Cristãos estão sendo perseguidos na Nigéria, como diz Trump?

Donald Trump diz que milhares de cristãos estão sendo mortos na Nigéria — de onde ele tirou esses números?

27 dez 2025 - 07h08
(atualizado às 07h40)
Resumo
Relatos sobre perseguição a cristãos na Nigéria divergem em números e narrativas, com figuras como Donald Trump citando dados de fontes questionáveis, enquanto analistas apontam complexas motivações religiosas, étnicas e territoriais para a violência no país.
Um close de Donald Trump falando com jornalistas a bordo do Air Force One, a caminho da Coreia do Sul, em 29 de outubro de 2025, no Japão. Ele veste um terno escuro, apoia a mão no batente da porta e olha para o horizonte.
Um close de Donald Trump falando com jornalistas a bordo do Air Force One, a caminho da Coreia do Sul, em 29 de outubro de 2025, no Japão. Ele veste um terno escuro, apoia a mão no batente da porta e olha para o horizonte.
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, disse que forças americanas atacaram o grupo Estado Islâmico (EI) na Nigéria, acusando-o de "mirar e matar de forma brutal, principalmente cristãos inocentes".

A declaração veio semanas depois de Trump ameaçar tomar medidas após meses de acusações feitas por ativistas e políticos em Washington de que militantes islâmicos estariam atacando sistematicamente cristãos no país da África Ocidental.

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No entanto, a BBC constatou que parte dos dados usados para sustentar essa conclusão é difícil de verificar.

Em setembro, o apresentador de TV e comediante Bill Maher elevou o tom ao descrever a situação como um "genocídio". Referindo-se ao grupo Boko Haram, ele afirmou que "eles mataram mais de 100 mil pessoas desde 2009, queimaram 18 mil igrejas".

Números semelhantes também vêm ganhando força nas redes sociais.

O governo em Abuja rebateu essas alegações, descrevendo-as como "uma deturpação grosseira da realidade".

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O governo não negou que haja violência letal no país, mas afirmou que "terroristas atacam todos aqueles que rejeitam sua ideologia assassina — muçulmanos, cristãos e pessoas sem religião".

Outros grupos que monitoram a violência política na Nigéria dizem que o número de cristãos mortos é muito menor e que a maioria das vítimas dos grupos jihadistas são muçulmanos.

O analista de segurança nigeriano Christian Ani afirmou que, embora cristãos tenham sido atacados como parte de uma estratégia mais ampla de espalhar terror, não é possível justificar a alegação de que eles estejam sendo deliberadamente visados.

Além disso, a Nigéria enfrenta diversas crises de segurança em diferentes regiões do país — não apenas a violência de grupos jihadistas — e essas crises têm causas distintas, portanto não devem ser confundidas.

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O país tem cerca de 220 milhões de habitantes, divididos de forma relativamente equilibrada entre as duas religiões, com maioria muçulmana no norte, onde ocorre a maior parte dos ataques.

O que políticos dos EUA estão dizendo?

O influente senador do Texas Ted Cruz vem fazendo campanha sobre o tema há algum tempo e, citando números semelhantes aos mencionados por Maher, escreveu em 7 de outubro na rede X que "desde 2009, mais de 50 mil cristãos na Nigéria foram massacrados, e mais de 18 mil igrejas e 2 mil escolas cristãs foram destruídas".

Em um e-mail enviado à BBC, o gabinete do senador deixou claro que, ao contrário de Maher, Cruz não estava chamando a situação de "genocídio", mas sim de "perseguição".

Ainda assim, Cruz acusou autoridades nigerianas de "ignorar e até facilitar o assassinato em massa de cristãos por jihadistas islâmicos". Trump, ecoando essas declarações, descreveu a Nigéria como um "país desonrado", dizendo que o governo "continua permitindo a morte de cristãos".

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O governo nigeriano negou essas acusações, afirmando que está fazendo o possível para combater os jihadistas. Algumas autoridades também disseram ver com bons olhos a possibilidade de ajuda dos Estados Unidos no combate aos insurgentes, desde que isso não ocorra de forma unilateral.

De fato, as autoridades têm tido dificuldade para conter os grupos jihadistas violentos e redes criminosas — quase toda semana surgem relatos de novos ataques ou sequestros.

O Boko Haram — tristemente conhecido pelo sequestro das meninas de Chibok há pouco mais de uma década — atua desde 2009, mas suas ações se concentram no nordeste do país, região de maioria muçulmana. Outros grupos jihadistas também surgiram, como a Província do Estado Islâmico da África Ocidental, mas eles também operam principalmente no nordeste.

