignon 2025. Livremente inspirado em Mil e Uma Noites, o espetáculo rompe com a narrativa, frustra expectativas orientalistas e instala o caos na lendária Cour d'honneur. Figura de destaque da dança contemporânea, a coreógrafa cabo-verdiana reafirma sua assinatura radical, provocando tanto aplausos quanto rejeição em sua maior aposta de cena até hoje.

Marlene Monteiro Freitas oferece no célebre pátio do Palácio dos Papas um espetáculo tão hipnótico quanto desconcertante. Sua nova criação coreográfica inspira-se livremente nas aventuras de Sherazade, mas sem seguir sua estrutura narrativa ou atmosfera tradicional. Desde os primeiros minutos, o cenário estabelece um clima opressivo: grades, camas hospitalares, luz direta e impiedosa. Em vez de tapetes orientais e aromas de especiarias, Nôt instala um universo clínico, quase carcerário, onde se desenrola um teatro da crueldade entre sons eletrônicos e percussões selvagens.

Imagine um longo e terrível pesadelo. É certamente por essa paisagem mental que desfilam, sem concessões, as figuras híbridas e mecânicas concebidas por Freitas, sob uma trilha sonora que parece dilacerar o tempo: Stravinsky, com seus rompantes tribais e atonais, e Nick Cave, em sua poética espectral.

O Brasil foi um dos primeiros países a programar a coreógrafa cabo-verdiana, que participou do Festival Internacional de Dança (FID) de Belo Horizonte em 2013, onde apresentou o espetáculo Guintche.

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Estética do caos e do limite 

A movimentação no palco é feroz, ofegante, quase animalesca. Corpos tensos, caretas exageradas, quadris em espasmos - a fisicalidade é levada ao limite, a ponto de causar desconforto. A bailarina moçambicana Mariana Tembe, com ambas as pernas amputadas, oferece uma performance comovente, expressão crua de uma vulnerabilidade que não se esconde, como é de praxe nos trabalhos da encenadora cabo-verdiana.

O elenco - oito intérpretes que dançam, tocam e vocalizam - formam um coro tribal desalinhado, onde a beleza surge do caos. A energia é inegável, as imagens são marcantes, a composição visual, poderosa. Mas a coerência dramatúrgica se fragiliza, do ponto de vista do cânone tradicional.

A peça teve, nestas últimas semanas, de lutar pela sua sobrevivência e talvez pela sua independência", disse a artista à RFI, acrescentando que a obra "demorou bastante tempo a falar-nos. Acho que isso tem a ver com o diálogo e com a arquitetura deste espaço. Foi uma luta até ao fim".

Apesar da intensidade e da estética grotesca que permeiam a obra, quem acompanha o percurso artístico de Freitas sabe que o desconforto faz parte da experiência. "Nôt é uma noite insuportável, mas também um renascimento teatral", escreveu um crítico francês.

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A coreógrafa, conhecida por seu universo carnavalesco e por desafiar os limites da forma e da beleza, constrói aqui uma versão sombria e visceral de As Mil e Uma Noites, onde o corpo é o principal veículo narrativo.

Trajetória indomável

Nos últimos 15 anos, Marlene Monteiro Freitas tem desafiado os códigos da dança contemporânea com um estilo próprio, indomável. Nascida em Cabo Verde, com passagens por Lisboa e Bruxelas - onde estudou na escola de Anne Teresa De Keersmaeker - ela construiu uma linguagem cênica singular, onde o grotesco, o êxtase e a dissonância convivem. Suas obras são habitadas por figuras deformadas, gestos espasmódicos e uma vitalidade muitas vezes desconcertante. A cada novo trabalho, ela ultrapassa as fronteiras do corpo, da linguagem e da cena.

Antes de Nôt, Marlene já havia deixado sua marca em Avignon. Em 2017, Bacchantes - Prélude pour une purge sacudiu o público no Ginásio do Lycée Mistral, com sua leitura visceral de Eurípides. Em 2021, com Mal - Embriaguez Divina, ela mesclava mitologia, música ao vivo e percussões em um ritual que oscilava entre o êxtase e a vertigem. Essas experiências prepararam o terreno para o desafio grandioso da Cour d'honneur. Mas Nôt representa um salto ainda maior: uma encomenda de prestígio, sobre um tema carregado de simbolismo, encenado no espaço mais emblemático do festival.

As influências de Marlene são múltiplas e intensas. Ela se alimenta das tradições carnavalescas de seu país natal, de rituais africanos, da música barroca europeia e de uma sensibilidade contemporânea que recusa qualquer pureza estética. Seu trabalho remete, por vezes, Pina Bausch ou Romeo Castellucci, mas sem se submeter a modelos. Em Nôt, mais do que contar uma história, ela busca encarnar uma tensão: a de um mundo em colapso, de corpos dilacerados pela história, pela memória, pelo presente.

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Crítica se divide

Muitos apontam a dificuldade de seguir um fio narrativo. A figura de Sherazade, central nas Mil e Uma Noites, aparece esmaecida, quase ausente. Não se trata aqui de narrar para sobreviver, mas de agir, colidir, transbordar. Alguns espectadores deixam o local antes do fim. Os aplausos calorosos se misturam a vaias. A recepção é polarizada - como poucas vezes se viu em Avignon.

Outro ponto de debate foi a presença discreta da cultura árabe no espetáculo, apesar de o festival deste ano celebrar explicitamente a criação de países de língua árabe. Nôt começa com um trecho de música tradicional marroquina, mas esse momento é breve e isolado. Nem a língua, nem os imaginários da tradição árabe ocupam um lugar central na cena. A opção estética, embora assumida, frustrou parte do público que esperava um diálogo mais direto com o universo das Mil e Uma Noites.

Em um contexto político tenso, marcado pela guerra em Gaza e por manifestações de solidariedade, a abertura do festival foi precedida por um discurso coletivo em apoio ao povo palestino. Nôt, no entanto, não aborda diretamente essa conjuntura. Ainda assim, a violência subterrânea que percorre o espetáculo pode ser lida como reflexo das fraturas do presente. O gesto artístico permanece enigmático, indecifrável - talvez demasiado opaco para o espaço simbólico da Cour d'honneur.

Com Nôt, Marlene Monteiro Freitas reafirma sua visão de uma arte indomável, total, desconcertante. Sua passagem pelo principal palco de Avignon não buscou agradar, e sim provocar. Onde se esperava uma narrativa clara, ela ofereceu um grito. Barroco, cru, radical - o espetáculo de abertura de 2025 certamente ficará como um dos mais controversos dos últimos anos. Uma noite à flor da pele, sem concessões.

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A peça fica em cartaz  na cena principal do Festival de Avignon até 11 de julho de 2025.

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