Os números de mortes de cristãos citados por alguns nos Estados Unidos são alarmantes, mas avaliar sua precisão é difícil.

De onde vêm esses números?

Quando se trata da origem dos dados, em um podcast em setembro, Cruz citou diretamente um relatório de 2023 da International Society for Civil Liberties and Rule of Law (InterSociety) — uma organização não governamental que monitora e acompanha violações de direitos humanos na Nigéria. O gabinete do senador também enviou à BBC vários links de reportagens sobre o tema — a maioria delas remetendo novamente à InterSociety.

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Maher não respondeu a um pedido da BBC para informar a fonte de seus números, mas, dadas as semelhanças com os dados usados por Cruz, é provável que ele também tenha se baseado no trabalho da InterSociety.

Para dados que podem influenciar a política dos Estados Unidos em relação à Nigéria, o trabalho da InterSociety é considerado pouco transparente.

Em um relatório publicado em agosto — que reúne pesquisas anteriores e números atualizados para 2025 — a organização afirmou que grupos jihadistas na Nigéria mataram mais de 100 mil cristãos nos 16 anos desde 2009.

O documento também afirma que 60 mil "muçulmanos moderados" morreram no mesmo período.

A InterSociety não compartilhou uma lista detalhada de fontes, o que dificulta a verificação do número total de mortes que divulga.

Em resposta às críticas, a organização afirmou que "é quase impossível reproduzir todos os nossos relatórios e suas referências desde 2010. Nosso método mais simples é selecionar estatísticas resumidas e somá-las às nossas descobertas ou achados mais recentes para compor novos relatórios".

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No entanto, as fontes de dados citadas pela InterSociety em seus relatórios não correspondem aos números que ela publica.

Muitos dos mortos e sequestrados pelo Boko Haram são muçulmanos.
Foto: AFP via Getty Images / BBC News Brasil

E quanto aos mortos em 2025?

Olhando apenas para as mortes deste ano, a InterSociety concluiu que, entre janeiro e agosto, pouco mais de 7 mil cristãos foram mortos. Esse é outro número que se espalhou amplamente nas redes sociais, inclusive compartilhado pelo deputado republicano Riley M. Moore, uma das principais vozes sobre o tema na Câmara dos Representantes dos EUA.

A InterSociety inclui uma lista de 70 reportagens da imprensa como algumas das fontes para suas conclusões sobre ataques contra cristãos em 2025. No entanto, em cerca de metade desses casos, as matérias originais não mencionam a identidade religiosa das vítimas.

Por exemplo, a InterSociety citou uma reportagem da Al Jazeera sobre um ataque no nordeste da Nigéria, afirmando que, segundo o veículo, "não menos que 40 agricultores, principalmente cristãos, foram sequestrados pelo Boko Haram na região de Damboa, no estado de Borno".

No entanto, a reportagem da Al Jazeera não menciona que as vítimas eram "principalmente cristãs", como afirmou a InterSociety.

A InterSociety disse à BBC que faz análises adicionais para identificar o perfil das vítimas, sem explicar exatamente como isso é feito nesse caso específico, mas afirmou utilizar conhecimento sobre populações locais e "relatos da mídia cristã".

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Somar o número de mortes citadas nos relatórios mencionados pela InterSociety não resulta no total de 7 mil mortes divulgado.

A BBC somou os números de mortes dos 70 relatos e constatou que o total ficava em torno de 3 mil. Alguns dos ataques também parecem ter sido contabilizados mais de uma vez.

Para explicar a diferença, a InterSociety afirma que também estima o número de pessoas que acredita terem morrido em cativeiro e inclui depoimentos de testemunhas oculares que não pode tornar públicos.

Quem está por trás das mortes?

Entre os responsáveis citados estão grupos militantes islâmicos como o Boko Haram, mas também pastores fulani. Os fulani são um grupo étnico majoritariamente muçulmano que vive em toda a África Ocidental e tradicionalmente sobrevive da criação de gado e ovelhas.

A inclusão dos pastores fulani — que a InterSociety descreve como "jihadistas" em todos os seus relatórios — é, no entanto, fonte de controvérsia na Nigéria sobre como essas mortes devem ser classificadas.

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Embora os pastores sejam, em sua maioria, muçulmanos, muitos pesquisadores da área rejeitam a ideia de que se trate de um conflito religioso, afirmando que, em geral, os confrontos estão ligados a disputas por terra e água.

Pastores fulani já entraram em conflito tanto com comunidades muçulmanas quanto cristãs em várias regiões da Nigéria.

O analista de segurança Christian Ani afirma que "dizer que eles são jihadistas é um grande exagero. Isso não tem nada a ver com isso. Tem muito mais a ver com elementos criminosos e fora da lei".

Confidence McHarry, analista sênior de segurança da consultoria focada na África SBM Intelligence, diz que os confrontos costumam estar ligados a tensões étnicas e disputa por recursos.

"Pode ter um componente étnico — eles buscam tomar terras, expandir território —, mas quanto mais deslocam comunidades e atacam locais de culto, mais essas ações passam a ser vistas sob essa ótica", afirma.

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A InterSociety também menciona os chamados "bandidos", como são conhecidos na Nigéria, dizendo que eles são majoritariamente fulanis no noroeste do país e estão envolvidos em sequestros, além de terem um histórico de assassinatos tanto de cristãos quanto de muçulmanos.

A imprensa nigeriana tem sido tomada pelas ameaças de Trump
Foto: Reuters / BBC News Brasil

Quem tem feito campanha sobre isso?

As preocupações com ameaças enfrentadas por cristãos na Nigéria vêm sendo discutidas há algum tempo por políticos nos Estados Unidos e por grupos cristãos internacionais.

Em anos anteriores, o tema foi levantado nos EUA pelo Indigenous People of Biafra (Ipob) — um grupo proibido na Nigéria que luta pela criação de um Estado independente no sudeste do país, região majoritariamente cristã.

A InterSociety já foi acusada pelas Forças Armadas nigerianas de ter ligações com o Ipob, mas a ONG nega qualquer conexão.

Outro grupo separatista biafrense também afirmou ter desempenhado um papel central na promoção da narrativa de "genocídio cristão" no Congresso dos Estados Unidos.

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O Governo da República de Biafra no Exílio (BRGIE, na sigla em inglês) descreveu isso como um "esforço altamente orquestrado", afirmando que contratou empresas de lobby e se reuniu com autoridades americanas, incluindo o senador Ted Cruz.

O senador se recusou a comentar.

O que dizem outros grupos de pesquisa?

Os números da InterSociety são muito mais altos do que os de outras fontes de dados sobre o número de cristãos mortos na Nigéria.

A Acled, organização que monitora de perto a violência na África Ocidental, apresenta números bem diferentes. As fontes usadas em suas análises são rastreáveis e podem ser verificadas.

Seu analista sênior, Ladd Serwat, não comentou diretamente os relatórios da InterSociety, mas disse à BBC que o número de 100 mil mortes, amplamente divulgado nas redes sociais, incluiria todos os atos de violência política ocorridos na Nigéria — e, portanto, não seria correto afirmar que esse total corresponde apenas a cristãos mortos desde 2009.

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Segundo a Acled, pouco menos de 53 mil civis — muçulmanos e cristãos — foram mortos em episódios de violência política direcionada desde 2009.

Considerando apenas o período de 2020 a setembro de 2025, a Acled estima que cerca de 21 mil civis foram mortos em sequestros, ataques, violência sexual e uso de explosivos.

A organização identificou 384 incidentes em que cristãos foram especificamente alvo entre 2020 e setembro de 2025, nos quais 317 pessoas morreram — o que representa apenas uma pequena parcela do total de mortes.

Para suas análises, a Acled utiliza como fontes a mídia tradicional, redes sociais com relatos verificáveis, organizações de direitos humanos e parceiros locais.

E quanto aos números citados por Trump?

Em uma publicação na rede Truth Social no fim de outubro, Trump citou o número de 3.100 cristãos mortos. Segundo um funcionário da Casa Branca, ele se referia a um relatório da organização Open Doors sobre mortes ocorridas ao longo dos 12 meses a partir de outubro de 2023.

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A Open Doors é uma instituição de caridade que pesquisa a perseguição a cristãos em todo o mundo.

Em seu relatório, a organização afirma que, embora 3.100 cristãos tenham morrido, 2.320 muçulmanos também foram mortos nesse mesmo período de 12 meses.

A Open Doors também inclui o que chama de "grupos terroristas fulani" em sua lista de responsáveis e afirma que eles foram responsáveis por quase um terço das mortes de cristãos em uma área do centro da Nigéria conhecida como Cinturão do Meio (Middle Belt) durante esse período.

Frans Veerman, pesquisador sênior da Open Doors, afirmou que "o que vemos agora é que os cristãos continuam sendo alvo, mas cada vez mais alguns muçulmanos também estão sendo atacados por militantes fulani".

Analistas dizem que há muitos ataques violentos contra mesquitas e comunidades muçulmanas no noroeste do país.

"Pode-se dizer que isso faz parte de uma insegurança mais ampla", disse McHarry. "A razão pela qual isso não é interpretado como um conflito religioso é o fato de que as pessoas que realizam esses ataques contra muçulmanos também são muçulmanas."

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